A BNCC: dilemas, contradições e desafios
Não há como falar em BNCC sem buscar uma definição simples de currículo escolar, algo diferente de um currículo, mais famoso, no qual estão registradas as experiências profissionais e educacionais das pessoas para que possam buscar vagas no mercado de trabalho. Não é desse currículo que falamos. Podemos dizer que o currículo escolar é o conjunto de processos de produção de conhecimento desenvolvidos em/pelas diferentes instituições de ensino.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tema que vem despertando certo desespero entre os professores preocupados com a questão da qualidade na educação, deve, de algum modo, ser apresentada ao grande público. O grande público, aqui citado, significa todo o conjunto de pessoas diretamente fora do debate educacional. Entretanto, por questões éticas e de solidariedade – pode ser que essas pessoas tenham filhos, netos ou sobrinhos em idade escolar -, é bom fazer com que o debate chegue a elas.
Não há como falar em BNCC sem buscar uma definição simples de currículo escolar, algo diferente de um currículo, mais famoso, no qual estão registradas as experiências profissionais e educacionais das pessoas para que possam buscar vagas no mercado de trabalho. Não é desse currículo que falamos. Podemos dizer que o currículo escolar é o conjunto de processos de produção de conhecimento desenvolvidos em/pelas diferentes instituições de ensino. Partindo dessa definição, é possível notar que se trata de algo muito mais complexo que uma simples sequência de conteúdos de uma determinada matéria, como muitos (docentes, inclusive) acreditam. Essa sequência de conteúdos faz parte do currículo escolar, mas não é só isso. Podemos incluir, no rol do que conhecemos como currículo, projetos, mesmo os realizados fora de sala de aula, de forma minimamente sistemática para que possamos afirmar que tais projetos “fazem parte do currículo da escola”: cine-debates, hortas escolares, oficinas, excursões pedagógicas, projetos presentes no projeto político-pedagógico de cada instituição, dentre tantos outros.
Perigos e alternativas
Muito se tem dito sobre os perigos que a BNCC oferece à educação brasileira. Nosso objetivo, aqui, é o de apresentar tais perigos e o de propor alternativas, pois, de modo geral, é comum que os debates sobre currículo excluam boa parte da população, incluindo docentes da educação básica. Afinal, em um país com tradições autoritárias, não há motivos para ouvir as opiniões, anseios, expectativas e sonhos do povo, das crianças e nem de seus pais e mães. Basicamente, os documentos oficiais são produzidos por acadêmicos alinhados a certas propostas, empresas e grandes acionistas individuais. São esses grupos que definem como a educação deve ser, como ela deve ser concretizada e o que é a educação de qualidade. Critérios, práticas, avaliações e condições de ensino-aprendizagem, dentre outros aspectos, são definidos por esses grupos, enquanto, aos docentes da educação básica, resta a execução daquilo que tais grupos definiram.
Por uma questão de rigor, é importante ressaltar que o debate sobre uma base nacional não é recente e nem é exclusividade do atual governo. Além disso, não é um debate novo. O grande ponto é que, mesmo não sendo um debate recente, o documento final representa a forma como o governo enxerga a educação e os processos de escolarização.
Todo e qualquer documento oficial será bem escrito, apresentará termos que seduzirão os leitores. A ideia é exatamente essa. O documento oficial, à primeira vista, não apresentará falhas aos olhos mais desatentos.
A BNCC é um documento oficial prescrito, ou seja, é uma determinação, apresenta aquilo que professores e professoras de todo país devem cumprir. O livro didático é o principal meio de apresentação dessa determinação. É o livro didático que, indiretamente e sutilmente, ordena “faça isso”. Uma pena que ainda muitos docentes se recusem a ler e refletir sobre o tema, usando, de maneira arbitrária, este recurso. Resultado de um processo histórico de compartimentação do conhecimento, o que afeta a formação de docentes. Predomina a ideia de que o que vale é dominar muito a disciplina que se ensina, apenas.
Base comum
A fim de situar os leitores, é importante dizer que antes da Base Nacional Comum Curricular, tivemos os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), publicados em 1998. De modo geral, podemos dizer que os PCNs já buscavam uma base comum, embora prezando por uma maior autonomia e por um maior respeito às diferenças, algo necessário em um país tão grande e tão diverso como o nosso. A proposta dos Temas Transversais é um exemplo disso. Propõe-se temas, de modo que cada escola ou cada rede, desenvolva o trabalho de maneira relativamente autônoma e, de preferência, interdisciplinar. No entanto, 21 anos depois, pouco avançamos nesse sentido.
Inicialmente, há dois aspectos que nos chamam atenção. O primeiro deles é o aparecimento do termo “resiliência”, como qualidade a ser adquirida/aprimorada pelos estudantes. A resiliência é a capacidade de algum corpo voltar à sua forma original após algum choque. Em outras palavras: é a capacidade de superar problemas. É no mínimo curioso que isso apareça em um documento oficial emitido por um órgão oficial, sobretudo se pensarmos no período atual, marcado pela ofensiva contra direitos dos trabalhadores. A resiliência significaria perder o emprego sem nenhum direito e mergulhar propositalmente e prazerosamente na espiral da precariedade?
Ensino religioso
Em segundo lugar, temos a obrigatoriedade do ensino religioso no ensino fundamental – anos iniciais (do 1º ao 5º ano). Sem dúvidas, é uma forma de o atual Presidente da República “pagar” sua dívida com setores religiosos. A vitória nas últimas eleições se deve a eles, também, e nada mais “justo” (com eles e entre eles) que tornar obrigatório o ensino religioso. De modo mais abrangente, o ensino religioso poderia ser útil no sentido de trabalhar os chamados conteúdos atitudinais (atitudes e valores), mas, ainda assim, tais conteúdos podem ser trabalhados por todas as matérias, não sendo exclusivos das religiões em si. Considerando o contexto atual, essa obrigatoriedade assusta. Vale lembrar que o Brasil é um país laico, ou seja, sem nenhum vínculo estatal com religião alguma, o que não exclui a possibilidade da coexistência entre religiões diversas em nosso território.
Todo e qualquer documento oficial do campo educacional apresenta lacunas. Lacunas indicam brechas por onde podemos atuar. Alternativas não nos faltam: adoção de pedagogias de projetos (e não de resultados) nas escolas, trabalhos transdisciplinares ou interdisciplinares, redução do uso do livro didático (um dos grandes responsáveis por transmitir ordens aos professores) e adoção de uma concepção ampliada de currículo escolar, o que, sem dúvida, exige que os professores invistam em leituras sobre o conceito.
A Base Nacional Comum Curricular possui cerca de 600 páginas, sendo impossível, portanto, um tratamento pormenorizado do documento. O intuito, aqui, foi o de apresentar, mesmo que muito resumidamente, o documento aos não-especialistas em educação, para que saibam do que se trata, além de convidar aqueles que trabalham nesse meio a pensarmos juntos em alternativas mais socialmente justas e democráticas.
Giam C. C. Miceli é professor de Geografia da rede de Itaboraí, pós-graduado em Educação e mestre em História da Educação.