A bordo do “Marrakech Express”
Todo ano, centenas de milhares de imigrantes marroquinos regressam ao seu país de origem no verão. Alguns o fazem por mar, em um dos navios da linha Sète-Tanger. Para eles, a longa travessia oferece a ocasião para reavaliar o passado e se interrogar sobre o destino
Os eixos rangem, os canos de escapamento raspam o solo e inúmeros bagageiros ameaçam desabar sob uma montanha de objetos, cobertos por lonas azuis ou verdes. O que elas escondem? “Geladeiras, bicicletas, máquinas de lavar, escadas, carrinhos, utensílios comprados nas feiras, que os franceses jogam fora quando não funcionam mais, mas que nós não hesitamos em consertar”, brinca Samia, uma jovem economista de Agadir, de volta ao Marrocos após sua viagem de núpcias na França. “Para nós”, prossegue o marido, “marroquinos do Marrocos, é sempre prestigioso ter um parente que trabalha na França. Quando ele chega com seu automóvel carregado na aldeia, isto é um orgulho diante dos vizinhos”.
Quarta-feira, 4 de julho, dia de grandes partidas. Desde o amanhecer, carros e furgões já se alinharam prudentemente no vasto estacionamento do Porto de Sète, na costa mediterrânea da França. Com placas de licenciamento principalmente francesas, mas também belgas, holandesas, italianas e alemãs, todos têm o porta-malas abarrotado. Às 18h45, o último furgão consegue entrar na balsa. As espessas cordas são desamarradas e as hélices erguem uma lama marrom das profundezas1. Com apenas três quartos de hora de atraso, o Marrakech Express finalmente desatraca.
A duração prevista para a travessia é de 36 horas. Partiremos à noite, passaremos um dia inteiro e mais uma noite no mar, e, se tudo correr bem, chegaremos a Tânger na manhã do segundo dia.
A bordo, os relógios marcam 17h45 horas. Uma hora realmente estranha, uma vez que são 16h45 no Marrocos e 18h45 na França. Uma hora meio-termo, expressão do espaço incerto que se estende entre a Europa e a África. Sobre o convés, as crianças correm, excitadas com a descoberta do navio e de seus múltiplos esconderijos. Para a travessia de 4 de julho, o Marrakech Express está completamente lotado.
Desde fins de março, não era mais possível encontrar um único lugar. Nem para esta nem para as datas seguintes do mês de julho. Para agosto, é na trajeto em sentido contrário que os lugares não existem.
Mal coloca as bagagens em sua cabine, Naima vem sentar-se na “Medina”, um dos dois salões de que o barco dispõe. O mar está calmo, uma brisa refresca o ar desse dia quente. Com um olhar distraído, a jovem assiste a um programa de calouros transmitido pela rede de televisão marroquina, captada por satélite. Os apresentadores falam árabe e francês, indiferentemente. Assim como os jovens cantores, que utilizam também o inglês. “É bom que eles falem francês, porque não entendo quase nada de árabe”, comenta essa moradora de Versalhes, de 32 anos, nascida na França de pais marroquinos.
“Como em todos os verões há 32 anos, volto para casa com minha família”, acrescenta. Para a casa de quem? “Bem, para a nossa casa, no Marrocos. Tenho duas casas: Sou 50% francesa, 50% marroquina. Estou bem adaptada na França, ao contrário do que se ouve por aí. Na verdade, sou berbere de origem. Mas, para mim mesmo, sou árabe. E, quando digo árabe, isso significa todos os países orientais”.
Na frança, não faltava trabalho
Será que ela conhece a diferença entre árabes e berberes? “Sinceramente, não, jamais me coloquei essa questão”. Um homem se aproxima, com um caloroso sorriso por trás do bigode grisalho, cuidadosamente aparado. É o pai de Naima. Nascido em Beni Mellal, chegou à França em 1966.
Funcionário na indústria química, depois na de tintas, trabalha hoje em Dijon, na produção da mostarda Maille. Ele explica à filha: “Os verdadeiros habitantes do Marrocos são os berberes, divididos em três categorias: os de Souss, os de Rif e os de Atlas. Os árabes vieram depois”. Os motivos da sua imigração?
“Em 1956, quando a França deixou o Marrocos, o país estava a zero: sem executivos, sem indústrias, sem estradas. Em casa, éramos cinco crianças, e meus pais não tinham meios. Nosso pai nos disse: a porta está aberta. E na França não faltava trabalho”.
Naima votou em Ségolène Royal, mas não está triste com vitória de Sarkozy. E justifica sua posição elogiando a política do atual presidente francês em relação aos reincidentes: “Maiores ou menores, eles serão punidos da mesma forma. É isso!” Seu pai jamais requereu a naturalização. “Estou bem assim.
Trabalho, pago meus impostos, sou vice-presidente de uma associação. Mas não voto. Em compensação, incentivei meus filhos a se envolverem. Tenho até uma filha conselheira municipal!” Naima é funcionária da polícia. Um de seus irmãos trabalha na Orange2, um outro é educador esportivo, uma irmã é enfermeira. “Tivemos, todos, uma boa educação. Devemos deter os drogados, os delinqüentes, os carros incendiados. Tudo isso é um problema dos pais!” Seu pai não está totalmente de acordo: “Existe também problemas do lado da lei. Tenho um amigo que bateu na filha de 14 anos porque ela roubou 30 francos. Chegando em casa, ele tirou o cinto e deu-lhe uma boa surra. E o que fez a Justiça? Deu-lhe 18 meses de prisão! Como querer que os pais eduquem os filhos, se eles são condenados quando os punem?”
A noite cai no horizonte. Às 19h30, hora do navio, uma voz feminina convida os passageiros da classe “Confort” a se dirigirem ao restaurante. Os passageiros estão divididos em duas categorias distintas: os da classe “Confort” e os da classe “Turismo”. Os primeiros ficam em cabines com janelinhas, para duas ou quatro pessoas, e jantam no restaurante, com garçons e toalhas de algodão. Os segundos dormem em cabines de quatro sem janelinhas ou, pior, na sala “Pullman”, em cadeiras inclinadas. Para a refeição, devem se contentar com o bar e seus pratos levemente engordurados. Qualquer que seja a cabine, homens e mulheres são sempre separados, exceto se a família pagou pelas quatro camas.
Stéphane, sua mulher Chadia e seu filho Enzo foram colocados na mesa 27 pelo chefe da sala. Ela, marroquina de aparência tímida, apesar dos cabelos descoloridos e de uma camiseta extremamente decotada, come pouco. Ele, jovem bombeiro da Côte d’Azur, explica que o casal vem ao Marrocos todos os anos, desde que se casaram há dez anos. “É um verdadeiro prazer.” E cochicha: “Você sabe, os árabes do Marrocos não têm nada a ver com os árabes dos subúrbios. Somos respeitosos”. Falamos de política. Ele: “Estou contente que Sarkozy tenha vencido. Desde que ele cumpra suas promessas.” Depois acrescenta: “Tenho colegas racistas que votam em Le Pen, mas isso não me impede de convidá-los à minha casa. Ela: “Eu não gosto. Concordo que é preciso ‘limpar’ os subúrbios. Mas, ainda assim, não esqueço que sou árabe”.
Abafados em seus cobertores
Os passageiros já se acomodam para a noite. Os da sala “Pullman” espalham colchões e cobertores diretamente no chão, entre as fileiras de cadeiras e os corredores vizinhos. Mais tarde, quando todos estão dormindo, um homem tira algumas fotos desses migrantes espremidos uns contra os outros, abafados em seus cobertores coloridos. Imediatamente, um agente do navio interfere, explicando que é proibido fotografar os passageiros. “Bobagem!”, confidencia Hamid3, outro membro da tripulação. “A verdade é que a Comanav4 cultiva a imagem de uma empresa pública a serviço dos marroquinos residentes no estrangeiro. E não quer que se saiba de que maneira ela trata seus compatriotas”.
Quinta-feira, 5 de julho. O dia transcorre tranqüilamente, ao ritmo das refeições. Um grupo de adolescentes, vindos dos quatro cantos da França, se conheceu na noite anterior, na sala “Kasbah”, transformada em discoteca. “Estava muito ruim, não tinha ninguém”, suspira Nadia, 19 anos, de Berhen-lès-Forbach, Moselle. “Mas esta noite, eu juro, vai estar cheio!” Diarista em uma fábrica na Alemanha, exatamente do outro lado da fronteira, ela transborda energia. Na volta, pretende retomar os estudos, para “largar o emprego podre”. Nascida na França, também fala perfeitamente o árabe e o berbere. “Este ano, eu queria ir à Sicília com meus amigos. Mas minha mãe disse: Gem’hi balizteq, radyin al Maghrib, u baraka men sdah! (Vá arrumar suas malas, vamos para o Marrocos, e deixe de besteira!). Salima, 15 anos, nascida na Córsega, morre de rir: “Os franceses comemoram o Natal todos os anos. Nós, todos os anos, vamos ao Marrocos!”
Farid, 18 anos, acaba de ingressar na faculdade, em Port-Saint-Louis-du-Rhône: “Meu problema é que meus pais nunca falaram árabe comigo. Então, quando estou no Marrocos de férias, é um inferno”. Issam, 21 anos, entra na conversa e se exalta: “É pior que isso”. Criado pela mãe no Marrocos até a idade de 14 anos, juntou-se depois ao pai, operador de guindaste na França. “Num verão, voltei ao bairro onde fui criado. Um bairro muito pobre de Fez. Ao dobrar uma esquina, um cara saca uma faca de cozinha e me manda entregar minha mochila e minha camiseta. Eu dou e depois falo: ‘E aí, Essrine, não está me reconhecendo? Sou eu, Issam, jogamos futebol durante dez anos na rua aí do lado’. De repente, esse velho amigo do bairro me reconheceu, largou a faca e as minhas coisas e começou a chorar”.
A ponte na popa, onde os jovens se instalaram, reúne boa parte dos passageiros. Um bar modesto oferece chá de menta com excesso de infusão e cerveja fresca a três euros a garrafa. Sob um sol escaldante, uma música aguda escapa dos alto-falantes. Chega então o tema inevitável: as relações entre rapazes e moças. Nadia: “Não sou racista, mas, sinceramente, acho os árabes mais atraentes. Já saí com um francês, mas não é a mesma loucura. E, depois, um francês não consegue te entender. Ele sempre pergunta por que é preciso se esconder”. Leila, 16 anos, dá seu depoimento: “Em Marselha, onde eu vivo, os árabes são tímidos. Além do mais, eu gosto dos emos5”. Farid: “Pra mim, árabes ou francesas. Mas, de preferência árabes. Com uma francesa, vai tudo bem no começo, mas, depois de uma semana, ela já quer te apresentar para os pais. Com uma árabe, não tem esse risco”. Salima: “Tive um namorado corso por três anos. Eu falava corso, bebia corso, comia corso. Menos porco! Porque eu como comida hallal6”. “Ninguém come carne de porco no grupo”, intervém Nadia. “Todos bebem álcool, fumam cigarros e fazem o Ramadã7. Por que eu não faria? Isso faz parte da minha religião. Meus pais nunca me obrigaram, mas estamos no ambiente, no bairro todo mundo faz. Quanto a beber, é top secret! Se meus pais descobrem, eles me arrancam do álbum de família!8”
Enquanto os jovens contam suas histórias, os pais matam o tempo em um dos dois salões. O pai de Nadia está diante de um café há duas horas. Ele conversa com Misbah, que vem da mesma cidade que ele, Kenifra, entre Meknes e Marrakech. “Nós dois fomos recrutados pelo senhor Mora, enviado das Charbonnages de France. Direto para o fundo das minas da Lorena. No começo, recebíamos 1.500 francos por mês, enquanto no Marrocos ganhávamos no máximo 1.000. Quando parti, tinha a idéia de que voltaria ao Marrocos com a aposentadoria. Mas, agora, que estou aposentado, é impossível partir. Meus filhos ainda estão na escola”. E quando o último tiver saído de casa? “Mesmo assim, eu ficarei na França. Porque é onde meus filhos estão. Se estiver no Marrocos, ficarei pensando neles o tempo todo.” Vestidas, cada uma, com uma djellaba azul-celeste e um lenço branco, sua esposa e a de Misbah dividem a mesa ao lado. Apesar de trinta anos de presença na França, elas falam o francês com muita dificuldade. Estão felizes de viver em Berhen-lès-Forbach? Sem responder, os dois homens riem, os olhos plissados.
Com seu belo carro, para se gabar
É de tarde, faz calor. De repente, muito próxima, surge a vegetação das Ilhas Baleares. Os empregados do restaurante vêm fumar seu cigarro, atrás da ponte inferior. Mohamed, cabelos negros crespos, olhos verdes amendoados, trabalha no Marrakech Express há três anos. Já transportou dezenas de milhares de marroquinos, nos dois sentidos. “Os marroquinos que deixam o seu país são sempre estrangeiros: no país que os acolhe, são considerados imigrantes; no Marrocos, quando voltam para as férias, são tratados como zmigris, que quer dizer imigrantes também!” Seu colega acrescenta: “Nas férias, eles voltam ao Marrocos com seu belo carro, para se gabar, dando a entender que vivem com 5 mil euros por mês. Mas todos os marroquinos sabem que eles passam por maus bocados”. Mohamed volta a falar:
“Os franceses esvaziaram a África de suas riquezas e agora dizem aos imigrantes que vêm trabalhar honestamente: vocês não têm nada que fazer aqui. Mas, e eles, o que eles tinham que fazer na África?”
Mohamed cresceu na praia de Mohammedia. “Meu pai é um ‘barbudo’9, minha irmã anda de véu, e eu, que bebia em casa, tive que partir!” Isso não o impede de ser um muçulmano convicto e de denunciar a visão depreciativa do islã veiculada no Ocidente. “A mídia é responsável por essa imagem ruim, em particular o lobby judeu. Evidentemente, eu sou contra matar inocentes em nome do islã. Mas no ataque ao World Trade Center, dizem que milhares de judeus trabalhavam lá, e que, por coincidência, nenhum deles estava presente no dia do atentado”10.
Incógnitos no meio da multidão, dois homens foram colocados a bordo pela polícia francesa. São os “reconduzidos”, como são chamados pelos membros da tripulação. “O Ministério do Interior da França fez um acordo com a Comanav”, explica Grégory, um agente da Euromer, a agência de viagens que emite a maior parte das passagens. “Uma cabine para duas pessoas é reservada para os reconduzidos à fronteira. E, no Marrakech Express, são duas cabines, para o caso de haver mulheres”. Em que cabine estão esses dois homens? “Não posso dizer”, responde o comissário de bordo, visivelmente incomodado pelo fato de o assunto ter vindo à tona. “Mas eles não estão trancados, têm o direito de circular livremente, nenhum policial francês os acompanha”.
Porém Grégory deixa escapar que, no Marrakech Express, eles viajam fechados na cabine. “Porque, há dois anos, um deles pulou no mar, a dois quilômetros da costa. Conseguimos repescá-lo, mas foi preciso parar as máquinas e o navio sofreu um grande atraso”. De onde vem o incômodo do comissário? “Eles sentem um pouco de vergonha por participar dessas expulsões de compatriotas”, explica o agente da Euromer. “E essas cabines são totalmente faturadas ao Estado francês”. No momento de passar à mesa para o jantar, uma onda grande sacode o navio. A tripulação se movimenta para todos os lados, distribuindo saquinhos de papel aos passageiros.
Quinta-feira, meia-noite, salão “Medina”. O local está cheio. Sobre um pequeno estrado, um homem toca violão e canta árias de chaâbi11 ao microfone. A seu lado, substituindo toda uma orquestra oriental, um homem dedilha o sintetizador. Descontraído, o pai de Naima está lá, vestindo um magnífico djellaba com reflexos castanho-prateados. “Na França, eu não ousaria sair assim na rua. Se estou na França, faço como os franceses. Mas aqui, neste navio, já estou um pouco no Marrocos”. Até os jovens, decepcionados com a falta de animação na discoteca “Kasbah”, vêm ouvir a música “dos velhos”. Na pequena pista, um homem embriagado dança com movimentos soltos, atraindo à sua volta algumas mulheres divertidas. Os espectadores sorriem. Antes de ir se deitar, o pai pede: “Gostaria que você pusesse em seu jornal: ‘quando cheguei à França, nas fábricas, na Citroën, na Simca, as máquinas ainda eram a vapor, o óleo fervente espirrava por todo lado. E quem as fazia funcionar? Somente estrangeiros.
Para a construção de pontes e estradas, a mesma coisa. E hoje, que está tudo modernizado, que demos à França toda a força dos nossos vinte anos, eles não nos querem mais! Dizem que viemos comer o seu pão. São palavras insuportáveis”.
Sexta-feira, 6 de julho, dez da manhã, hora marroquina. Em virtude de um mar um pouco agitado, somente após 41 horas de viagem é que Tânger surge finalmente ao longe. Mal ultrapassamos o estreito de Gibraltar, e um vento forte vem açoitar o navio. É difícil perceber que tocamos aqui a primeira borda da África. A cidade se aproxima. No centro da paisagem, magnífico, um imenso minarete domina o cenário. À direita, as casas brancas da Kasbah e da Medina precipitam-se em cascata para a margem. À esquerda, ao longo da praia, imóveis modernos, que surgiram às dezenas em menos de uma década, anunciam as modificações em curso no país. Em menos de um ano, o novo porto, imenso, receberá os primeiros cargueiros vindos da China. É lá também que o Marrakech Express atracará, a 40 quilômetros de Tânger. Antes de pegar seu carro no porão, Zineb, professor de economia em Toulouse, deixa seu olhar deslizar pelas colinas áridas dos contrafortes do Rif. “A vantagem do navio sobre o avião é que ele permite uma aclimatação progressiva. Retomamos docemente nossas origens.”
*Pierre Daum é jornalista.