A cilada da violência
O discurso do simples endurecimento da política de segurança por si mesmo, ao invés de solucionar a crise, a agravará ainda mais
As belas paisagens de Fortaleza se misturaram nos últimos dias com imagens da violência urbana. As chamadas facções geraram uma onda de atentados pelo estado do Ceará que trouxeram insegurança à população, uma resposta às declarações do endurecimento na política carcerária, principalmente a não existência mais do regime de uma facção por presídio. Atuam no Ceará o CV (Comando Vermelho), o PCC (Primeiro Comando da Capital) e o GDE (Guardiões do Estado), um grupo regional. Os dois últimos são aliados contra o CV pelo controle do território cearense. Está presente também a Família do Norte, mas esta tem uma expressão menor na região. Paulista, conheço Fortaleza por ter morado e trabalhado na gestão municipal de 2007 a 2009, experiência que me permitiu compreender como a vida se organiza naquela localidade. Andei muito pelos bairros da periferia, uma vez que coordenava projetos de economia solidária e juventude. Conjunto Palmeiras, Granja Portugal, Jardim União, Serrinha, Lagamar, Pirambu, Barra do Ceará, entre outros.
Acontece que dez anos depois, a questão da violência mudou de patamar, sendo a existência dos portos (Pecém e Mucuripe) e do Aeroporto Internacional Pinto Martins, fatores importantes nesse processo. Destaco neste artigo o Porto do Pecém, inaugurado em 2002, e construído porque o Porto do Mucuripe não supria mais as necessidades de exportação do Ceará. É “papo corrente” nas comunidades que as condições de escoamento de produtos do Pecém atraíram o tráfico internacional de drogas, cujo controle do território motivou a guerra entre as facções. Algumas características do porto permitem entender porque ele tornou-se um fator central para as facções.
Sem dúvida, sua localização geográfica é determinante. O Pecém é o ponto brasileiro de menor distância tanto dos Estados Unidos, quanto da Europa, ambos destinos importantes para o comércio das drogas. Possui proximidade com o Golfo do México, região de um país reconhecido como última porta antes da cocaína entrar nos Estados Unidos. Aliás, os cartéis mexicanos montaram seu império justamente por desenvolverem a capacidade de passar a cocaína para o seu vizinho do norte, principal mercado consumidor mundial desse produto. O porto fica a 60 km de Fortaleza, na região da Ponta do Pecém no município de São Gonçalo do Amarante, possuindo acesso por ferrovia e três rodovias, duas federais e uma estadual. É um elo na cadeia logística do transporte marítimo e tem como um dos objetivos a viabilidade de operações portuárias e industriais para o desenvolvimento do Complexo Industrial do Pecém. Sob sua responsabilidade está o Terminal Portuário do Pecém, a zona industrial adjacente e a Zona de Processamento de Exportação (ZPE) do Ceará. Trata-se de porto industrial, possui três piers marítimos: o píer é para granéis sólidos, líquidos e carga geral não conteineirizada, o segundo píer para granéis líquidos e o terceiro para granel sólido, carga geral conteinerizada e não conteinerizada.
Em 2017, a movimentação de cargas foi 41% maior na comparação com o ano anterior, o que resultou no faturamento bruto da ordem de R$ 144 milhões, um crescimento de 62,2% em relação a 2016. Foram movimentadas 15,8 milhões de toneladas, sendo 4 milhões exportadas e 11,8 milhões importadas. Os principais produtos exportados foram: placas de aço (maior volume), seguidas de frutas frescas, com mais de 201 toneladas e do gás natural. Em 2018, a movimentação de cargas no Porto do Pecém cresceu 13%. As placas de aço produzidas pela Companhia Siderúrgica do Ceará (CSP), instalada no Complexo Industrial e Portuário do Pecém (Cipp), são uma das cargas de maior movimentação. O total de placas movimentadas chegou a 2.274.236,02 toneladas em 2018. Obras de ampliação estão sendo realizadas. Destaque para implantação da CE-576, conhecida como Rodovia das Placas, que vai absorver o movimento dos caminhões pesados que transportam as placas da siderúrgica até o porto. Também a duplicação da rodovia CE-155, trecho Porto do Pecém–entroncamento BR-222, que conta com 20 km de extensão.
Nas comunidades se relata que as placas de aço facilitam o tráfico, pois a cocaína ficaria escondida justamente entre elas. Como são pesadas, a fiscalização desses contêineres se torna muito difícil, facilitando o processo. Casos assim também são relatados em São Paulo por trabalhadores do Aeroporto de Guarulhos, mas com placas de mármore. É interessante que o principal destino das placas de aço produzidas no Pecém seja justamente os Estados Unidos, recebendo 36,49% da produção. Fato é que toda essa logística e infraestrutura do Porto do Pecém, parte do eficaz projeto de desenvolvimento econômico do Ceará, trouxe indiretamente consigo as condições adequadas para a exportação de drogas.
Fortaleza está hoje inserida no circuito internacional do tráfico e é uma das principais portas de saída da cocaína que vai do Brasil para o exterior. Não se trata mais de enfrentar o crack como antes, mas uma das maiores indústrias do mundo atual: a da cocaína. Esta gera uma riqueza maior e, por sua vez, organizações melhor preparadas em arsenal e estratégia. Algumas delas se tornaram míticas nesse ramo pelo poder que alcançaram, caso dos cartéis de Medellín e de Cáli na Colômbia, bem como do Cartel de Sinaloa no México. Tais organizações praticavam atos terroristas, principalmente o Cartel de Medellín, que deu origem ao período conhecido na Colômbia como narcoterrorismo. Essa organização chegou a explodir no ar um avião da Avianca e promoveu atentados conhecidos com “carros bomba”, o mais famoso em 6 de dezembro de 1989, quando um ônibus com 500 quilos de dinamite explodiu em frente à sede do DAS (Departamento Administrativo de Segurança) em Bogotá, deixando setenta mortos e mais de quinhentos feridos. Anos atrás em Fortaleza, um carro bomba foi deixado em frente à Assembleia Legislativa do Estado, bem ao estilo de Medellín. Na madrugada do último dia 10, suspeitos explodiram a base da estrutura por onde passa a Linha Sul do Metrô de Fortaleza. Residências próximas tiveram danos estruturais com a bomba utilizada.
O PCC tem ganhado aos poucos o mesmo glamour que tais organizações colombianas e do México. Ataques semelhantes pararam São Paulo anos atrás, episódio que foi tema até de filme (Rota Comando). Presenciei esse período na capital paulista, dias de muita apreensão. Por coincidência estava em Fortaleza nos ataques dos últimos dias, a semelhança do modus operandi entre os dois casos é inegável. Veículos incendiados, prédios públicos alvos de tiros, buscando criar uma situação de insegurança na população. De fato, essa sensação pôde ser sentida em Fortaleza, aumentando gradualmente com o passar dos dias. Mesmo em bairros característicos da boemia como o Benfica, o movimento nos bares era visivelmente menor. Pude ver um caminhão queimado na Barra do Ceará, próximo ao Cuca Che Guevara. Até mesmo postos de saúde e creches foram alvos de tiros, fato diferente do caso paulista, o que é curioso. Ocorreram invasões aos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) dos bairros da Bela Vista e João Paulo II. No dia 8, o Sindicato dos Médicos do CE chegou a orientar que os servidores não fossem trabalhar. Rapidamente a Secretaria Municipal de Saúde informou que os faltantes teriam o ponto cortado. A partir do dia 9, a coleta de lixo passou a ser realizada com escolta da Polícia Militar.
Escutei relatos de toques de recolher e ordens de fechar as portas do comércio em certas localidades. Chegou até mim um mapa de bairros e vias que deviam ser evitados, um levantamento feito junto a taxistas, cooperativas de táxi e o sindicato da categoria. Os locais citados eram Pirambu, Praia de Iracema, Via Expressa, Avenida Alberto Sá, Papicu, Praia do Futuro, Entorno da Lagoa do Pau Finim, Entorno do HGF (Hospital Geral Federal), Tancredo Neves, Messejana, Barroso, Pantanal, Castelão, Aerolândia, Comunidade Maravilha, Avenida Santos Dumont e Barra do Ceará. Após as 22 horas, conseguir um Uber ou táxi tornou-se um exercício de paciência. É visível que o turismo foi afetado diretamente, justamente em uma época de alta estação e quando a gestão municipal comemorava o sucesso do reveillon 2018/2019, recorde de público. De fato, eu nunca havia visto Fortaleza tão cheia de turistas nessa época, um êxito inegável do atual prefeito.
Apesar das declarações nos jornais e canais de TV de que o poder das facções não era significativo no Ceará, ele ficou evidente. O discurso de endurecimento do regime nos presídios foi respondido de forma clara e pública. Nem mesmo a chegada das tropas federais conseguiu mostrar a eficácia devida para resolver a crise no estado. Medidas assim costumam não funcionar, pois são apenas paliativas. Claro que em um momento emergencial qualquer ajuda é bem-vinda, mas a resposta para a situação não está tão somente na chegada de forças com armas de um calibre maior. A “guerra às drogas” não funcionou com Uribe na Colômbia, muito menos no México, tampouco a morte de Pablo Escobar acabou com o tráfico na Colômbia. Ao contrário, as respostas violentas do Estado nacional somente geraram mais instabilidade e medo, justamente o que desejam as facções por aqui.
O discurso do simples endurecimento da política de segurança por si mesmo, ao invés de solucionar a crise, a agravará ainda mais. O ciclo do medo deve ser rompido. Mantê-lo somente fortalecerá o jogo das facções, pois o objetivo delas é criar a sensação de insegurança. A arma delas é justamente a gestão do medo. A resposta não está na guerra, fazê-la é cair na cilada da violência.
*Leonardo Ostronoff é sociólogo, pesquisador e pós-doutorando de Sociologia da USP/Fapesp. Foi nomeado Assessor do Gabinete da Prefeita de Fortaleza em 2009.