A atualidade do Fórum Social Mundial
Mesmo com todos os seus limites e dilemas, “não existe alternativa ao Fórum Social Mundial”, declarava em 2013 o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein. A questão é agora saber se o FSM será capaz de traçar uma estratégia articulada de superação do capitalismo e trazer respostas viáveis à crise civilizatória peDamien Hazard
Nascido em 2001, em Porto Alegre, de uma ampla e horizontal articulação internacional de organizações e movimentos sociais, o Fórum Social Mundial (FSM) ousou afirmar, naquele momento de ascensão do neoliberalismo, que outro mundo era possível, colocando-se em contraposição direta ao modelo de globalização econômica e financeira defendido pelo Fórum Econômico de Davos. O FSM semeou uma nova cultura política, com base na democracia direta, sem hierarquias, no respeito às diversidades e na valorização das diferenças, de opções políticas, culturais, religiosas e de livre orientação sexual. Uma cultura de defesa radical do direito das mulheres, contra o racismo ou qualquer forma de discriminação. O FSM assim contribuiu para dar visibilidade a outros paradigmas de desenvolvimento, reafirmar a supremacia dos direitos humanos sobre os interesses econômicos e financeiros, e reanimar a chama da utopia no imaginário coletivo planetário.
Passados catorze anos, o mundo mudou, e a hegemonia neoliberal perdeu seu charme e sua vitalidade. Na América Latina, vários governos foram eleitos democraticamente assumindo-se como “filhos e filhas do FSM”. Colocaram em prática, na contramão das cartilhas neoliberais, uma agenda social que resultou na inclusão de milhões de pessoas ao acesso a bens e serviços públicos antes inacessíveis. A geopolítica internacional tornou-se menos dependente do eixo Estados Unidos-União Europeia-Japão, e o mundo ficou menos monopolizado.
Mas o sistema capitalista não perdeu sua força e, mesmo tendo entrado numa crise profunda a partir de 2008, busca formas de se reinventar. Intensificou-se o processo de mercantilização da vida e dos bens comuns. As políticas nacionais de desenvolvimento, em diversos aspectos, tornaram-se cada vez mais subordinadas aos interesses das elites políticas e dos grupos transnacionais econômicos e financeiros. E, em muitos países, o ônus da crise está sendo cobrado das populações, por meio de políticas de austeridade que acabam violando ou precarizando os direitos humanos, trabalhistas e ambientais.
Como consequência, aumentaram as tensões entre os governos, mesmo aqueles eleitos democraticamente, e os povos. Da mesma forma que o FSM é o aspecto mais significativo da dinâmica dos movimentos sociais nos anos 2000, o surgimento de novos movimentos cidadãos que se expressam nas ruas e nos espaços públicos marcou o início dos anos 2010. Destacam-se, entre outros, os movimentos revolucionários do norte da África que levaram à “Primavera Árabe” a partir de 2011, assim como as mobilizações do Occupy Wall Street, os Indignados na Espanha, os estudantes do Chile, de Québec e de Hong Kong, ou ainda mobilizações cidadãs na Grécia, na Croácia, na Islândia, no Senegal e até mesmo no Brasil, em junho de 2013, quando multidões tomaram as ruas e desafiaram as autoridades, clamando por mobilidade, mais políticas sociais e menos corrupção.
Por entender a importância desses levantes populares, a última edição mundial do FSM, em março de 2013, foi realizada em Túnis, capital da Tunísia e berço do processo revolucionário no mundo árabe. O evento contou com a presença de cerca de 70 mil pessoas provenientes de 5.045 organizações de 128 países, entre as quais 1.750 entidades e movimentos tunisianos. No total, foram realizadas 1.014 atividades e 35 assembleias de convergência. O evento foi considerado globalmente um sucesso, fortaleceu o papel da sociedade civil e o processo democrático no país (hoje o mais promissor na região, com a adoção em 2014 de uma nova Constituição e a realização de eleições legislativas e presidenciais) e levou o Conselho Internacional do FSM a apoiar a proposta do comitê magrebino de uma nova edição mundial na capital tunisiana. Tal como Porto Alegre, que recebeu quatro eventos dessa natureza (2001, 2002, 2003 e 2005), Túnis torna-se o outro grande território de identidade do FSM.
O FSM 2015 será realizado nos próximos dias 24 a 28 de março. Assim como em 2013, terá como espaço central a Universidade El Manar. A um mês do evento, já foram inscritas 2.967 organizações de 111 países, e o comitê organizador recebeu 1.900 propostas de atividades autogestionadas.1 As expectativas do FSM em 2015 superam as de 2013. Segundo Abderrahman Hedhili, presidente do Fórum Tunisiano para os Direitos Econômicos e Sociais (FTDES) e membro da coordenação do comitê organizador do FSM 2015, “em 2013 estávamos particularmente preocupados com a questão organizacional. Mas desta vez […] estamos focando o envolvimento, no próximo fórum, dos atores sociais de campo, com suas pautas, seus movim
A mobilização dos movimentos sociais e sua articulação constituem um dos maiores desafios do processo FSM. O estreitamento das relações com os novos movimentos sociais, que está tomando forma na Tunísia, precisa ser reforçado e estendido a outros países, mas impõe ao mesmo tempo uma mudança de cultura e de prática política por parte dos movimentos mais tradicionais, que dominam até então a condução do processo do FSM. Por outro lado, algumas regiões do mundo, a exemplo de parte da Ásia e do Pacífico Sul, estão pouco representadas nos espaços do FSM, enquanto outros movimentos que já estiveram envolvidos se afastaram. É o caso de muitas organizações do Brasil, como consequência do distanciamento da edição mundial do evento (que ocorreu pela última vez no país em 2009 em Belém) e da falta de informações, mas também da descrença sobre a capacidade das instâncias de facilitação do processo FSM de se reinventarem na atual conjuntura.
Mesmo com todos os seus limites e dilemas, “não existe alternativa ao Fórum Social Mundial”, declarava em 2013 o sociólogo norte-americano Immanuel Wallerstein.3 “Não há nada que esteja acontecendo que se compare a isso. Seja em termos de visões, de inclusão ou de esforços para transformar o mundo.”
A questão é agora saber se o FSM será capaz de traçar uma estratégia articulada de superação do capitalismo e trazer respostas viáveis à crise civilizatória pela qual passa a humanidade. Gustave Massiah, membro do Conselho Internacional, considera que, para sair do neoliberalismo, “podem ser definidas várias abordagens: a curto prazo, aquelas que podem envolver os governos, sob a pressão dos movimentos para definir novas políticas; a médio prazo, esforços para mudar o sistema internacional e ganhar margem de manobra; a longo prazo, políticas alternativas para além do capitalismo. Todas essas abordagensdevem ser postas em prática agora”.4 Nessa ambiciosa caminhada, Túnis pode revelar-se uma etapa fundamental!
Damien Hazard é conomista, coordenador da ONG Vida Brasil e diretor executivo da Abong.