A barbárie da imagem
A fotografia é um ser mutante. Transforma-se no tempo, como as ruínas em fluxo sensorial, que a cada intempérie, modifica-se, ou a cada apropriação, desloca-se. Nela nada é constante, tudo é perene e contraditoriamente perecível, talvez seja essa sua graça, sua (des)ordem e sua (i)lógica.Fernando Tacca
(Issouf Sanago [France-Fress], Mali, 2013)
Contrariamente a lo que la historia nos ha inculcado, la fotografía pertenece al ámbito de la ficción mucho más que al de las evidencias. Fictio es el particípio de fingere que significa “inventar”. La fotografia es pura invención. Toda la fotografía. Sin excepciones (Joan Fontcuberta)
A cena acima presentifica-nos as fronteiras que as imagens fotográficas foram instaladas na contemporaneidade, ou talvez, até mesmo desde seu surgimento imaterial na câmera escura. Mais do que simplesmente a atual circulação obsessiva, líquida e diáfana de imagens e de querer compartilhar todos os momentos com todos que os possam ver, querendo ou não, quase como um autoritarismo presente nas chamadas redes sociais, essa imagem acima desloca-nos para o teatro, para a ficção e para o espetáculo da morte anunciada.
A fotografia é um ser mutante. Transforma-se no tempo, como as ruínas em fluxo sensorial, que a cada intempérie, modifica-se, ou a cada apropriação, desloca-se. Nela nada é constante, tudo é perene e contraditoriamente perecível, talvez seja essa sua graça, sua (des)ordem e sua (i)lógica. Suas verdades, tão alentadas, são visualidades materiais para todas as ideologias, a bel prazer, e a todos os gostos e prazeres. São verdades ficcionais.
Suas realidades são sempre representificadas a cada instante, ao olho de quem quer ver e quem quer esconder. Fotografias são quase sempre formantes, nunca formadas totalmente. Formam-se e se deformam no tempo como memórias alteradas, subjetividades expandidas, ou ainda em mera informação de fluxo imediato em tela midiática.
No pobre Mali, África, país de colonização francesa, local onde foi feita essa imagem, a população está envolvida em conflitos locais, regionais, nos quais, e os países colonizadores voltam e são agora seus salvadores (leia-se França), e internacionalizam a guerra. Afinal, e o que nos assusta, é que o terror pode estar de qualquer lado. Instala-se nessa imagem uma fronteira entre ficção e documentário, entre game e realidade, entre um avatar e seu criador, ou ainda, entre uma imagem fotojornalistíca e sua expansão conceitual.Para onde a imagem nos expande, ou para onde ela mesma se expande, ou se contrai?
Para nós, espectadores dessa imagem midiática, o cenário de guerra torna-se simbólico e tangencia as imagens dos comics ao celebrar o inimaginável e o cenográfico. Não existe sentimento, dor ou sofrimento na imagem, mas, sim, sua incontinência, seu excesso e seu pertencimento ao fantástico.
A imagem, que nos olha e nos intimida, carrega sua tentativa de terrorificar e não temos vontade de lhe oferecer doces como uma figura festiva de Halloween. Chama a atenção pela similitude com o personagem Ghost do violento game Call of Duty. A mídia internacional já fez o jogo de referência entre as duas imagens, e podemos identificar também a máscara com a morte medieval, como na gravura “O cavaleiro, a morte e o diabo”, de Albrecht Dürer, ou na figura da morte do filme “O Sétimo Selo” (1956), de Engmar Bergam com sua foice, ou ainda na figura cadavérica e suas flechas mortais do afresco anônimo “El Trionfo de la morte” (século XV), no museu Abatellis, na cidade de Palermo, entre tantas outras. Na imagem de Mali existe uma cumplicidade explícita entre o avatar e o fotógrafo, pois ambos são criadores e autores.
As luzes em explosão ao fundo empurram o avatar para um primeiríssimo plano, como um big bang luminoso em expansão, afinal ele é o ator principal da imagem, um agente da morte, assim como os fotógrafos (como já dizia Barthes). O campo expandido é teatral, cenográfico, com cumplicidade autoral; remete-nos ao fantástico e ao onírico; celebra, assim, o inconsciente coletivo imagético e simbólico da morte.
Na visão etnocêntrica de cultura, a barbárie é um estado limiar entre a civilização e a selvageria. Dentro desta visão, o avatar imagético em questão esquece sua origem como elemento civilizatório e pode-se colocar ainda acima dos “selvagens” ao seu redor. Não carrega mais a vontade da catequização ou de um projeto civilizatório de ocupação territorial; sua função é somente barbarizar. Foice, flecha ou fuzil de repetição são as ferramentas da ação e a máscara é a ferramenta da tortura psicológica.
A imagem fotográfica parece estar nesse lugar, a da barbárie, e indica-nos que daí nunca irá sair, ou, então que sempre esteve nesse limiar. Não existe civilização para a fotografia, ela é bárbara e autodestrutiva por natureza, como os Vampiroteuthis Infenalis de Flusser. Ela nos seduz e nos ilude; nos mente continuamente e se esconde em nuvens manipuladoras de verdades; se camufla e nos distancia cada vez mais de alguma veracidade possível, mesma a histórica, como já nos alertou Jóan Fontcuberta.
Em uma viagem recente, ao entrar em um restaurante na beira de uma estrada, desses com ar de querer ser cult e “moderno”, me chamou a atenção o fato das paredes estavam lotadas de fotografias emolduradas, antigas e recentes, provavelmente compradas em algum sebo. Fitei longamente para essas fotos e todos os retratados me pareceram familiares, todos me pareciam e poderiam ser meus parentes; ali estava, talvez, um ancestral. No universo fotográfico somos todos avatares e bárbaros. A fotografia é bárbara e mutante; só nos resta devorá-la como um Vampiroteuthis Infernalis em orgasmo.
Fernando Tacca é Professor livre-docente no Instituto de Artes da Unicamp.