Direito à educação com igualdade de gênero
Avanços jurídicos e políticos no sentido de garantir a igualdade de gênero na educação encontram fortes obstáculos para sua concretização nas escolas de diversos países da América Latina e do Caribe. Barreiras culturais, falta de vontade dos governos e avanço de tendências fundamentalistas conservadoras e religiosas afetam meninas e mulheres
Como Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação (Clade), temos acompanhado os desafios e os avanços para a garantia da igualdade de gênero e o respeito à diversidade na educação em nossa região e no mundo.
Meninas e mulheres são discriminadas durante a educação em termos de acesso, permanência, conclusão, tratamento, resultados de aprendizagem e escolhas de carreira, o que resulta em desvantagens que vão além da escolaridade e do ambiente escolar.
A presença de estereótipos de gênero nos currículos, livros didáticos e processos de ensino, a violência que enfrentam dentro e fora da escola, restrições estruturais e ideológicas e a dominação masculina em determinados campos acadêmicos e profissionais são fatores que impedem meninas e mulheres de reivindicar e exercer o direito humano à educação em condições de igualdade.
A Recomendação Geral n. 36 do Comitê Cedaw, da ONU, aponta alguns desses desafios e sugere aos Estados que promulguem e apliquem leis, políticas e procedimentos apropriados para proibir e combater a violência contra meninas e mulheres nas instituições educativas e seus entornos. Propõe também que sejam desenhados e aplicados currículos obrigatórios com informações integrais sobre saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Consideramos essa recomendação um instrumento de direitos humanos muito importante, que deve ser usado na luta contra o patriarcado, por igualdade e pelos direitos de meninas e mulheres.
Outro instrumento que se aplica a essa luta é a Agenda dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), adotada pelos Estados-membros da ONU em 2015, que reconhece que “a igualdade de gênero está inextricavelmente ligada ao direito à educação” e estabelece o compromisso de garantir uma educação inclusiva e de qualidade para todas e todos, e eliminar todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas até 2030.
Na última década foram observados avanços com relação à inclusão da perspectiva de gênero na educação em distintos países da região, conquistas que têm sido alvo de grupos conservadores que tentam impedir a continuidade e a concretização dessas mudanças, ou mesmo querem promover retrocessos em relação ao que já se havia avançado. O seguimento dessas transformações enfrenta barreiras culturais, falta de vontade dos governos e avanço de tendências fundamentalistas conservadoras e religiosas, que invocam a existência do falso conceito de “ideologia do gênero” para promover mobilizações, ações judiciais e campanhas de desinformação, entre outras estratégias, contra a realização de uma educação laica e com enfoque em direitos, o que inclui abordar nas escolas a igualdade de gênero, a diversidade sexual, o direito à identidade de gênero e a educação sexual integral. Trata-se de uma tendência regional que abarca países como Brasil, Colômbia, Costa Rica, Equador, Peru, Paraguai e Uruguai.
No caso do Brasil, o movimento Escola Sem Partido vem promovendo propostas legislativas e outras ações para proibir a abordagem das questões políticas e relacionadas a gênero e orientação sexual na educação. Também se observam retrocessos para a igualdade de gênero no conteúdo da nova Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e no fato de terem excluído a referência a “gênero” do Plano Nacional de Educação e de outros planos estaduais e municipais de educação aprovados no país. Outro retrocesso foi a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de setembro de 2017 que determinou a constitucionalidade do ensino religioso confessional nas escolas, o que contribui para a censura da abordagem de questões relacionadas a gênero e sexualidade nos centros educativos.
Na Colômbia, a elaboração no âmbito do Ministério da Educação de um guia que abordava o tema das orientações sexuais e identidades de gênero não hegemônicas na escola, dirigido a docentes e com o objetivo de adequar os manuais de convivência escolar à diversidade sexual e à não discriminação, gerou enérgicos questionamentos de grupos ultraconservadores e confessionais fanáticos do país.
Já na Costa Rica, um programa de estudos para a afetividade e a sexualidade integral do Ministério da Educação, que seria colocado em prática este ano, tem gerado forte rechaço por parte de setores religiosos fanáticos, que entendem que esse programa promove a “ideologia de gênero” nas escolas. No Equador, sob o slogan “Con mis hijos no te metas”, são organizadas mobilizações e marchas contra iniciativas legislativas vinculadas à igualdade de gênero e para que não seja incluído o enfoque de gênero nos currículos educativos.
No Peru há fortes questionamentos à introdução de um novo Currículo Nacional de Educação Básica, que inclui o enfoque de gênero, a promoção da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, a construção da identidade de gênero e a educação sexual integral.
No Paraguai, uma resolução do Ministério da Educação proibiu a difusão de materiais que abordam a questão de gênero em instituições educativas. No Uruguai, a Justiça negou demanda apresentada por um conjunto de pais e mães contra a divulgação de uma proposta didática para a abordagem da educação sexual nas etapas inicial e primária de ensino.1
Desigualdades e discriminações por trás das estimativas educativas
Em geral, os países da América Latina e do Caribe avançaram de modo substantivo em relação à paridade entre homens e mulheres nas estatísticas educativas, tanto no acesso quanto no desempenho escolar. No entanto, persistem graves obstáculos para a realização plena do direito humano à educação de meninas e mulheres, que vão muito além do acesso escolar ou do tratamento que elas recebem nas escolas.
Entre as principais barreiras estão o trabalho infantil (especialmente o doméstico), o matrimônio e a gravidez precoces, conflitos armados – que afetam de maneira especial meninas e mulheres –, a situação de pobreza, a influência de religiões nas decisões sobre a política educativa, entornos escolares perigosos e violentos e, principalmente, práticas discriminatórias que se repetem nas escolas, refletindo construções ideológicas e culturais machistas, patriarcais, heteronormativas e heterossexistas dominantes em nossas sociedades, as quais violam um conjunto de direitos humanos, sobretudo o direito a uma vida digna, livre de violência e discriminação.
Para além da educação, permanecem outras fortes injustiças contras as mulheres: sua reduzida representação política e os salários desiguais que recebem, sua responsabilidade quase exclusiva pelo trabalho doméstico e o cuidado das pessoas, a criminalização do aborto e a violência, e os índices de feminicídio na região continuam alarmantes.
Todos esses elementos revelam que a igualdade de gênero ainda está longe de ser realizada plenamente, e a mudança desse cenário depende de uma transformação cultural e da mudança de pensamentos enraizados, o que entendemos que só se tornará possível por meio da reflexão e do olhar crítico sobre a realidade, elementos esses que podem e devem ser promovidos na e pela educação.
Como a educação sexual integral pode promover a igualdade de gênero
Especialistas consideram2 que a educação sexual integral implica reconhecer, desde a infância, meninos e meninas como seres sexuados, de forma informada, livre, responsável, e sem vincular a sexualidade e o diálogo sobre gênero apenas à questão reprodutiva, e sim tratando esses temas de uma perspectiva sociocultural.
Para esses especialistas, a educação sexual integral não tem apenas relação com a reprodução, a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e a gravidez precoce, ou a mudança no corpo dos estudantes durante a puberdade. A educação sexual integral vai além desses fatores e inclui o conhecimento sobre o próprio corpo e seu cuidado, a reflexão sobre os sentidos e significados da sexualidade e as vinculações e relações entre meninos e meninas.
Graças a esse olhar, professores e estudante podem reconhecer e valorizar as diferenças e similaridades entre os gêneros, superando estereótipos e preconceitos, trabalho importante de realizar desde a educação infantil, não apenas na adolescência, pois a educação sexual integral tem também o papel de prevenir e combater casos de violência contra crianças, por meio do espaço de diálogo e da relação de confiança que se cria entre estudante e docente.
A educação deve trazer uma reflexão sobre os gêneros, não como uma divisão sexual anatômica que justifica diferenças, mas como construções sociais sobre os conceitos de feminilidades e masculinidades em nossas sociedades.
A “Consulta sobre a discriminação na educação na primeira infância”,3 lançada pela Clade em 2014 e realizada com mães, pais, crianças, docentes e profissionais de escolas de educação infantil de Brasil, Colômbia e Peru, revela que a discriminação por razão de gênero se manifesta já no convívio entre estudantes da educação inicial. A consulta mostra também que há uma grande abertura de meninas e meninos dessa faixa etária para, orientados por um educador, identificar determinados comportamentos como incorretos (por exemplo, impedir uma colega de jogar futebol porque é “menina”) e rever as próprias posições com base em novas experiências.
O primeiro passo para superar a discriminação é reconhecer que ela existe em todas as modalidades e etapas educativas. Defendemos que todas e todos devem ter igual acesso aos direitos à educação para a igualdade de gênero e à educação sexual integral, pois discutir essas temáticas representa não apenas abordar os direitos de meninas e mulheres, mas também refletir sobre os papéis e os estereótipos atribuídos aos gêneros em nossas sociedades, o que inclui questionar e reconstruir nossos conceitos de feminilidades e masculinidades, para que sejam mais sensíveis e responsáveis e busquem a construção de sociedades cada vez mais inclusivas, pacíficas e democráticas. Nesse caminho, é fundamental que a educação promova, para meninos e meninas, o aprendizado por meio da livre expressão, do autoconhecimento e do reconhecimento das próprias identidades e sexualidades.
Distribuição desigual de funções e falta de representatividade
A maioria dos docentes em nossa região hoje é formada por mulheres, especialmente na educação infantil. Isso acontece porque as mulheres, em geral, são relacionadas a funções de educação e cuidado ou a áreas do conhecimento relacionadas à sensibilidade, à subjetividade, à intuição e a áreas humanas, enquanto os valores de racionalidade e objetividade geralmente são atribuídos a homens e meninos.
Esses preconceitos e estereótipos afetam o direito de meninas e mulheres de escolher profissões, funções e campos de conhecimento que querem desempenhar e nos quais querem se desenvolver. A falta desse debate e dessa problematização nas escolas é o que leva à persistência e à reprodução de pensamentos machistas e discriminatórios, que infelizmente hoje acompanham meninos e homens em suas trajetórias na educação e na sociedade.
Também faltam representatividade, reconhecimento e valorização das meninas e mulheres nos planos, conteúdos e práticas escolares. São inúmeras as mulheres que foram e têm sido fundamentais para a transformação de nossas sociedades rumo à igualdade, à garantia de direitos para todos e à superação da violência e da discriminação, e que pela relevância de sua luta deveriam ser citadas em sala de aula.
As celebrações do Dia Internacional da Mulher deste ano homenagearam de maneira especial as mulheres ativistas, chamando a atenção para os altos níveis de violência de que são alvos essas defensoras dos direitos humanos em todo o mundo e fazendo um chamado aos Estados para que garantam proteção e justiça a essas mulheres.
O Dia Internacional de Luta contra a Violência Sofrida pelas Mulheres é celebrado pela ONU em 25 de novembro, data em que, em 1960, as três irmãs Mirabal – Minerva, María Teresa e Patria –, conhecidas como “Las Mariposas”, foram assassinadas por terem formado um movimento de oposição direta contra a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana. Infelizmente, casos como esse não ficaram só na história. Em 3 de março de 2018 relembramos também o aniversário de dois anos do assassinato de Berta Cáceres, ativista pelo meio ambiente e líder indígena de Honduras. Poucos dias depois, recebemos com estarrecimento e indignação a notícia do assassinato brutal de Marielle Franco, vereadora feminista, negra, lésbica e lutadora pela igualdade e contra a discriminação e a violência, no Rio de Janeiro.
Casos como esses não podem ficar impunes, e abordá-los na educação e em outros âmbitos e espaços de nossa sociedade é fundamental, para que essas formas de violência e injustiça tenham sua existência reconhecida e, com isso, sejam superadas.
*Fabíola Munhoz é coordenadora de comunicação e mobilização da Clade.