A caminho de uma justiça automática
Novas medidas do governo francês acabam por subordinar a ação dos magistrados, criando uma vulnerabilidade inédita dos juízes, que passam a ser selecionados pelo gabinete do ministro para cuidarem de casos específicos. A justiça passa a ser considerada um ramo inferior da administração pública
O projeto do presidente Nicolas Sarkozy de suprimir os juízes instrutores1 se parece muito com o troféu que o líder de uma tropa ergue no final de uma batalha, com o intuito de que todos entendam bem quem é o vencedor. De fato, de maneira constante e irreversível, o papel desse juiz que comanda as investigações foi perdendo importância no decorrer dos últimos dez anos. Muitos foram os tipos de inquérito que deixaram de ser da sua alçada, e hoje, cabe a ele lidar tão-somente com os crimes passionais, sexuais e aqueles envolvendo tráfico regional de entorpecentes, os quais representam apenas 4% dos contenciosos envolvendo a jurisdição penal. O restante, que diz respeito em sua maior parte à pequena delinquência urbana, é tratado por meio de procedimentos rápidos, tais como os comparecimentos imediatos perante os tribunais de instância superior competentes em matéria de delito penal, ou diretamente por uma das instâncias do Ministério Público.
Quando comparados com os anos 1990, que despontam como um período de emancipação dos juízes – como comprova a multiplicação, na época, dos processos relativos a casos de delinquência financeira e política –, os anos 2000 se caracterizam por uma firme retomada do controle pelo governo. Apesar de a Constituição de 1958 ter revelado um profundo desequilíbrio em favor do Executivo, ainda subsistia no país de Montesquieu a aparência de uma separação dos poderes. Os magistrados do “siège” (juízes dos quais se diz exercerem a profissão “sentados”) e os do “parquet” (substitutos e promotores do Ministério Público, amovíveis, que exercem “em pé”), oriundos do mesmo corpo judiciário, dispunham de garantias estatutárias fortes: inamovibilidade para os primeiros, autonomia para os segundos. Esse tempo parece ter chegado ao fim, pois estamos assistindo, daqui pra frente, ao advento de uma “justiça executiva”.
A condução dessa política está sendo claramente reivindicada. Assim, em 5 de fevereiro de 2009, Rachida Dati, atual ministra da Justiça, avisou aos alunos da Escola Nacional da Magistratura de que “a independência da Justiça não é um dogma, ela se merece”. Aliás, uma lei de 9 de março de 2004 estipula que os promotores públicos sejam colocados sob a autoridade hierárquica do ministro da Justiça, o que faz deste último um “super promotor”. O texto lhe confere um poder geral de intervenção e de orientação do processo em cada caso particular. Depois da nomeação pelo Executivo – a ser efetuada numa sessão do Conselho dos Ministros – da totalidade dos procuradores gerais dos tribunais de apelação, essa lei, integrada sob o artigo 30 do Código de Processo Penal, constitui uma etapa suplementar no processo de consolidação da autoridade do ministro.
Contudo, a autonomia dos magistrados foi reduzida, sobretudo, em razão da transformação dos modos de organização prática da Justiça. O modelo processual penal francês, que concedia à defesa um papel de contestação na busca da prova, repentinamente tornou-se alvo de um profundo questionamento, a partir dos anos 2000. Em muitos casos, tudo já está definido ao final da fase policial, o que faz com que o advogado tenha apenas papel de figurante. A parte judiciária do processo não tem razão de ser, senão para conferir “uma mais-valia aos relatórios de polícia”, declarou, em 2004, Dominique Perben, então ministro da Justiça, no preâmbulo do projeto de lei sobre a criminalidade organizada.
Essa evolução, que vem modificando paulatinamente as características do trabalho jurisdicional e penal, reflete a pressão de determinados grupos no sentido de impor suas doutrinas. Num primeiro momento, tratou-se de debelar a “corrente penal”, uma noção que se reveste de grande importância para o Sindicato dos Delegados da Polícia Nacional (SCPN). Segundo os representantes dessa entidade, os promotores públicos, os juízes instrutores, os juízes de delitos penais e os juízes de aplicação das penas deveriam partilhar as lógicas e, sobretudo, as conclusões do trabalho policial.2
Ao criar confusão entre a necessária circulação das informações entre essas diversas funções de justiça e os seus papéis institucionais, essa doutrina desembocou, na prática, numa negação de toda a independência ao trabalho jurisdicional, e na transformação do processo penal numa corrente de informação unívoca: o tempo real policial.
A partir de meados dos anos 1990, os promotores adquiriram o hábito de se instruir sobre os casos, contando apenas com as informações transmitidas por telefone pelos serviços de investigação. Com isso, alguns tribunais de grande instância, como o de Bobigny, por exemplo, foram se tornando cada vez mais parecidos com o departamento operacional de uma empresa de telemarketing, onde se podia observar substitutos munidos de um fone de ouvidos, agendando datas de audiência como numa linha de montagem. Também foi no final daquela década que apareceu uma rede de vigilância policial dedicada a monitorar decisões de justiça consideradas como tolerantes demais.
A estigmatização dos juízes que “libertam os delinquentes” escondia na realidade um mal-estar mais profundo dos policiais, decorrente, entre outros, do envolvimento crescente da sua instituição no controle dos problemas urbanos de menor importância. Entretanto, ela foi explorada com habilidade por certos homens políticos, como Nicolas Sarkozy, que a transformou num item destacado da sua campanha para a eleição presidencial de 2007.
Avaliando que as instâncias do Ministério Público contribuiriam mais facilmente para solucionar suas preocupações com as questões de segurança e eleitorais, o Executivo reforçou sua supremacia. Isso iria desembocar num aumento do número dos processos penais fora dos quadros tradicionais. Ao contrário do que ocorre nos processos contraditórios, nos quais cada protagonista desempenha um papel bastante determinado (o juiz, o promotor, o advogado), o Ministério Público, daqui para frente, passa a conduzir de maneira sempre mais unilateral os processos e os julgamentos.
Iniciada por uma lei de 2000 que instituiu a “composição penal”, uma transação rápida na qual o Ministério Público decide sobre a pena tão logo o réu reconhece os fatos que lhe são imputados no final da sua manutenção sob custódia, essa “justiça de promotor” ganhou força com a implantação do reconhecimento prévio de culpabilidade (CRPC) em 2004. Nessa espécie de “defesa com reconhecimento de culpa” à francesa, o promotor pode propor ao autor dos fatos uma pena de prisão ou de multa que se torna definitiva. Nessa situação, se um advogado – geralmente convocado automaticamente – estiver presente, ele nunca está numa posição que lhe permita travar um debate contraditório sério, e nem sequer negociar. Quanto à ratificação posterior da sentença por um magistrado de um tribunal da instância competente, ela é efetuada por meio de um automatismo acatado por todos. Exagerando apenas um pouco, pode-se afirmar que foi criada, na prática, uma justiça automática. Uma justiça que evita o debate, a publicidade da audiência e até mesmo a motivação jurídica.
Esses procedimentos economizam tempo nas audiências que mobilizam um ou vários juízes. Essa virtude desponta como um dos seus maiores méritos, num momento em que a atividade penal passou a ser abordada quase que exclusivamente em termos de fluxo e de estoque de casos a serem julgados. Mas eles permitem igualmente limitar ou evitar os debates que deveriam ser travados durante a audiência, os quais revelam ser sempre complicados, incertos e lentos. De fato, durante o processo é preciso enfrentar uma defesa que pode levantar nulidades de procedimentos e até mesmo magistrados de tribunais competentes em matéria de delito penal que nem sempre se mostram tão cooperativos como deveriam. Uma situação que parece intolerável quando o principal indicador de qualidade da justiça passa a ser “a taxa de resposta penal”, isto é, o número das condenações.
Uma vez que essas incertezas são suprimidas, todos os elos da corrente penal passam a funcionar perfeitamente, e não surpreende ninguém que o índice de encarceramentos alcance recorde histórico (com 68.244 pessoas atrás das grades em 1º de abril de 2009). A cultura do resultado consolida as posições dos magistrados mais repressores, quer estes sejam juízes dos tribunais, quer substitutos ou procuradores do Ministério Público. Esses partidários da linha dura tendem a se agrupar nas carreiras penais, enquanto aqueles que resistem às novas políticas solicitam sua transferência para outras funções, tais como as da justiça civil.
Isso é tão mais verdadeiro que a atual política ministerial associa uma gestão “apropriada” dos recursos humanos à fragilização do estatuto dos juízes da magistratura “sentada”. Não só a ministra da Justiça ignora sistematicamente os pareceres do Conselho Superior da Magistratura em matéria de nomeação dos membros do Ministério Público, como também, no âmbito das jurisdições, os promotores devem assinalar em tempo real as “ovelhas negras” que se atrevem a levar em conta circunstâncias atenuantes ou se recusam a aplicar a lei sobre as penas básicas de 2006.
Da mesma forma, um determinado juiz das liberdades e da detenção (JLD) que não se mostrar receptivo o bastante à necessidade imperiosa de manter os estrangeiros sob custódia para expulsá-los, será repreendido pela sua hierarquia; ou ainda, por ocasião de uma reorganização anual do tribunal, ele será transferido para um serviço totalmente diferente, por efeito de uma simples decisão do presidente do tribunal. Em outros casos, essa seleção é efetuada durante o processo de composição das jurisdições competentes em matéria de delito penal, ou ainda, por ocasião da seleção dos presidentes dos tribunais do Júri, em função das orientações penais de cada juiz. De fato, a inamovibilidade dos juízes da magistratura “sentada” passou a ser exclusivamente de natureza geográfica. Eles se tornaram juízes ad nutum (revogáveis a qualquer momento) no âmbito de cada tribunal, submetidos às decisões arbitrárias de um chefe de jurisdição cujo interesse pessoal se caracteriza quase sempre pela vontade de agradar ao poder, caso ele deseje galgar degraus em sua carreira. Além disso, a extinção prevista de funções especializadas, como a de juiz instrutor, facilita essa evolução das práticas: o juiz da magistratura “sentada” torna-se rapidamente um juiz de circunstância, dificilmente independente.
A essa vulnerabilidade dos juízes não especializados que integram a maior parte das jurisdições, se acrescenta uma nova organização espacial da Justiça, que, sob pretexto de desempenho, passou a tornar caduco o princípio do juiz natural3 Entre 2004 e 2006 foram criados polos regionais que agrupam as investigações penais mais sensíveis. Em função da escolha conveniente de uma qualificação penal (“bando organizado”, por exemplo), os casos assim tipificados passaram a ser automaticamente encaminhados para o polo de instrução de Marselha, por exemplo, mesmo que os fatos tivessem ocorrido em outras regiões do país. Essa evolução se inspira no modelo da luta contra o terrorismo, implantado em 1986, no quadro do qual todo fato qualificado como sendo de natureza “terrorista” depende da competência de um polo parisiense, mesmo se os fatos iniciais ocorreram no departamento da Corrèze ou na Córsega. Nem é preciso acrescentar que a seleção dos magistrados que integram a totalidade desses polos, cujo número é restrito, é objeto de atenção muito particular por parte do gabinete do ministro, que não diz respeito exclusivamente às competências dos interessados.
A amplidão das transformações que afetaram o sistema judiciário ao longo dos últimos dez anos é simplesmente espantosa: abolição da distinção entre promotores e juízes em matéria de julgamento; substituição do debate contraditório por transações de confissão em procedimentos dirigidos e/ou rápidos; impossibilidade efetiva para as instâncias do Ministério Público de dirigirem os inquéritos, e imposição de um ritmo policial na condução em tempo real dos processos penais; desvirtuamento do princípio do juiz natural; automatismo da pena amparado na lei sobre as penas básicas; e até mesmo pena ilimitada, com a instituição da retenção de segurança, definida por uma lei votada em fevereiro de 2008.
A maior parte dos princípios que fundamentava um processo equilibrado deu lugar a uma justiça que responde por uma ordem aparente, a da tranquilidade pública, e cujo desempenho é relatado à população diariamente pelos jornais. O abandono quase completo dos processos relativos aos casos econômicos e ambientais e a resolução de contenciosos financeiros por meio de cláusulas de arbitragem derrogatórias ao direito comum, conforme ocorreu de maneira caricatural no caso Tapie4, refletem uma evolução que acabou confinando essa nova justiça a uma categoria inferior. Essa movimentação lembra curiosamente a concepção do Estado de um antigo ministro francês do Interior, que considerava que “a justiça nada mais é que um ramo da administração, e um ramo inferior5”.
*Gilles Sainati é magistrado, membro do Sindicato da Magistratura e autor (com Ulrich Schalchli) de La décadence sécuritaire, La Fabrique, Paris, 2007.