A crise da democracia também está no cotidiano
Para além da dinâmica entre princípios democráticos e capitalismo e o abismo entre representantes e representados, a convivência com o outro na vida ordinária também é um termômetro do estado da democracia.
De Aristóteles a Steven Levitsky, a democracia nunca teve uma explicação definitiva. Talvez seja esse um dos motivos pelos quais é difícil elaborar uma crítica que a totalize ou, da mesma forma, decretar as fronteiras de suas temporalidades, como se tornou comum nos últimos tempos como reação à ascensão de extremas-direitas em vários lugares do mundo.
Além disso, a percepção democrática cruza desde um pessimismo filosófico até um otimismo econômico, desde uma rigidez institucional dos cientistas políticos até as muitas abstrações sociológicas possíveis. É, enfim, muitas coisas ao mesmo tempo.
Uma delas está no centro do debate internacional atualmente, cujo argumento aponta sua incompatibilidade com o capitalismo. A questão à qual ele tenta responder está no que chama de “crise das democracias”. De forma bastante sucinta, diz que a democracia liberal, cujos princípios são a igualdade de oportunidades e o acessos a direitos, além do respeito às liberdades individuais, foi comprometida pela dinâmica capitalista que, ao contrário, necessita distribuir recursos de forma cada vez mais desigual para manter as pessoas, da mesma forma, atraídas pelas diferentes áreas das hierarquias sociais.
No campo da sociologia, por exemplo, a escola funcionalista tentou explicar essa dinâmica de desigualdade do capitalismo afirmando que toda sociedade possui classes porque, em suma, elas são uma “necessidade funcional”. A principal delas é que é preciso situar e motivar os indivíduos dentro da estrutura social, isto é, fazê-los desejar posições e executar as atividades inatas a ela. “A desigualdade é […] um artifício inconscientemente desenvolvido, por intermédio do qual as sociedades asseguram que as posições mais importantes sejam criteriosamente preenchidas pelos mais qualificados. Por essa razão, qualquer sociedade, não importa quão simples ou complexa, deve diferenciar as pessoas em termos de prestígio e estima, e deve, portanto, possuir certa soma de desigualdades institucionalizadas”, escreviam os sociólogos funcionalistas estadunidenses Kingsley Davis e Wilbert Moore em “Estrutura de classe e estratificação social”, de 1945.
Além desse conflito, o argumento para a “crise das democracias” ainda aponta o papel do mercado financeiro e seus mecanismos – que produzem uma gigantesca acumulação de capital por pequeníssimos clubes fechados de poucos bilionários. Isso é muito bem interpretado pelo ex-ministro da Economia grego, Yanis Varoufakis, por exemplo.
Desigualdade econômica
Essa realidade pode ser melhor observada também no último relatório publicado pela Oxfam, na metade deste mês, em que a entidade afirma que “a desigualdade econômica no mundo está fora do controle”. Em 2019, cerca de 2,1 mil pessoas detinham mais riqueza do que a soma de todas as posses de outras 4,6 bilhões. Considerando o pequeníssimo grupo de 1% mais rico do planeta, ele possuía o dobro da riqueza de 6,9 bilhões de indivíduos.
O fosso é tão grande, segundo a Oxfam, que foi preciso elaborar a seguinte imagem: se todos os seres humanos transformassem a totalidade de suas riquezas em notas de US$ 100 e sentassem sobre elas, a imensa maioria deles ficaria sobre o chão, enquanto os dois homens mais ricos do planeta se sentariam em uma altura tal que superaria os limites da estratosfera terrena.
Essa distância entre capitalismo e democracia fora notada pelo historiador José Murilo de Carvalho, no caso do Brasil, por exemplo, agregando ainda o elemento dos períodos autoritários que o país viveu entre seus períodos democráticos. Para ele, mesmo a constituição de 1988 não resolveu problemas estruturais da forma como a sociedade brasileira se organizou historicamente, como a mesma desigualdade social e o desemprego, ligados às dinâmicas do capitalismo. Sem contar o crescimento da violência – inclusive policial – nas últimas décadas.
Mas há outra argumentação sendo discutida tanto em universidades como em debates públicos mundo afora: a que diz respeito a uma “crise da representação”, levando o problema da democracia ao Estado. Ela aponta para uma outra distância – entre a sociedade civil ou as populações em geral e os dispositivos criados para canalizar as demandas, tais como os parlamentos. Em “O Espírito das Leis”, do século XVIII, o barão francês Charles de Montesquieu bravava ao mundo que uma divisão em poderes como a da Inglaterra – um Legislativo com duas casas, um sistema independente de justiça e um Executivo – era um exemplo perfeito de ordenamento político, ainda que não possivelmente não o seria para sempre.
Demandas sociais
Séculos depois, por ocasião das manifestações populares no Chile, na França e em Hong Kong, o filósofo esloveno Slavoj Zizek escreveu, em sua coluna no site da editora Boitempo, que o momento expressava “o crescente descontentamento que não pode ser canalizado nos modos estabelecidos de representação política”. Assim, ao mesmo tempo em que anunciava (não como se fosse novidade) que aquela perfeição que Montesquieu vira havia, de fato, acabado, ele também recolocava um dilema que fora posto por Lênin: o de construir um dispositivo grande o suficiente para atender as demandas sociais sem que este fosse o Estado burguês como um todo. Para Lênin, vale lembrar, a democracia era apenas um instrumento de dominação da classe dominante.
Mas a democracia também convive – talvez sempre tenha convivido – com uma outra crise: a do cotidiano. Em outras palavras, trata-se das atitudes, posturas, decisões e práticas que as pessoas adotam em todos os espaços da vida ordinária em que se veem inevitavelmente umas diante das outras – da fila do supermercado aos assentos do transporte público, do trânsito das cidades à relação com os vizinhos. Ali, onde a convivência coletiva exige um ordenamento manual, instantâneo e, principalmente, anárquico (tanto porque as regras dependem da aplicação das pessoas como porque elas são, em sua maioria, informais ou até mesmo morais), os princípios democráticos de igualdade, acessos igualitários e de respeito aos direitos alheios estão postos à prova constantemente – e, na maior parte das vezes, fracassam.
A imagem dessa democracia cotidiana é semelhante ao movimento dos átomos: a regra física impede que eles se expandam para dentro de uns dos outros, e sequer é possível que se toquem sem que explodam. No entanto, eles tampouco são capazes de governar seu ímpeto de expansão, de vontade de potência. Assim, os átomos se espremem entre si, crescendo até o limite um do outro, cumprindo duas regras: a de se expandir e a de não invadir o espaço do outro.
Convivência
Na vida social, a mesma dinâmica está dada em todos os lugares em que os encontros são inevitáveis. No nosso caso, especialmente, a dinâmica dessas relações segue um ritmo facilmente perturbável. Por um lado, há um respeito parcial às regras formais e informais dadas pelo ideal abstrato democrático de conviver com o outro, que se manifesta em ações minúsculas do dia a dia – muitas das quais esse ideal é, inclusive, alçado como forma de expressar sua observância. Observar o assento destinado aos idosos no metrô, ainda mais quando não há um idoso no vagão, é sempre um teste social observável, por exemplo.
Por outro lado, esse respeito é constantemente perturbado pelo desejo de passar por cima desse mesmo outro, fazendo valer apenas a própria circunstância, e muitas vezes passa-se deste para a ação. É dizer: para além da vontade de aniquilar todos os outros e, com eles, todos seus espaços, direitos, sensibilidades, circunstâncias, a crise da democracia cotidiana está em sua transformação em atitude, em sobrepassar o coletivo – ou os demais individuais – para que prevaleça o próprio querer. Tudo isso acontecendo no profundo das relações, das pequenas e das grandes, que determinam a dinâmica da convivência.
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado foi uma das cientistas sociais que deram atenção a essa dimensão da democracia: em seus estudos em comunidades de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, ela também começou a se atentar, alguns anos atrás, para algumas reivindicações microssociais que diziam respeito à convivência. Em suas pesquisas mais antigas, é possível encontrar não apenas demandas amplas, como o desemprego, mas também a incapacidade daquelas pessoas em dividirem os espaços públicos ordinários com novas categorias de outros. Foi dessa forma que ela antecipou algumas bases do que hoje é o bolsonarismo.
Há muito o que se dizer – e observar – sobre essa democracia, talvez a que esteja mais ao alcance das mãos. Porém, não há dúvida de que ela também vive uma crise que pode ser, aliás, anterior às demais, porque é nessa dimensão em que as pessoas experimentam o máximo que os princípios democráticos podem oferecer.
Aqui e agora, tudo se passa como se o que o filósofo Jean-Paul Sartre encontrou na filosofia se tornasse prática: “o inferno são os outros”.
Vinícius Mendes é jornalista, cientista social e mestrando do departamento de Sociologia da USP.