A bíblia e o palácio
A ligação entre o aumento no número de evangélicos no continente e as ideologias de direita é o tema central deste artigo. Essa articulação também deve ser considerada ao se tratar da integração regional. Os casos do Brasil e da Bolívia são emblemáticos. Confira no novo artigo da série Desafios da integração
Em 2019 assistimos à deposição do presidente eleito da Bolívia sob acusação de fraude nas eleições. Muitos analistas avaliaram esse movimento como um golpe de Estado. Dentre os grupos que lideraram essa deposição estava um de forte acento religioso. Uma de suas líderes, a então senadora Jeanine Áñez, se autodeclarou presidente da República ao proferir as seguintes palavras com uma bíblia em suas mãos: “A bíblia voltou ao palácio”.
Um ano antes, no Brasil, havíamos presenciado a ascensão eleitoral do candidato de extrema direita Jair Bolsonaro, que acabou sendo eleito presidente para o período 2019-2022. Com discurso ofensivo, Bolsonaro também se esforçou para associar sua imagem à defesa de certas posições religiosas muito fortes nos meios conservadores, tanto evangélicos como católicos. Não obstante, sua ligação com os evangélicos foi notória, ao participar, por exemplo, de alguns eventos conhecidos como a Marcha para Jesus em diferentes cidades do país. Eleito presidente, continuou a sustentar um discurso de ódio, ao mesmo tempo, marcado pelo elemento religioso.
Do ponto de vista das Relações Internacionais, Samuel Huntington, em seu livro O choque de civilizações, argumenta que houve a extinção da religião como elemento significativo na existência humana durante a segunda metade do século XX. Tendência que teria sido alterada significativamente meio século depois. De acordo com ele, teria havido uma mudança de tal magnitude que nos permitiria falar no surgimento de “movimentos fundamentalistas empenhados na purificação extremista das doutrinas e instituições religiosas e na remodelação da conduta pessoal, social e pública de acordo com dogmas religiosos. Os movimentos fundamentalistas são evidentes e podem ter uma influência política importante” (Huntington, 2015, p. 113).
Interessante notar que Huntington desenvolve o cerne de sua análise tendo como foco os movimentos fundamentalistas dos países muçulmanos. Na ótica proporcionada pelo texto, esses países abrigariam os movimentos fundamentalistas mais significativos. Para tanto, vale a pena ressaltar que um marco de análise para Huntington ao considerar o ressurgimento da religião nas Relações Internacionais é justamente a Revolução Iraniana (1979).
Apesar de o Cristianismo ser mencionado em alguns momentos do livro, isso acontece mais em forma de dados, assinalando, por exemplo, o crescimento dos evangélicos no Brasil. Huntington não emprega o mesmo esforço de análise sobre os movimentos fundamentalistas cristãos, seja nos Estados Unidos, seja na América Latina. Contudo, essa ênfase pode ser considerada pelo menos imprecisa, já que em 1964 um dos acontecimentos marcantes que antecederam o golpe militar no Brasil foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Apoiados por lideranças cristãs conservadoras, os manifestantes pediam a intervenção militar contra uma suposta ditadura comunista, anunciada pelas reformas de base propostas por João Goulart. Esse apoio contou, por exemplo, com lideranças da Assembleia de Deus de Belém, uma das maiores denominações evangélicas da época. Seus líderes saudaram o triunfo militar sobre o ateísmo comunista. Alguns meses antes, por exemplo, a revista O estandarte evangélico afirmava que o comunismo inibia a pregação do evangelho e poderia proibir o direito à adoração (Chesnut, 1997, p. 148). Falácia repetida ainda hoje.
A ditadura militar durou 21 anos. Apoiada pelos Estados Unidos, encontrou nas Assembleias de Deus um denso apoio. Talvez por suas origens norte-americanas e imbuídas da mentalidade da Guerra Fria. O certo é que, decididas a contribuir para a formulação de uma ideologia moral de mercado, elas viam como positiva a construção de uma alternativa ao crescimento da Teologia da Libertação na América Latina. Essa corrente teológica tinha como uma de suas principais características a junção entre pregação do cristianismo e crítica social. Como exemplo dos interesses que atuavam nesse contexto, a Teologia da Libertação foi alvo de investigação por parte de uma subcomissão do Senado nos Estados Unidos dedicada ao terrorismo. Então, na administração Reagen, é possível ver como a religião foi peça importante no tabuleiro internacional a fim de barrar qualquer crítica ao capitalismo, classificando seus oponentes como subversivos (Lacerda, 2019, p.38). A partir disso podemos compreender como o movimento neopentecostal, por exemplo, teve muito de seu crescimento alavancado por uma oposição histórica ao Catolicismo (Freston, 2008, p. 13). Como não lembrar do “episódio da santa”, protagonizado pelo bispo Edir Macedo?
Esse crescimento teve também um impacto político. É fato que as igrejas evangélicas, que ganharam grande notoriedade nos últimos pleitos presidenciais, demonstraram um potencial eleitoral muito forte. Aliado a isso, a pauta conservadora dominou o debate político nos últimos anos muito pela participação de atores que provêm dessas denominações. É importante ressaltar, contudo, que essa guinada conservadora deve ser contextualizada considerando um espectro mais amplo. Nas eleições de 2002, boa parte das lideranças evangélicas apoiaram a candidatura de Lula ao Palácio do Planalto. A decisão se mostrou acertada e, pela primeira vez, o governo teve como um dos seus principais grupos de apoio o setor evangélico. Apesar disso, com o passar do tempo, o conservadorismo foi angariando lideranças evangélicas ao ponto de muitas delas, no ano de 2018, apoiarem um candidato de características explicitamente de extrema direita.
Sem nenhuma crítica mais forte às políticas neoliberais defendidas pelo governo Bolsonaro, a defesa da família brasileira teve como frente de batalha os temas de cunho moral. Essa opção causou espanto em parte da comunidade evangélica, ao notar que o presidente se mostrava como um político historicamente alinhado à ditadura e defensor do porte de arma para os cidadãos. Não obstante, não podemos pensar que essa adesão ou pelo menos postura acrítica em relação à violência seja exclusividade dos evangélicos brasileiros. A experiência da Guatemala nos mostra algo curioso. Lá os fundamentalistas evangélicos apoiaram uma ditadura genocida, servindo de exemplo paradigmático de um tipo de protestantismo conservador que invadiu a América Latina como um agente de imperialismo cultural e político emanando dos Estados Unidos (Samson, 2008, p.65). Com esse antecedente, não nos espanta que Bolsonaro tenha aparecido nas Marchas para Jesus com a liberdade de quem faz gestos simbolizando armas.
A falta de crítica à violência tem sido uma tônica nas lideranças evangélicas em nosso país. O fundamentalismo característico desses grupos demonstra que a religião também tem ganhado força na América Latina. Para além da análise de Huntington, muitos autores demonstram que essa força política fundamentalista tem uma capacidade de mobilização nada desprezível. Não podemos simplesmente ignorar ou evitar compreender as razões que levam esses grupos a assumirem tais posturas na arena pública. Tampouco é produtivo taxá-los de ignorantes e massa de manobra. Assumir uma postura de diálogo e abertura pode ser útil para aqueles que buscam compreender seus valores e seus medos, os quais servem de base para a ação de seus líderes.

Neopuritanismo ou prosperidade a qualquer custo?
Se pensarmos nas práticas internas dessas igrejas, podemos encontrar elementos que nos ajudam a compreender a aceitação desse caminho por parte dos fiéis. A corrente teológica dominante nas igrejas evangélicas é a Teologia da Prosperidade (Mesquita, 2008). Tanto a Universal como outras denominações inovaram nos chamados usos e costumes e, principalmente, na maneira de encarar a vida terrena. Alguns pesquisadores destacam a rejeição da redenção pela pobreza e pelo sofrimento e ruptura de uma tradição de resignação arraigada na história do protestantismo. Com isso, essas igrejas acabam por inverter a postura puritana tradicional de rejeição à busca de riqueza, de poder terreno, de prazeres mundanos e do livre gozo e uso do dinheiro.
Isso cria as condições necessárias para que o fiel seja levado a compreender que a bênção divina é simbolizada pelo sucesso econômico. Assim, a conduta e o discurso sobre o sucesso no “próprio negócio” são muito valorizados. A pessoa que consegue ser um empreendedor, que tem êxito em um novo negócio, é visto como alguém que alcançou a graça divina. Para reforçar essa imagem, as denominações têm estabelecido estratégias voltadas, por exemplo, à gestão de cursos sobre empreendedorismo, qualificação profissional, atividades de geração de renda etc. Observa-se, com isso, a capacidade delas de mobilizar e estimular esses fiéis ao auto-emprego, em um ambiente no qual as condições de trabalho estão em constantes mudanças. Eles seriam empresários de si mesmos, estandartes da glória divina na Terra.
A partir desses elementos seria possível traçar um norte de compreensão do porquê essa onda evangélica, notadamente conservadora e fundamentalista, casa bem com o neoliberalismo de nossos dias, em nosso continente. A própria membresia acredita piamente na riqueza fruto do empreendedorismo e do mérito individual. Não se importa – e até critica – políticas de bem estar social, por achá-las promotoras da preguiça e da vadiagem. Existem até mesmo aqueles que se opõem a iniciativas do governo que criam o que chamam de mães do Estado de bem estar social (Lacerda, 2019, p.40).
Talvez a aderência dos pentecostais à liderança dos Estados Unidos e também a um neoliberalismo avesso às políticas sociais, aliados à falta de crítica às posturas violentas por parte de seus representantes, tenha como elo a compreensão de que as religiões afro e indígena estariam sendo promovidas na mesma medida em que os grupos sociais mais vulneráveis recebessem amparo de políticas sociais. Consideradas por boa parte dos evangélicos como religiões demoníacas, essa percepção acaba por influir no campo político e se torna um fator que oferece barreiras à integração de nossos povos. Não vemos nada mais e nada menos que um reencantamento do mundo em curso. Ao contrário do que afirmava Weber, o neopentecostalismo e mesmo setores importantes do protestantismo histórico acabam por levar à arena pública uma guerra entre Deus e o diabo.
No caso da Bolívia e do Brasil, podemos considerar que os governos apoiados pelos religiosos conservadores promovem abertamente políticas de corte neoliberal e criticam, com a mesma ênfase, a integração com países vizinhos. A prioridade parece ser aderir acriticamente a uma liderança protagonizada pelos Estados Unidos, portador de um pretenso destino manifesto. Um verdadeiro desafio à integração de nossos povos latino-americanos.
João Roberto Barros II é doutor em Filosofia e Ciências Sociais. Na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), atua como professor da graduação em Ciência Política & Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Integração Contemporânea da América Latina (PPG-ICAL). É autor de Poder pastoral e cuidado de si em Foucault (2020) e Biopolítica no Brasil: uma ontologia do presente (2022).
Referências bibliográficas
CHESNUT, Andrew. Born again in Brazil: the Pentecostal boom and the pathogens of poverty. London: Rutgers University Press, 1997.
FRESTON, Paul. Introduction. In: FRESTON, Paul (Ed.). Evangelical Chirstianity and Democracy in Latin America. Oxford: Oxford Univ. Press, 2008, p.1-36.
HUNTINGTON, Samuel. El choque de civilizaciones. Trad. José Pedro T. Abadía. Paidós: Buenos Aires, 2015.
LACERDA, Marina Basso. O novo conservadorismo brasileiro. Porto Alegre: Zouk, 2019.
MESQUITA, Wania. A promessa, a crença e a prosperidade: as gramáticas da Igreja Universal do Reino de Deus. Anthropológicas, Recife, v. 19, n. 1, p.67-90, 2008.
SAMSON, Mathew. From war to reconciliation: Guatemalan evangelicals and the transition to democracy, 1982-2001. In: FRESTON, Paul (Ed.). Evangelical Chirstianity and Democracy in Latin America. Oxford: Oxford Univ. Press, 2008, p.63-96.
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