A arte contemporânea, do controle estatal ao mercado
A produção artística foi gradualmente saindo da tutela do Estado, mas caindo na do mercado, que prefere artistas mais maleáveis, sem espírito crítico e despolitizadosYves Gonzalez-Quijano
Em um artigo publicado pelo jornal libanês Al-Safir em junho de 2010, o desenhista e gravador sírio Youssef Abdelki, figura respeitada da arte árabe contemporânea, referiu-se com termos violentos a Khaled Samawi, proprietário da galeria Al-Ayyam, de Damasco, com o qual já havia colaborado.1Artistas, críticos e jornalistas entraram na discussão, algumas vezes para defender aquele que contribuiu para transformar a situação de jovens criadores graças a contratos de exclusividade, permitindo que se dedicassem inteiramente à própria obra, assim divulgada além das fronteiras nacionais pela primeira vez ou quase.
Apesar da inevitável dimensão pessoal, essa polêmica teve o mérito de trazer a público a questão da rápida privatização do mercado de arte, tanto na Síria quanto em outros países da região. Mais de um artista se deixou seduzir pelos benefícios, inclusive financeiros, decorrentes do maior reconhecimento internacional pelo viés de um novo tipo de intermediário. Todavia, passado um primeiro momento, a exemplo de Abdelki, outros artistas começaram a questionar esse novo papel dos donos de galerias, ligados a críticos, curadores de exposição e, sobretudo, a grandes empresas internacionais de venda por leilão. No momento em que a arte árabe conquista um nicho no vasto sistema especulativo do mercado mundial, não estará ela correndo o risco de renegar suas origens e perder a originalidade, e até mesmo a identidade?
Surgida com a Nahda, a Renascença árabe do século XIX, a pintura de cavalete “no estilo europeu” sempre ocupou um lugar à parte no âmbito da produção cultural. Enquanto na esfera das letras se trabalhava a língua, supervalorizada, e na imagem e na música os artistas se dirigiam a um público amplo, no domínio das belas-artes – muitas vezes às voltas com formatos estéticos tradicionais – era mais difícil encontrar um canal de comunicação com as elites urbanas, mais sensíveis às influências externas. Na falta de um mercado capaz de garantir o mínimo de autonomia à sua prática, esses artistas permaneceram completamente dependentes de subsídios dos organismos públicos, em geral bastante parcos. E, dessa forma, não tiveram outra solução a não ser navegar entre o classicismo oficial, que podia oferecer a eles um mínimo de sobrevida, e uma maior exigência artística, em geral sinônimo de marginalização ou migração para outros horizontes. Foi assim que, até uma época bem recente, nos meios artísticos do mundo árabe se cruzaram as figuras opostas – mas positivamente complementares – do pintor funcionário público e do artista maldito, o sou’louk, no qual as marcas da boemia parnasiana se mesclavam às recordações longínquas do combativo poeta marginal que assombrava os antigos desertos da Arábia.
E mesmo que não exclua um fundo de intervenção do poder público – que assume hoje em dia um sentido completamente diferente, uma vez que já não se encontra em situação de monopólio –, a privatização da cultura acabou criando um novo quadro, com variações e temporalidades características dos contextos. Por exemplo, as transformações da cena cultural no Egito da infitah – a “porta aberta” ao investimento privado, preconizada por Sadat desde meados dos anos 1970 – precedem em muito as observadas na Síria de Bashar al-Assad, cuja chegada ao poder, um quarto de século mais tarde, se fez acompanhar de forte aceleração das medidas de abertura econômica. A organização do primeiro Salão da Juventude em 1989, no Cairo, era para os especialistas da área o prenúncio de uma virada artística cujos ecos sírios só encontrariam consagração oficial por ocasião da “nova geração de pintores sírios”, organizada dentro do quadro do evento “Damasco, Capital da Cultura Árabe”, em 2008.
Entretanto, as diferenças de ritmo não modificam em nada a tendência geral: a emergência de novas práticas artísticas criou uma ruptura definitiva. Assim, as discussões sobre a “arte pela arte”, ou “arte para o povo”, que desde os anos 1950 haviam deixado de agitar os defensores da abstração e os do realismo mais ou menos engajado e mais ou menos herdeiro das tradições locais, foram deixadas de lado sem que as instituições oficiais, que supostamente deveriam enquadrar o campo da cultura, dissessem uma palavra. Mesmo no Egito, onde o posto de ministro da Cultura foi ocupado pelo pintor Farouk Hosny, entre 1987 e 2011, foi graças à influência de agentes não ligados ao poder estatal que uma nova expressão plástica se instalou, adotando uma linguagem decididamente contemporânea (arte conceitual, instalações, vídeo-arte…). Na Síria a constatação é a mesma, com novas galerias, como Al-Ayyam e Art House, criadas em 2006 com ambições e recursos sem precedentes para aquele país.
Uma nova geração de artistas
Ao longo dos anos, uma nova geração de artistas se impôs, e com ela um vocabulário estético mesclado, híbrido, que – a exemplo de outras formas artísticas contemporâneas, em especial no domínio musical – recorre a todas as culturas do mundo, sem necessariamente perder a identidade árabe, salvo aos olhos de seus detratores.
E apesar de se imaginar que a iniciativa pública pudesse cair em desuso com a marginalização da visão “emancipadora” desenvolvida na época da Nahda, isso não aconteceu por completo. Ao contrário, hoje em dia ela ainda impera e acentua a dinâmica da mudança no interior do domínio artístico, na medida em que também passou por dupla “descentralização”: relativamente ao seu posicionamento regional e aos seus objetivos. Assumindo o lugar das jovens repúblicas criadas por ocasião da independência, as monarquias do Golfo puseram no lugar das antigas políticas culturais planos de desenvolvimento dotados de dimensão social e educativa, apesar de também visarem outros fins: trata-se de preparar as economias locais para o pós-petróleo, para uma diversificação necessária de recursos por meio do desenvolvimento de atividades ligadas ao turismo e ao mercado de luxo.
Regionalmente conhecido por sua audácia no âmbito cultural, o “pequeno” emirado de Charjah inaugurou a atitude nessa esfera ao criar a bienal de arte contemporânea, em 1993. Mas quem ocupa hoje posição de destaque são dois de seus vizinhos, Abu Dhabi e Dubai, que amplificaram o fenômeno, cerca de dez anos depois, ao lançar uma imponente série de projetos culturais e de arte ao custo de várias centenas de milhares de dólares, tanto em formas patrimoniais quanto contemporâneas.
Só na ilha de Saadiyat, em Abu Dhabi, cinco museus, além de um parque de exposições e uma sala destinada às artes do espetáculo, foram encomendados aos mais respeitados arquitetos contemporâneos. Dubai não ficou atrás, inaugurando em 2007 a primeira Gulf Art Fair e revelando um aspecto essencial dessa nova dinâmica cultural: a abertura para grandes operadores privados do mercado internacional de arte. Conforme sua vocação, mais financeira que política, inversamente a Abu Dhabi, a capital econômica dos Emirados Árabes optou por medidas de iniciação visando grandes agentes internacionais, tendo à frente a Christie’s, que em 2005 abriu uma filial local. Desde o início de funcionamento, no ano seguinte, a empresa de vendas por leilão baseada em Londres alcançou um faturamento inesperado: 138 milhões de euros, ou seja, quatro ou cinco vezes superior ao previsto.2
Desde então, recorrendo a uma multidão de especialistas, comerciantes, donos de galeria, curadores, jornalistas que trabalham para revistas especializadas, comoBidoun ou Canvas (lançada em 2005 na Cidadela da Mídia de Dubai), os Emirados Árabes se transformaram no eixo do mercado internacional de arte. Num primeiro momento, o movimento favoreceu artistas indianos e iranianos, além de expoentes indubitáveis da pintura árabe contemporânea: em abril de 2010, por ocasião de uma venda da Christie’s, um quadro de Mahmoud Said, artista egípcio morto em 1964, foi vendido pela bagatela de US$ 2,5 milhões – quantia recorde.
Apelo econômico
Mas é o conjunto de criadores árabes contemporâneos, do Magreb ao Machrek, que tem se beneficiado do interesse dos grandes colecionadores, formadores de opinião e investidores internacionais. Prova disso é a exposição “Unveiled: New Art from the Middle East”, que aconteceu em fevereiro de 2009 na famosa galeria Saatchi, de Londres: um novo “produto”, rotulado com uma etiqueta que conjuga referências ao Islã e à cultura árabe, atraiu uma clientela local e internacional (com destaque para compradores asiáticos). Trabalhada e devidamente explorada por intermediários locais, essa fascinação provocou nítida alta de preços. No caso sírio, um mercado que havia permanecido por muito tempo afastado das alterações da cena artística regional, os preços aumentaram 300%, e mesmo 400% nos últimos anos: obras avaliadas em poucas centenas de dólares têm sido negociadas entre US$ 5 mil e US$ 10 mil.
Para os artistas, sobretudo depois de terem conhecido outros tempos e outras experiências, esse tipo de mudança provoca viva preocupação em relação ao futuro de uma prática que, em decorrência das condições de sua constituição, na época moderna, se estruturou muito pouco em torno de instituições autônomas como escolas e museus. Na realidade, as consequências dessa situação já se fazem sentir. As obras demasiado audaciosas – os nus, por exemplo – tendem a desaparecer das paredes de galerias que se preocupam em não ferir as suscetibilidades da endinheirada clientela local. Mas o que mais se deve temer é que a arte árabe contemporânea pague caro demais pelo direito de entrar no mercado mundial, cujas portas foram abertas pelos ricos emirados do Golfo. Obedecendo ao espírito que permitiu esse acesso à cena internacional, ela talvez tenha de se despolitizar, desistindo de qualquer função crítica, para se transformar em simples artigo de luxo.
De certa forma, temos aí os dois monstros da mitologia grega: o Cila do mercado, após o Caríbdis da tutela política…
Yves Gonzalez-Quijano é Docente de literatura árabe moderna na Universidade Lyon-II, tradutor, pesquisador do Instituto Francês do Oriente Próximo e diretor do Grupo de Pesquisas e de Estudos sobre o Mediterranêo e o Oriente Médio (Gremmo), autor do blog Culture et politique arabes ( http://cpa.hypotheeses.org).