A covid-19 e a crise da governança regional da América do Sul
Enquanto as organizações internacionais de escopo global – como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT)-, têm desempenhado uma função crucial neste contexto, a expectativa é de que os agentes políticos somem os recursos disponíveis, tanto internos quanto externos, à medida em que a tomada de consciência da gravidade da pandemia implica a distribuição dos fronts de atuação.
No momento em que os olhos do mundo se voltam para a pandemia da Covid-19, é possível pensar a atuação conjunta da América do Sul sob o horizonte da governança regional. É certo que a crise desencadeada pelo coronavírus encerra duas particularidades que reforçam ainda mais a importância em se discutir as relações internacionais e intrarregionais: a sua origem evidentemente internacional e a natureza transnacional de sua transmissibilidade.
O fator transnacional pode ser encarado de duas formas: o fato de o vírus representar uma ameaça transfronteiriça, tornando-o não um problema de uma ou outra comunidade, mas de todo o mundo social; o fato de que o mesmo engendra estratégias globais que se materializam regional e localmente por meio de uma rede de interconexões entre entidades, organizações e empresas pulverizadas nos espaços nacionais. Logo, quando nos deparamos com a realidade incontornável da contiguidade geográfica sul-americana, devemos repensar as oportunidades de cooperação intergovernamental que têm sido negligenciadas nos últimos anos diante de uma conjuntura desfavorável para articular, produzir e executar estratégias políticas conjuntas acerca de problemáticas comuns à região.
Parece consensual entre especialistas que a pandemia enseja aos governantes dos diversos âmbitos (nacional, estadual, municipal) a adoção de medidas extraordinárias em uma corrida contra o tempo para minimizar seus custos humanos, sociais, econômicos e políticos. Até mesmo sociólogos, antropólogos e cientistas políticos têm chamado a atenção para o papel que as ciências humanas e sociais adquirem neste delicado cenário.
É também nesses momentos que a capacidade de reação de instituições e organizações é posta à prova. Enquanto as organizações internacionais de escopo global – como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e a Organização Internacional do Trabalho (OIT)-, têm desempenhado uma função crucial neste contexto, a expectativa é de que os agentes políticos somem os recursos disponíveis, tanto internos quanto externos, à medida em que a tomada de consciência da gravidade da pandemia implica a distribuição dos fronts de atuação.
Consensos
As organizações internacionais, em geral, produzem o efeito de constranger os Estados-membros a agirem de determinadas formas e a adotarem determinados comportamentos. De modo análogo, às organizações regionais sul-americanas pode ser outorgado um conjunto de funções específicas: espaço para geração de consensos políticos e gestão da crise; plataforma de coordenação de políticas intergovernamentais; facilitação da cooperação entre governos, ministérios e setores; criação de diretrizes políticas próprias; profusão de conhecimento e assistência técnica; disponibilização do aparato burocrático e dos bancos de dados integrados, bem como a agência em um sentido mais palpável, quando da oferta de bens e serviços à comunidade. A favor das organizações de escopo regional está a capacidade de traduzir e ajustar diretrizes globais considerando as especificidades e os desafios que abrangem certo espaço geográfico.
Desde pelo menos o último quarto do século XX, os países sul-americanos se empenham concretamente a esquemas de associação intergovernamental que ajam como um reforço à sua capacidade de atuação nacional, seja em busca de ganhos intrarregionais, seja mirando oportunidades extrarregionais. Na década de 1990, o Mercosul se tornou um mecanismo viável em resposta às assimetrias econômicas impostas pela globalização de mercados, embora limitado a uma lógica comercialista. Já a década seguinte testemunhou o nascimento da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) e a consolidação da União de Nações Sul-Americanos (UNASUL), responsáveis por ampliar o leque de possibilidades de diálogo intergovernamental para os setores de infraestrutura, defesa e saúde.
No bojo desse movimento houve também a criação de fóruns tal qual Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Não obstante as divergências de propósitos e meios para atingi-los, esses instrumentos formam uma complexa arquitetura regional que são pensados, em última instância, enquanto meios externos de reforço da capacidade de atuação dos Estados. Em outras palavras, aparatos a serem usados enquanto propulsores do diálogo entre governos e da geração de bens e serviços regionais.
Pode-se questionar: e o que as organizações regionais têm a ver com a atual crise de saúde pública? A necessidade de ação imposta pela crise epidemiológica tem causado um esforço criativo no sentido de (re)pensar os diversos meios e possibilidades de ação comunitária. Nas palavras do diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom, “este vírus está nos apresentando uma ameaça sem precedentes. Mas também é uma oportunidade sem precedentes de nos unirmos contra um inimigo comum – um inimigo contra a humanidade”. Logo, atividades como assessoramento técnico, fornecimento de subsídios informacionais para estipulação de políticas públicas, alinhamento e adequação das diretrizes da OMS às realidades socioeconômicas dos países, reforço à promoção das boas práticas de contenção social do vírus, utilização dos canais de diálogo constituídos, apoio nas estratégias de testagem massiva da população, são alguns exemplos dos estímulos que podem ser pensados a nível regional e adaptados às características de cada entidade. A Organização de Estados Ibero-americanos (OEI), por exemplo, que atua na área de educação, ciência e cultura, tem feito um conjunto de ações de acessibilidade junto a gestores públicos, instituições e profissionais da educação durante o período de isolamento social da pandemia.
Unasul
É nesse sentido que podemos avaliar o caso da Unasul e, particularmente, de seu Conselho Sul-Americano de Saúde (CSS). Nos anos em que esteve ativo, o CSS buscou construir um espaço de coordenação de políticas de saúde e de fortalecimento das instituições da área da saúde nos 12 países-membros da organização. Já o seu principal órgão estratégico, o Instituto Sul-Americano de Governo em Saúde (ISAGS), situado no Rio de Janeiro, esboçou uma estrutura de articulação intergovernamental e governança da saúde sem precedentes na América do Sul – não por ser um centro de altos estudos (como tantos outros na região), mas por estruturar âmbitos de integração em saúde nesses países. Infelizmente, a interrupção de suas atividades se deu no início de 2019 em consequência da deserção da maioria dos países do bloco sul-americano.
Desde a sua criação, em 2011, o ISAGS buscou se associar a Grupos Técnicos e Redes Estruturantes, acessando, desse modo, diversos pontos focais nos Ministérios da Saúde dos países sul-americanos. Mantinha vinculação com agências ministeriais dentro e fora do Brasil, centros de pesquisas espalhados pelo subcontinente, e guardava especial vínculo com Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), uma das instituições que mais se destacam nos trabalhos de mitigação dos impactos da pandemia da Covid-19.
O ISAGS adotou um posicionamento claro em prol da luta contra a desigualdade e a promoção da saúde enquanto um direito social inalienável, mediante uma perspectiva ampla de desenvolvimento humano, que enseja não só o tratamento de doença, mas os diversos condicionantes (sociais, ambientais, culturais, econômicos) que substantivam o pleno bem-estar das populações. Em menos de uma década de atividade e com uma estrutura enxuta (aproximadamente 15 funcionários), produziu dezenas de oficinas de capacitação, um período mensal, estudos sobre o panorama sanitário regional, inclusive sobre o panorama da atenção básica em saúde e da vigilância epidemiológica na América do Sul, além de propostas de efetivação de um mercado de medicamentos.
Por esses motivos listados, o ISAGS-CSS vinha estimulando dinâmicas de governança regional em saúde e influindo em ações mais globais, como é o caso de sua atuação na Assembleia Mundial da Saúde, órgão decisório da OMS. Os efeitos mais práticos dessa governança estão na constituição do Fundo de Iniciativas Comuns (FIC), por meio do qual foi elaborado um Banco de Preços de Medicamentos (BPM). Para termos uma ideia, a estimativa de economia anual com a utilização do BPM, somando os 12 países, à época, ronda a quantia de 1 bilhão de dólares. Nos últimos tempos, o ISAGS atuava no desenvolvimento de um Mapa das Capacidades de Produção de Medicamentos, que revelaria, dentre outras coisas, informações sobre a capacidade produtiva de medicamentos na região a serem utilizados na constituição de uma política regional na área.
É certo que a estrutura da Unasul, totalmente dependente das circunstâncias e da boa vontade de cada governo-membro, pouco poderia fazer em termos de uma ajuda econômica substantiva à região. No entanto, em que pesem suas ambivalências, a Unasul, mais enfaticamente entre 2008 e 2015, era a plataforma que respondia minimamente aos efeitos de uma união e coordenação política entre Estados sul-americanos quando chamada à ação em casos delicados de sublevação local e até diplomática (a exemplo, na crise de Pando em 2008, na escalada de tensão entre Colômbia e Venezuela em 2009, na destituição de Lugo no Paraguai em 2012) e vinha galgando evolução no desenvolvimento de Conselhos Setoriais nas áreas de Defesa e Saúde, este último tratado acima como centralmente estratégico na crise de saúde pública que atravessamos.
Dispersão
No entanto, falar do panorama sul-americano atual enseja reconhecê-lo enquanto marcadamente fragmentado e disperso em suas estratégias de atuação intergovernamental. A Unasul é uma presença praticamente inexistente, devido ao desinteresse político e às fraturas internas. A crise do regionalismo é alimentada por diversos fatores, dentre os quais estão o transbordamento da crise venezuelana, a recessão econômica e instabilidade político-governamental do Brasil pós-2015, a chegada ao poder de plataformas políticas antagônicas ao regionalismo corrente (caso de Macri, na Argentina; Temer e, após, Bolsonaro, no Brasil; Kuczynski, no Peru; Cartes e seu sucessor Benítez, no Paraguai) e, principalmente, o vácuo de liderança deixado pelos três principais arquitetos desse sistema, Brasil, Argentina e Venezuela.
A nova correlação geopolítica sul-americana optou por esvaziar de vez o regionalismo da última década, isolando a Venezuela de Maduro e apostando em uma tímida caminhada para um bloco ainda iniciante, o Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul (Prosul), que não responde pela totalidade da região e que tem apresentado certas dificuldades de articulação.
No dia 16 de março, a reunião de presidentes para tratar do coronavírus contou com apenas 6 países-membros (Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai e Peru), sendo que a ausência do presidente brasileiro foi destacada. O Uruguai foi incluído apenas posteriormente na nota conjunta. O encontro resultou em uma vaga “carta de vontades” que descreve a necessidade conjunta de compartilhamento de dados epidemiológicos, facilitação do retorno de cidadãos a seus países de origem, o intercâmbio de informações e experiências que fomentem a produção de políticas públicas, e a coordenação de políticas de auxílio financeiro junto ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), bem como no âmbito da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) para a compra conjunta de insumos médicos
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Enquanto isso, os antagonismos seguem impedindo avanços. A Colômbia de Iván Duque rejeitou a proposta de coordenar ações conjuntas com a Venezuela de Nicolás Maduro, comportamento este reiterado pelo Itamaraty, que até o momento tem evitado conversações diretas com o presidente argentino Alberto Fernández, de inclinação ideológica oposta ao Planalto. De um lado, o Peru prepara o maior plano econômico da América Latina para mitigar o impacto do coronavírus (25 bilhões de dólares, cerca de 12% do PIB), do outro, o Equador vivencia a tragédia de cadáveres empilhados nas ruas. O Brasil, cuja presidência tem insistindo em um comportamento muitas vezes controverso, que privilegia as demandas patronais em detrimento dos trabalhadores, deve destinar o equivalente a 5% do seu PIB, ao passo que o país da Casa Rosada tem encampado um programa de defesa aos trabalhadores e proibição das demissões sem justa causa. Na ausência de um comprometimento mais claro, concreto e articulado, e diante de assimetrias econômicas, sociais e políticas que assolam a região, a América do Sul tende a se tornar um verdadeiro “salve-se quem puder” aos países que mais necessitam de ajuda em um momento dramático como o atual.
Lucas Eduardo Silveira de Souza é professor de Política Internacional da Faculdade de Direito e Relações Internacionais da Universidade Federal da Grande Dourados. É mestre em Relações Internacionais.