A batalha da memória
A iniciativa de abrir as valas comuns onde estão enterrados os republicanos dessacraliza uma transição democrática erigida como “modelo” e destrói dois de seus mitos fundadores: o da amnésia e o de um pacto político do esquecimento entre a direita e a esquerda, até então obrigada a aceitar a impunidade dos carrascos
Em grande parte da Espanha, o que chamamos de guerra civil era tão-somente repressão. O golpe de Estado militar do general Francisco Franco foi imediatamente seguido de um plano de extermínio”, declara o movimento de recuperação da memória da Espanha republicana.
Para esses estudiosos, o objetivo dos franquistas não era somente ganhar a guerra: eles queriam extirpar a República pela raiz. Daí o uso de termos como “depuração”, “purificação”, “limpeza” e “pacificação” para classificar esse episódio. É o que demonstra a cartografia das valas comuns republicanas, atualizada recentemente, que coincide com as regiões onde o levante militar foi imediatamente vitorioso. Após o final do conflito a “limpeza” continua: 50 mil republicanos foram fuzilados em poucos meses.
Agora, a memória dos “Vermelhos” rompe o silêncio de um esquecimento imposto e estremece a sociedade espanhola.1
Nem mesmo após a vitória do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) nas eleições de outubro de 1982, ou a chegada ao poder do Partido Popular de José María Aznar, em 1996, não renovou os termos do debate e da “batalha da memória”. “Decidimos não falar do passado”2, admite o líder do governo na época, Felipe González. “Sinto-me responsável, em parte, pela perda de nossa memória.”3
Para a direita espanhola, a explosão memorial e historiográfica mostra-se insuportável, relembra as origens sanguinárias do franquismo e ela insiste em “não reabrir velhas feridas”. Isto porque o “franquismo ideológico” parece ainda enraizado não somente no seio de uma parte do eleitorado de direita, mas também na Igreja, na Justiça, no Exército, no meio patronal e entre os banqueiros.
O historiador Julián Casanova considera que os eclesiásticos católicos da Espanha recusam-se a reconhecer seu “papel de carrascos” e sua “aprovação ao extermínio legal”4. Uma memória seletiva, claro, uma vez que, ao mesmo tempo, a Igreja espanhola beatificou 997 fiéis, principalmente membros do clero e das ordens religiosas, vítimas do “terror vermelho” (1934-1938)5. Quanto ao Exército, ele continua contrário a qualquer homenagem aos militares legalistas fuzilados por terem se oposto ao levante fascista.
As eleições legislativas de 2004 reconduziram o PSOE ao poder. Mas forças políticas como a Izquierda Unida6 ou a Esquerra Republicana de Catalunya (Esquerda Republicana da Catalunha – ERC), assim como a maioria das associações de recuperação da memória, o acusam de fazer “jogo duplo”.
Em 20 de novembro de 2008, o líder do governo, José Luis Zapatero, declarou: “Tudo o que contribua para manter isso no esquecimento mais profundo da sociedade espanhola será algo bom (…) muito embora haja pessoas mais inclinadas a esquecer que outras”7.
Após três anos de hesitação, o governo socialista foi obrigado a adotar uma lei chamada de “memória histórica”, aprovada pelo Parlamento em 31 de dezembro de 2007. É um avanço, claro, mas que muitos consideram tardio e limitado.
A lei determina a erradicação dos símbolos franquistas dos edifícios públicos, solicita às administrações locais que auxiliem as associações a exumar os desaparecidos e abre a possibilidade para 1,5 milhão de filhos e netos de “exilados” obterem a nacionalidade espanhola, com a condição de prestarem juramento de fidelidade à Constituição e ao rei (um paradoxo para os descendentes de republicanos…).
Apenas em 16 de outubro de 2008 o debate sobre o tema se acentuou no terreno jurídico. Nesse dia, e pela primeira vez, o juiz Baltazar Garzón abriu um processo sobre as circunstâncias do desaparecimento de 130.137 pessoas durante a guerra civil e o franquismo. A decisão do magistrado abalou o mundo político e jurídico ao evocar um “plano premeditado e sistemático de extermínio”, um “sistema de desaparecimentos forçados” e “crimes contra a humanidade”8.
Ele ordenou o estabelecimento de um mapa preciso das valas comuns, o recenseamento de todos os desaparecidos e a abertura imediata de 19 valas, entre as quais, emblematicamente, a do poeta Federico García Lorca. Garzón também colocou em xeque a lei de anistia de 15 de outubro de 1977, que impedia qualquer investigação.
A determinação do juiz valeu-lhe virulentos ataques da direita. O procurador-chefe da Audiencia Nacional, a mais alta instância penal do país, Javier Zaragoza, acusou-o de querer uma “nova Inquisição”9 e organizou sua destituição. Acuado e isolado no seio do aparelho judiciário, Garzón abandonou a causa sem renegá-la e, em 28 de novembro de 2008, a Audiencia vetou a investigação sobre o golpe de Estado franquista.
Por trás desses enfrentamentos judiciais ocultam-se embates políticos. A iniciativa de Garzón dessacraliza uma transição democrática erigida como “modelo” e exportada, principalmente para a América Latina. Ela destrói seus mitos fundadores: o da amnésia, o de um pacto político do esquecimento entre a direita e uma esquerda, obrigada a aceitar a impunidade dos carrascos.
Alguns setores do aparelho judiciário e do Partido Popular, assim como a Igreja, tentam frear um movimento que obriga a rever muitos dos lugares comuns, como o da “guerra civil”, que coloca em pé de igualdade os franquistas e os republicanos, ou o da “transição” como referencial democrático inicial que promove a assimilação da monarquia.
Para a direita, convém refrear o movimento antes que ele coloque em questão outros tabus, como a espoliação dos bens dos vencidos ou a pilhagem ocorrida nos anos 1940. Afinal, o que ocorreu com as grandes fortunas públicas e privadas erigidas sobre o trabalho de centenas de milhares de prisioneiros políticos até os anos 1960? E o que dizer das “crianças perdidas do franquismo”, usurpadas de seus pais republicanos pela ditadura? Ainda há muitas faces sombrias a explorar.
O que inquieta os protagonistas do “pacto do esquecimento” é o retorno do dilema: monarquia ou república. Para o filósofo Carlos París, “se aceita que a Espanha seja uma monarquia, muito embora ela seja, na realidade, uma herança do franquismo”10. O movimento em curso traz também a crítica da “transição pactuada”, das hesitações da esquerda e das reivindicações da República.
Por isso, a contra-ofensiva da direita e da Igreja vai no sentido de manter o status quo e perenizar uma democra
cia incompleta. Para o porta-voz desses conservadores, Pío Moa – autor de uma obra que Aznar dizia ser seu livro de cabeceira –, “a vitória de Franco na guerra civil salvou a Espanha de uma traumatizante experiência revolucionária”11.
Após dez anos em atividade, o “movimento social pela memória histórica” não voltará atrás. As associações continuam a desenterrar o que foi ocultado e já abriram 200 valas comuns, recuperando 4 mil corpos. Algumas delas exigem a criação de uma “comissão da verdade”. São os embates políticos do presente que condicionam a interpretação do passado, e a reapropriação da memória constitui um elemento central do exercício da democracia.
*Jean Ortiz é editor do livro Rouges. Maquis de France et d’Espagne. Lés guérilleros, Atlantica, Biarritz, 2006.