A caminho da desumanização
Ao desafiar as grandes conquistas civilizadoras do século 20, as “novas” relações de trabalho destróem a solidariedade, invadem o espaço privado, solapam relações com amigos e família e impõem uma ética que valoriza a submissãoDanièle Linhart
Todo mundo já recebeu ligações telefônicas em casa, muitas vezes à noite, de agentes de telemarketing. Em alguns países, quando buscam ampliar a clientela, os tele-operadores e operadoras chamam as pessoas por seu nome e se apresentam de maneira instigante. A conversação se inicia de maneira personalizada e terminará com algo como: “Se preciso, volte a me chamar. Eu responderei pessoalmente, pois estou encarregado do seu caso”. Nem todo mundo sabe que a ordem imposta aos operadores é que todos se apresentem com o mesmo nome e sobrenome falso. O objetivo não é somente disfarçar eventuais nomes de composição extravagante, mas fazer o cliente acreditar que conta com um acompanhamento personalizado, quando na verdade passa, a cada comunicação, de um operador a outro, graças aos dados constantes do computador. Estes dados, imediatamente acessíveis, permitem a cada tele-operador transmitir a idéia de que se lembra de seu interlocutor.
Para satisfazer o cliente, os assalariados são levados a adotar comportamentos onde se mesclam mentira (inclusive sobre sua identidade), intromissão na vida privada, às vezes pressões e conselhos contra-indicados (quando teimam em oferecer serviços e produtos evidentemente inadequados). Cercado numa teia de pressões tailorianas – com objetivos muito precisos, a serem realizados durante um número obrigatório de chamadas por hora ou por dia, e que se desenrolam segundo um roteiro prescrito [1] – eles esquecem que lidam com pessoas, e não somente com metas de venda. Também esquecem que são, eles próprios, pessoas. Transformam-se no que José Calderon descreve como “robôs de sedução” [2].
Parte da força dos trabalhadores estava na muralha que conseguiam construir entre vida de trabalho e a vida privada. Em sua casa, o trabalhador não queria se submeter à lei do patrão, reivindicava o domínio do uso de seu tempo
As pressões que pesam sobre os assalariados são tão fortes que eles chegam a odiar os colegas que atrasam o trabalho e também os clientes. Percebe-se isso, por exemplo, na hora da comida rápida. Todos da “equipe” estão no aperto. Sabem que são controlados, de maneira estrita e eficaz, por meio da famosa rastreabilidade de qualquer intervenção (graças à informática, que controla tudo, é fácil saber quem faz o que, quando e como). Por isso, a lentidão, a indecisão, a “ineficácia” dos clientes são, para eles, insuportáveis. Sem falar de eventuais recriminações como a dos consumidores muçulmanos, perturbados por verem cozidos, lado a lado na mesma grelha, costelas de porco e filés de boi, como demonstrou a experiência de um jovem sociólogo na condição de observador participante [3].
É claro que, no passado, as relações de trabalho poderiam estar envoltas de ódio – mas este se exercia contra a hierarquia, às direções. O novo, neste “trabalho moderno” – muitas vezes os primeiros trabalhos dos jovens -, é que a agressividade é dirigida aos pares (os colegas) e sobre pessoas estranhas (os clientes), às custas dos quais deve-se demonstrar sua eficiência e merecer seus prêmios, suas promoções ou mais simplesmente manter seu lugar na empresa.
Mesmo que seja um trabalho interno, joga-se o peso das dificuldades organizacionais sobre a parte mais fraca, transfere-se ao exterior – o cliente, no caso – todas as frustrações ligadas às pressões do trabalho. Este se torna um bode expiatório. O fenômeno é orquestrado pela direção, que procura, desta maneira se defender de qualquer contestação por parte dos assalariados.
Hora de compreender o que mudou
Inserir-se na sociedade não na base do respeito pelo outro e de seus direitos, mas considerando-o como fonte de sua infelicidade ou de seus aborrecimentos, não favorece a adoção de comportamentos cívicos. Não se deve minimizar os efeitos de tais lógicas de socialização no trabalho sobre os assalariados – principalmente sobre os jovens, que têm uma experiência de relações com os outros tão particular. Por isso, é preciso compreender o que mudou.
Durante os Trinta Gloriosos anos após a II Guerra Mundial, as condições da inserção social (ou, sob outro ângulo, as da chegada ao mercado de trabalho), eram resultado de um “compromisso” baseado na existência de uma classe operária capaz de se mobilizar graças a suas organizações sindicais poderosas e apta para obter importantes concessões patronais. Inscrita na estabilidade de emprego, esta classe operária elaborou e expressou seus valores no seio de coletivos de trabalhadores, distantes material e ideologicamente da empresa: solidariedade e ajuda mútua, resistência diante da autoridade unilateral do empregador. Isso conferia aos operários um estatuto de atores coletivos de seu destino. Sob a trama de uma cadeia de pressões particularmente cerradas, conseguiram construir uma independência que podemos classificar de cidadã, tanto na empresa como na sociedade.
No trabalho aprende-se o conformismo, a renúncia a qualquer espírito de controvérsia ou debate e o distanciamento de qualquer crítica
Uma parte de sua força residia também na muralha que eles conseguiram construir entre sua vida de trabalho e sua vida privada. Como resultado de lutas e de mobilizações, a intromissão patronal parava às portas de seu domicílio: em sua casa, o trabalhador não queria mais se submeter à lei do patrão, reivindicava o domínio do uso de seu tempo. Em 1974, quando os operários passaram a condição de mensalistas, a União das Indústrias Metalúrgicas e Mineiras reagiu, e negociou com o Conselho Nacional da Ordem dos Médicos um padrão de conduta para os médicos encarregados por patrões de verificar a real situação dos doentes, em seu domicílio. Foi um verdadeiro grito de indignação. Isto representava, como demonstraram as pesquisas da época, uma afronta aos olhos dos operários. Desencadeou-se um sentimento de revolta contra a idéia de que o patrão pudesse se impor em sua casa, mesmo que por intermédio do médico.
Na nova fase do capitalismo (a chamada “modernização”), a situação mudou. Está decretada obsoleta e arcaica a noção de controvérsia, de situação de conflito. Excluída, a idéia de projeto coletivo, de valores comuns alternativos. Encurralados, a postura crítica e distanciada, a busca de independência e de liberdade. Desqualificadas, as práticas de solidariedade e de auto-ajuda. Foram substituídas pela individualização, a concorrência entre os próprios trabalhadores, a disponibilidade e mobilidade, o questionamento permanente das competências e a obrigação de se submeter continuamente a novas avaliações.
As novas regras do jogo do mercado de trabalho supõem que o trabalhador está, o tempo todo, “no máximo de sua forma”. Por isso, excluem imediatamente uma parte da população e assalariados. Basta ver os problemas enfrentados pelos trabalhadores que superaram os 55 anos, sempre suspeitos de estar em declínio. E em nome disso a associação patronal francesa (MEDEF) e três sindicatos inventaram os contratos por tempo determinado específicos para os maiores de 50 anos.
Para aqueles que chegam a satisfazer às exigências da direção e da gestão da empresa, coloca-se a questão do sentido e da qualidade da socialização. A fim de ganhar seu lugar na empresa, os assalariados devem, transformar-se em militantes incondicionais de sua causa. Qualquer omissão é considerada como uma falta de lealdade. Exige-se um consentimento sem falhas, uma adesão não negociável.
Assalariado vulnerável e sem valores alternativos
Expulso de seus coletivos, preso numa relação puramente individual à sua hierarquia e sua empresa, projetado numa relação de concorrência com seus pares e sem garantia de estabilidade, o assalariado “moderno” é um assalariado vulnerável, sem defesa, privado de sua capacidade de ação e de valores alternativos. Ele é, de certa forma, oferecido à estratégia gerencial que pode deitar e rolar sem grande oposição, pondo em risco muitas dimensões da experiência de vida em comum dentro e fora da empresa.
As possibilidades de experiência coletiva através da ação e os projetos comuns alternativos diminuem. Restam os termos crus do contrato de trabalho, um documento de subordinação
Para ter seu lugar no mundo do trabalho moderno, é preciso aceitar (e poder) se deixar moldar pelo pensamento moderno a partir dos modos pré-estabelecidos de pensar da empresa, de sua filosofia, de sua cultura. Com efeitos sobre a qualidade da socialização. No trabalho aprende-se o conformismo, a renúncia a qualquer espírito de controvérsia ou de debate e o distanciamento de qualquer crítica. Aprende-se a necessidade imperiosa de compromisso com uma causa imposta pelo exterior.
Para todo assalariado, o outro – quer seja: colega, superior hierárquico, usuário ou cliente – torna-se um obstáculo à realização da missão, representa uma tensão suplementar a condições de trabalho já difíceis ou um obstáculo a uma eventual promoção.
Que estão dispostos a fazer os assalariados, para conservar seu emprego ou conseguir um? Sem tomar ao pé da letra as pistas dadas por romancistas como Donald Westlake, (Le couperet [4], encenado por Costa Gavras) e Alain Wegscheider, (Mon CV dans ta gueule [5]), que fazem da procura por emprego um verdadeiro filme policial inclusive com mortes, é preciso ter consciência do que representa, na concorrência do mercado de trabalho e dentro das empresas, o domínio da estreita ética gerencial. O “assalariado moderno” deve saber “se vender”, ser melhor que os outros, se singularizar e prestar juramento para se valorizar.
No início, os Círculos de Qualidade
Para impor esta ideologia e este tipo de relação social, as direções das empresas lançaram-se a uma verdadeira batalha de identidade, com objetivo de racionalizar eformatar a subjetividade dos assalariados, erradicando qualquer veleidade de independência. Nos anos 80 e 90 surgiu um impressionante dispositivo participativo: círculos de qualidade, múltiplos grupos ad hoc, grupos de expressão, ações pela qualidade e seminários em torno da definição de identidade da empresa, de sua cultura e de suas missões. Um dos objetivos era instaurar intercâmbios entre a hierarquia e grupos de assalariados, para que estes últimos interiorizassem as “pressões” da empresa e seus interesses. Isto é acompanhado de um recurso sistemático à comunicação empresarial – com inserção na imprensa – e às formações sob medida, para gravar nos espíritos os “valores da empresa” e impor o consentimento. Sem esquecer as sanções: demissões individuais precedidas de pressão e “colocação no quadro” para dar o exemplo, causar medo e provocar enquadramento [6].
A maneira de cada um submeter-se à lógica da rentabilidade das empresas. Querer sair desta influência, inscrita nas novas regras do jogo do trabalho, sofre risco de exclusão social
A socialização pelo trabalho torna-se, assim, uma socialização à submissão, ao conformismo e a renúncia a qualquer pensamento pessoal. As possibilidades de experiência coletiva através da ação e os projetos comuns alternativos diminuem. Só restam os termos crus do contrato de trabalho, que é um contrato jurídico de subordinação: o tempo do assalariado pertence ao empregador, que o comprou e pode usá-lo da maneira mais rentável segundo seu ponto de vista. A experiência da socialização corre o risco de se tornar a aceitação a dispor de seu tempo e de si, em proveito de uma lógica que devemos assumir sem refletir
Em um mundo do trabalho tão atomizado, onde as vagas se tornaram tão raras, os assalariados não têm nenhum recurso para se opor a tais práticas. Principalmente os jovens, que devem demonstrar “permissão de fazer tudo que vier à cabeça” para encontrar e conservar uma vaga. Responder positivamente a esta ideologia implica, cada vez mais, uma atitude pouco cívica em relação aos outros. Não somente no seio da empresa, onde é preciso aprender a se impor e a aceitar a eliminação dos colegas. Também em relação aos clientes, supostamente destinados a ser “reis” e que se tornam, na realidade, alvo de práticas profissionais incivis.
Submetidos na empresa à vontade e a pressão do gerenciamento, em casa os assalariados não estão mais protegidos de seu diktat. Os limites territoriais familiares e dos amigos não resistem mais aos imperativos da mobilidade, da flexibilidade, da disponibilidade inscritos nos contratos de trabalho. Fica difícil programar uma vida quando os horários se definem segundo as agendas patronais e os dias de descanso são definidos em função das necessidades da empresa.
Além das tensões entre os casais e nas famílias, é preciso ver como a vida pessoal dos trabalhadores vai sendo corroída em nome da racionalidade econômica e dos valores veiculados por ela. Algumas empresas propõem às trabalhadoras em licença-maternidade até mesmo equipá-las através da informática, para que possam manter-se informadas do que está ocorrendo em seu trabalho…E isso é apresentado como vantagem para elas…
A maneira de ser privada e pública de cada um fica submetida à lógica da rentabilidade das empresas, com cada vez menos possibilidade de escapar. Querer sair fora desta influência, inscrita nas novas regras do jogo do trabalho, sofre risco de exclusão social.
Lugar insubstituível de socialização e de experiência da cooperação entre indivíduos, o trabalho tende a se tornar um espaço