A atuação dos monopólios midiáticos na falsificação da realidade
Partimos do pressuposto de que os grandes monopólios da mídia reproduzem as mesmas práticas de fake news e censura que afirmam discordar
Alguns veículos da grande imprensa têm denunciado recentemente a disseminação das fake news. As agências de checagem possuem metodologias para identificação dessas notícias e utilizam categorias ou etiquetas para demonstrar o nível de falsidade ou não de uma determinada declaração ou notícia. Mas algumas ponderações estão sendo deixadas de lado nas checagens e nas análises sobre esse fenômeno como, por exemplo, as deformações elaboradas nos conteúdos de algumas matérias, especialmente sobre aquelas que dizem respeito às políticas econômicas, tais como reforma trabalhista, previdenciária, Pec do Teto de Gastos e outras. Recentemente, o Twitter bloqueou a conta do ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, por possuir conteúdo falso. Da mesma maneira, bloqueou a conta do Parlamento Venezuelano sob a alegação de não cumprir as normas da organização. Partimos do pressuposto de que os grandes monopólios reproduzem as mesmas práticas de fake news e censura que afirmam discordar. Dessa maneira, propomos uma reflexão que objetiva o combate a essas práticas, por um lado, demonstrando que se trata de um mecanismo ideológico e, de outro, a defesa das liberdades democráticas.
Os debates e estudos sobre fake news em geral apontam para os algoritmos do Facebook e do Instagram que, de fato, facilitam a construção de bolhas. Portanto, quanto maior é o consumo de páginas ou personalidades que produzem e reproduzem notícias falsas, menor é a chance de se ter contato com notícias mais precisas sobre a realidade. Outro aspecto importante é o acesso a dados pré-pago no Brasil, que são aqueles planos de internet para celular que possuem limite de acesso. Nesse caso, tem-se um limite menor de acesso nas redes sociais e nas plataformas de buscas como a Google, mas um limite maior no uso do WhatsApp. Então é comum acontecer de notícias falsas chegarem no WhatsApp e o acesso ser limitado a elas se os dados de navegação já foram consumidos.
Mas não se trata apenas de uma questão técnica. O debate centra-se no aspecto ideológico, pois o fenômeno em que insere as pessoas na crença dessa falsidade é o catalisador.
A última crise econômica mundial (2008) resultou em uma série de crises políticas ao redor do mundo. Essas crises políticas são resultado de embates entre diferentes grupos na definição de quais políticas seriam aplicadas para a saída da crise. Para isso, foram elaborados durante os últimos anos significados a-históricos sobre os acontecimentos. O tom de fatalidade dado em defesa das políticas austeras seguido pela “ilogicidade da causalidade e da coincidência” se impôs. Segundo o semiólogo francês Roland Barthes, a fala mítica objetiva esvaziar a memória de produção das coisas, atua com um modo de significação a fim de naturalizar as coisas, suprimindo, com isso, a dialética da história. Para Barthes, o que está presente no mito não é a ocultação, mas a deformação. Dessa maneira, ao esvaziar o sistema de significação primeiro abre-se espaço para preencher de significações segundas dando outro sentido à realidade enquanto ela segue atuando como ela é.
O mito, portanto, é um modo de significação, uma fala, mas, principalmente, uma fala roubada, e tem por objetivo esvaziar a memória de produção das coisas. Apresenta-se como um sistema de significação segundo uma forma de comunicar, que “não se define pelo objeto da sua mensagem, mas pela maneira como a profere”[1] e, por isso, é construído através do uso da conotação. O efeito de naturalizar o que é histórico confere ao mito a capacidade de construir narrativas descoladas de seus contextos, em que torna possível recorrer a outros elementos para dispor ao redor de um conceito, ressignificando-o. Isto pode ser feito, no caso de um texto jornalístico, utilizando meios de ordem conotativa: o medo, o imediatismo, a repetição de palavras, histórias sem passado, entre outras. Para o semiólogo, focalizar o significante mítico enquanto totalidade de sentido e forma, “relacionar o esquema mítico com uma história geral, explicar como corresponde ao interesse de uma sociedade definida” significa “passar da semiologia à ideologia”[2], seguindo sua natureza semiológica dialética.
E é justamente ao fazer esse exercício que compreendemos qual foi o papel da grande imprensa, além dos discursos do restante da direita liberal e da direita ortodoxa, para chegarmos a este contexto em que a verdade não existe e prepondera a teoria negacionista e a anticiência.
Editoriais da imprensa
Comecemos a análise pelo discurso da grande imprensa a respeito da reforma trabalhista, apenas como um exemplo do que se repete em outros temas. Em análise realizada para dissertação de mestrado[3], a leitura de editoriais a respeito do tema nos jornais Folha de S. Paulo, Estado de S.Paulo e O Globo demonstraram o recuo e o esvaziamento histórico em como, não só o tema, mas a realidade em si era apresentada. O tema foi apresentado como algo casual e, ao mesmo tempo, fatal: a origem da crise econômica passou a ser apresentada como um erro político dos governos petistas e a única solução possível apresentada era a aprovação de medidas austeras que fossem capazes de transformar as relações de produção e de trabalho a fim de possibilitar a ascensão da taxa de lucro do metabolismo do sistema.
Mas, para isso, era preciso construir uma narrativa convincente para abrir espaço para apoio popular a essas reformas. Dessa maneira, não era suficiente atacar a legislação trabalhista afirmando que ela foi “imposta pela ditadura do Estado Novo (1937-1945)”[4]. Foi necessário, como procedimento estratégico, criar um inimigo comum. O movimento sindical, alguns movimentos sociais, em especial o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), eram apresentados como “aventureiros de olho na divisão bilionária das contribuições sindical e assistencial”[5]. Além disso, naturalizar processos históricos faz parte de um procedimento de validação de ideias “necessárias, universalmente válidas”[6]. Por isso a reforma trabalhista era apresentada como uma força natural, que acompanhava a modernização da sociedade, algo que já existia “por força da vida real”[7]. Feito isso, foram responsáveis por esse espaço vazio de sentido ter sido preenchido por uma desconfiança da realidade e emergindo daí uma realidade falsa, imaginária e sem verdade.
Deformação e ocultação de informações
A ideologia é uma manifestação das ideias a partir de narrativas que buscam o consenso. Por isso, essas ideias podem ser falsas ao narrar a realidade não a partir do ponto de vista do que ela é, mas do que é preciso fazer para que ela seja o mais próximo possível do que se espera. O fato de a grande imprensa ter sido responsável em certa medida pelo atual contexto político e ideológico não a torna contraditória ao denunciar o governo de Jair Bolsonaro, mas a faz ser contraditória ao criticar a perpetuação de fake news. A verdade dialética em face à verdade lógica, pensamento que marca a diferença entre Marx e Hegel a respeito da interpretação do que é história, demonstra que o conhecimento é um “conjunto de relações, totalidade aberta, está em relação com o objeto total, o mundo” e que “torna-se falso na em medida em que se enrijece e se isola”[8].
As diferenças que marcam as notícias falsas não produzidas pela grande imprensa e as produzidas é que, no primeiro caso, não existe apuração e checagem como no segundo caso, mas, em ambas, existe deformação e ocultação de informações.
Constituição, direito à verdade e à informação
É fato que ambas afrontam a Constituição Federal brasileira, conforme a existência do princípio constitucional implícito da verdade. Apesar de não expresso no texto constitucional, a partir de sua interpretação sistemática, é possível encontrá-lo, até porque o rol de incisos do art. 5º da Carta Maior não constitui um conjunto fechado de direitos e garantias (regras e princípios); pelo contrário, o próprio §2º assevera uma abertura material para a existência de outros não ali elencados.
Humberto Ávila menciona que “normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. […] Em alguns casos há normas, mas não há dispositivo”[9]. Deste modo chega-se ao encontro de determinada norma, mesmo que não exista expressa disposição no texto da Constituição, como é o caso do princípio constitucional da verdade, que decorre da interpretação de uma gama de dispositivos constitucionais como se menciona adiante.
Nesse sentido, há que se destacar a existência da garantia fundamental à informação, tanto ao seu acesso quanto de sermos informados, segundo inciso XIV do artigo mencionado, mas não é qualquer informação que a Constituição menciona, é a verídica.
Além do mais, em consonância com a liberdade de expressão, disposta no inciso IX, do art. 5º da Constituição, o art. 220 assegura que a manifestação de pensamento, criação, expressão e a informação, sob qualquer forma, não sofrerá qualquer restrição. Todavia, no mesmo dispositivo há uma ressalva, pois é necessário o cumprimento do disposto na própria Constituição. Não se pode fazer a interpretação de um dispositivo constitucional de forma isolada, mas em conjunto com o todo, com as normas explícitas e implícitas, haja vista a existência do princípio da unidade da Constituição, elementar para guiar qualquer processo interpretativo compatível com ela mesma.
Dito isso, é importante destacar que a Constituição “não configura, portanto, apenas expressão de um ser, mas também de um dever ser […]”[10]. Tem, portanto, segundo Hesse, “força normativa”, reunidos em nosso ordenamento jurídico em predominância formal e material. Há, desse modo, o dever de seu cumprimento, além, é claro, de sua efetividade.
A partir do princípio constitucional da verdade, podemos afirmar que temos o direito de receber informações verdadeiras, seja por meio da grande mídia, seja pelas redes sociais. Já os meios de comunicação, incluídos aqui os mencionados, têm o dever jurídico de apresentar informações verídicas. Por isso, quando estamos diante de uma fake news, deparamo-nos, também, com uma violação constitucional que atinge a fundamentalidade dos direitos e garantias constitucionalmente assegurados e, por obviedade, a todos nós e o próprio Estado Democrático de Direito.
Mecanismos para impedir a proliferação de fake news
A questão que se coloca é: o que fazer diante desta realidade de disseminação de fake news e, consequentemente, promoção de desinformação em massa e violação constitucional?
A questão, aparentemente simples, abre caminho para discussões complexas e extensas. Entretanto, o objetivo deste texto não é ser um ponto de chegada, mas sim de partida para que possamos refletir sobre a questão posta enquanto sociedade.
O que propomos é que se criem mecanismos que busquem impedir a proliferação de fake news, tanto pela grande imprensa, quanto pelas redes sociais. Mas é preciso ter cuidado para que não se confunda a vedação de fake news com mecanismos de censura, considerando que ela não é compatível com nosso ordenamento jurídico constitucional. Ora, é preciso impedi-las, considerando que, notadamente, constituem uma estratégia articulada de se espalhar desinformação, com motivações de natureza ideológica, cujo propósito é a criação de uma realidade inexistente para que se atinja algum fim.
O debate, como dissemos, não é simples, entendemos que perpassa pela educação, regulamentação da mídia no Brasil e das redes sociais, sem qualquer afronta aos direitos e garantias individuais e coletivos, com respeito às liberdades democráticas, por óbvio em consonância com a Constituição Federal de 1988, que precisa de zelo e efetividade.
Maiara Marinho, jornalista e mestra em Comunicação e Cultura (UFRJ).
Thiago Rafagnin, professor do curso de direito da Universidade do Oeste da Bahia (UFOB) e pós-doutor em Direito.
[1] BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 131.
[2] Idem, p. 150.
[3] MARINHO, Maiara dos Santos. Mídia, neoliberalismo e ideologia: a Reforma Trabalhista nos editoriais de O Estado de São Paulo, O Globo e Folha de São Paulo. Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura (UFRJ), 2019.
[4] Editorial O Estado de São Paulo (São Paulo), 10/04/2017.
[5] Editorial O Estado de São Paulo (São Paulo), 27/03/2017.
[6] COUTINHO, Eduardo Granja. A comunicação do oprimido e outros ensaios. Rio de Janeiro: Mórula, 2014.
[7] Editorial O Globo (Rio de Janeiro). 23/01/2017.
[8] LEFEBVRE, H.; GUTERMAN, N. In: Cadernos Filosóficos. LENIN, V. I. São Paulo: Boitempo, 2018.
[9] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2011. p. 30
[10] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 15