A criminalização da violência política de gênero
Publicada no início de agosto, a lei n°. 14.192 estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher nos espaços e atividades relacionadas ao exercício de seus direitos políticos e funções públicas
As expressões violência política e violência política de gênero têm estado em evidência no debate público. Tempos atrás, esses termos não eram usados em veículos de comunicação, redes sociais ou por agentes públicos e teóricos com a frequência com que vêm sendo.
O brutal feminicídio político da vereadora Marielle Franco, ocorrido em março de 2018, bem como diversas manifestações de ofensa e ataques às mulheres candidatas ou parlamentares chocam em função da sistematicidade e frequência com que vêm ocorrendo no cenário político brasileiro.
Na tentativa de fazer frente a este cenário, foi publicada em 05 de agosto de 2021 a lei n°. 14.192, que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher nos espaços e atividades relacionadas ao exercício de seus direitos políticos e funções públicas, bem como para assegurar a participação de mulheres em debates eleitorais. Essa lei altera o Código Eleitoral, a lei dos Partidos Políticos e a lei das Eleições[1].
Como defendido por Flávia Biroli[2], a pequena presença de mulheres na política institucional evidencia a dificuldade em tornar possível a agenda de combate à violência contra as mulheres um tema de prioridade do Estado, devido, dentre outros fatores, as constantes tentativas em afastar, isolar e silenciar a perspectiva das representantes políticas dos debates públicos.
Desse modo, a divulgação de informações falsas, a importunação e o assédio sexual, a interrupção de discursos, as ofensas, ameaças de morte e incitação à violência não são eventos isolados direcionados somente a determinadas pessoas. Constituem, em realidade, expressões de uma cultura institucional alicerçada na cis-heteronormatividade racista a qual não reconhece outras representações de gênero, sexualidade, raça e etnia que não correspondam ao padrão eleito como universal – branco, heterossexual e masculino, cuja presença ainda é hegemônica nos parlamentos.
Tais expressões refletem o “momento específico de repatriarcalização racista, colonial e neoconservadora que estamos experimentando na América Latina”, de que fala a professora Marlise Matos[3].
Assim como ocorre em outras formas de violência contra as mulheres, estas ocorrências dentro da política institucional constituem manifestações de poder que visam o controle das mulheres, o disciplinamento de seus corpos e o cerceamento de suas vozes. Portanto, os exemplos citados correspondem às violências e assédios sistêmicos e estruturais voltados a um grupo (em especial o de mulheres negras, periféricas, LGBTQI e etnicamente diferenciadas) cujo reconhecimento de sua pertença nos espaços democráticos é obstaculizado.
Importa dizer que o projeto que deu origem à lei n °.14.192/2021não foi o único a pautar este assunto no Congresso Federal. Projetos de lei de iniciativa das deputadas Margareth Coelho (PP/PI) e Talíria Petrone (PSOL – RJ), versaram de maneira mais abrangente sobre este assunto, incluindo em seus objetivos aplicação de sanções civis e administrativas para os autores das violências e ou assédios e não impondo, como principal foco, a medida de criminalização da nova conduta prevista no código eleitoral.
Ainda, destaque-se que nenhum dos dois projetos restringia a aplicação da lei “em virtude do sexo”. A norma sancionada claramente tentou afastar de seu âmbito a identidade de gênero, em flagrante retrocesso ao reconhecimento e proteção dos direitos humanos das mulheres.
Em termos comparativos, o projeto de lei sancionado, mesmo com as modificações e emendas que se deram para sua aprovação não previu mecanismos de controle interno da Administração Pública para fins de prevenção, responsabilização e combate das violências e assédios. Privilegiou-se a criminalização da conduta e penas mais severas que as que foram propostas pelas autoras das propostas.
Assim, embora a norma aparente fazer parte do rol de medidas para prevenir, punir e erradicar as diversas formas de violência contra as mulheres, supostamente inserida num contínuo de lutas e debates acerca da proteção e efetivação dos direitos humanos das mulheres que se dão desde tratados e convenções internacionais, além do que consta na Constituição Federal de 1988, a forma como esta lei foi redigida e aprovada aponta para uma restrição em sua efetividade, considerando os fins que se destina: prevenir a ocorrência e combater as violências.
Resta-nos aguardar e acompanhar, cientes de que o caminho legislativo entre o que poderíamos ter tido a nível de mecanismos de enfrentamento e prevenção a esses fenômenos e o que foi assinado por Bolsonaro e Damares é um abismo.
Twig Santos Lopes é doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Mestre em Direito, pelo Programa de Pós – Graduação em Direito, área de concentração em Direitos Humanos, da Universidade Federal do Pará (PPGD-UFPA). Pesquisadora financiada pela Capes.
[1] Lei n°. 4.737/1965; Lei n°. 9.096/1995 e Lei n°. 9.504/1997, respectivamente.
[2] BIROLI, Flávia. Political violence against women in Brazil: expressions and definitions. Revista Direito & Práxis. v. 07, n. 15, 2016. Pp. 557 – 589.
[3] MATOS, Marlise. A violência política sexista, racista e interseccional: mapeando conceitos da violência política contra as mulheres. In: D’ ÁVILA, Manuela (Org.). Sempre foi sobre nós: Relatos da violência política de gênero no Brasil. 1° ed. Porto Alegre: Instituto E Se Fosse Você, 2021. Pp. 210-226.