A arte da moderação imprudente: pensando o doisladismo
O endurecimento do doisladismo evidencia, primeiro, que a crítica ao PT, na forma como ela é veiculada nas opiniões informadas pelo doisladismo, confunde-se com o antipetismo e, segundo, que o antipetismo opera, nessas opiniões, com aspectos de ideologia. O resultado disso, a meu ver, é a produção de uma crítica estéril no que concerne a democracia, do descrédito da crítica e de distorções na análise.
O fenômeno do “doisladismo” remonta ao segundo turno das eleições de 2018. Na época, ele sustentou a recusa de uma parte dos eleitores a apoiar o candidato do PT Fernando Haddad. Mobilizando a crise econômica – que encontra no governo Dilma Rousseff ao menos algumas de suas causas -, o apoio do PT à ditadura de Nicolás Maduro, entre outros fatores, o doisladismo consistiu na construção de uma simetria entre pólos que se queria afirmar como iguais e decretou uma cisão no seio dos “isentões”.
Muitos questionaram a construção “doisladista” e ponderaram sobre seus efeitos na democracia, os direitos humanos de um modo geral, a proteção das minorias em especial, e a questão ambiental. Insuficientemente persuasivos, restou-nos a nós, que questionávamos a simetria, a esperança de que o transcurso do governo Bolsonaro deixasse claras as diferenças. Passado, no entanto, quase um ano do mandato do atual presidente da República, notamos, antes, um endurecimento da posição doisladista, que se apresenta como moderada, crítica do PT, epítome da democracia em tempos de radicalização.
Chamo a atenção para esse fenômeno, o endurecimento do doisladismo, por entender que ele evidencia, primeiro, que a crítica ao PT, na forma como ela é veiculada nas opiniões informadas pelo doisladismo, confunde-se com o antipetismo e, segundo, que o antipetismo opera nessas opiniões com aspectos de ideologia. O resultado disso, a meu ver, é a produção de uma crítica estéril no que concerne à democracia, o descrédito da crítica e distorções na análise.
Petismo e antipetismo
Começo pela confusão entre crítica do PT e antipetismo. Qualquer crítica a atores políticos é válida na democracia, ainda mais quando se trata de um partido que elegeu dois presidentes e tem grande bancada no Congresso Nacional. Tenho as minhas próprias críticas ao PT, à sua relação comumente tensa com o dissenso, a falas do presidente Lula e outros petistas ilustres sobre a imprensa ou sobre a atuação da polícia, atos e decisões em matéria ambiental, como a construção de Belo Monte. Um problema da crítica doisladista, todavia, é que ela mal distingue práticas e retórica, ganhos e perdas, erros e acertos do PT. Ela distingue o ministro da Economia Paulo Guedes do presidente Jair Bolsonaro, calibra escrupulosamente as críticas ao primeiro, mas não dedica o mesmo olhar criterioso para as práticas passadas e presentes do PT, buscando separar o joio do trigo.
O doisladismo pretende a marginalidade do PT, seja essa sua pretensão final ou instrumental, ligada à abertura de caminho a uma candidatura de centro em 2022. Esse seu compromisso fica claro nos insistentes pedidos de autocrítica que doisladistas dirigem ao partido. Eles desejam a autocrítica alheia, mas são pouco críticos de si. Como partem do princípio de que o PT é autoritário, é válido entender que a desejada autocrítica passe não só por uma mudança de horizontes e posicionamentos do partido, mas por ele se excruciar em praça pública buscando a redenção. Será que os doisladistas a concederiam? Seja como for, chama a atenção que eles não tenham a mesma disposição para refletir sobre as suas próprias ideias, a relação entre economia e política, tão central aos seus posicionamentos e tão problemática sob Bolsonaro, ou sobre a sua contribuição para que nos encontremos nesta quadra da vida política brasileira.
A crítica doisladista, nesse sentido, inibe o pensamento, em lugar de provocá-lo. Ela o logra de várias formas, entre as quais cegando os seus adeptos ou lhes possibilitando sustentar em público a cegueira diante dos fatos tais como eles se apresentam. Recusando deliberadamente ou não o enfrentamento com a realidade, o doisladismo pode ignorar um traço distintivo do governo Bolsonaro em relação a todos os governos anteriores, inclusive os petistas, que é a construção da destruição como um valor compartilhado. Esse traço, no entanto, não deve ser negligenciado, pois tem o potencial de facilitar a subversão do direito, ou, mais diretamente, de transformar “Matarás!” em lei da terra, para recuperar as palavras de Hannah Arendt.
Entendo que, na prevenção de que surja a dúvida, repousa o caráter ideológico do antipetismo em sua forma atual – e pensar criticamente é o oposto disso. Em suas “Lições sobre a filosofia política de Kant”, Arendt qualifica o pensamento crítico como anti-autoritário por definição. Ele se distinguiria tanto do ceticismo, que tudo questiona e desacredita, quanto do dogmatismo, que se cerra ao questionamento. O pensamento crítico é anti-autoritário porque examina crenças, preconceitos, mas também a si mesmo. Tem, ademais, uma dimensão pública porque, embora se dê em isolamento, ele encerra um esforço do pensador por alargar a perspectiva desde a qual contempla os assuntos do mundo, para compreender outros pontos de vista, que a imaginação lhe torna presentes.
Governar de forma anticonstitucional
O doisladismo está muito distante dessa prática. Questiono por isso a sua crítica e, sobretudo, a prudência da sua moderação. Uma conversa sobre a democracia brasileira neste momento poderia girar em torno de uma forma anticonstitucional de governar, como a de Bolsonaro, de uma retórica anti-direitos humanos, que se torna corrente, do anti-ambientalismo do governo, das dificuldades e limitações da oposição, da colonização da esfera pública pela economia e o direito, ambos orientados por uma racionalidade instrumental, que rebaixa a política e reduz o humano. Ela talvez devesse consistir em uma conversa aberta em busca não apenas de algum consenso em torno de medidas pontuais – as várias reformas pelas quais os doisladistas têm uma espécie de obsessão -, mas também a construção de um horizonte de engajamentos para a transformação social com um sentido de liberdade e respeito aos limites do mundo, em especial o natural, com o qual temos sido confrontados. São desafios de monta à imaginação, que tendem a ser mais facilmente superados se conversarmos uns com os outros. Mas tudo o que o doisladismo tem oferecido, a pretexto da moderação e da democracia, é, por um lado, uma crítica reificada das práticas do PT e do petismo, e, por outro, uma crítica indulgente do governo Bolsonaro e do bolsonarismo, que oblitera seu aspecto mais deletério: a construção da destruição como um valor.
Não é evidente que aprendemos com a história, como não é evidente que não possamos aprender com ela. Concluo, então, com Arendt, que, pensando a sua experiência com o totalitarismo e as suas próprias ideias, deixa de falar em “mal radical” para falar em mal banal ao se deparar com a figura de Adolf Eichmann. O que ela compreende com o julgamento de Eichmann é que um mal extremo pode decorrer da ausência de pensamento, seja por incapacidade ou pela recusa de pensar assumindo responsabilidade pelo mundo, ocasionalmente um mundo que perece. A banalidade do mal não se confunde, portanto, com o mal extremo, mas pode ter relação estreita com ele: em uma carta a Gershom Scholem, Arendt afirma que a categoria captura a proliferação do mal como um fungo pela superfície. Karl Jaspers, orientador de Arendt no doutorado e depois um grande amigo seu, deu a entender que o mal que se faz até sem querer por ausência do pensamento implicou, na história, responsabilidade moral e política pela prática de crimes contra a humanidade. Em tempos como os nossos, faria bem a uma parte de nossos intelectuais parar para pensar, com ou contra Arendt, não importa. Mas parar para pensar no que estão fazendo. Articulações doisladistas, infelizmente, indicam uma disposição no sentido da recusa do pensamento.