A crise humanitária na Síria
Localizada no coração do Oriente Médio, a Síria é uma das regiões mais antigas continuamente habitadas do mundo. Sua história é complexa, marcada por grandes impérios, conflitos geopolíticos e uma guerra civil devastadora.
Décadas após o início da guerra civil, a Síria permanece imersa em uma das mais duradouras e negligenciadas crises humanitárias do século XXI. Com mais de 7,2 milhões de pessoas deslocadas internamente, a sobrevivência cotidiana em acampamentos precários tornou-se rotina para uma população exaurida, cujas necessidades básicas continuam desatendidas. A recente decisão do governo dos Estados Unidos de cortar parte significativa do financiamento humanitário agrava ainda mais o colapso do já fragilizado sistema de saúde sírio.
Nos campos lamacentos próximos à fronteira turco-síria, famílias improvisam a vida entre barracas frágeis, frio intenso e ausência quase total de infraestrutura. Sem eletricidade, aquecimento ou saneamento, a sobrevivência depende de métodos perigosos — e muitas vezes letais — para cozinhar ou se aquecer. A lenha molhada e o uso de diesel como combustível resultam frequentemente em explosões e incêndios.
Foi o que aconteceu com Mohammed. Como milhares de outros sírios deslocados, ele tentava enfrentar o inverno com o que tinha à disposição. Ao despejar diesel sobre a lenha no velho aquecedor de sua tenda, a explosão foi inevitável. Com queimaduras graves, Mohammed hoje se recupera no hospital de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Atmeh, no noroeste do país — um dos poucos ainda em funcionamento. A unidade trata anualmente milhares de vítimas de queimaduras, e em 2024 atendeu mais de 8.300 emergências relacionadas a esses acidentes.
A situação se deteriorou após os cortes de financiamento promovidos pelo governo Trump em 2025, reduzindo a presença de organizações humanitárias internacionais. Mais de 150 unidades de saúde foram fechadas, incluindo 19 hospitais e 97 centros de Atenção Primária, deixando ao menos 4,4 milhões de pessoas sem acesso a cuidados básicos em nove províncias sírias.

O hospital de MSF em Atmeh resiste como uma exceção. Além das cirurgias emergenciais, a instituição oferece fisioterapia, cuidados de saúde mental e tecnologias inovadoras, como máscaras compressivas impressas em 3D para ajudar na recuperação de queimaduras, reduzindo cicatrizes e melhorando a mobilidade dos pacientes.
A história de Alia ecoa a de tantas outras mães sírias. Fugindo dos bombardeios, ela vive com os filhos no acampamento Al-Salata. A queda do regime de Bashar al-Assad, ocorrida em 2024, não representou o fim do sofrimento. As minas terrestres, a destruição de cidades inteiras e o abandono internacional tornam o retorno impossível. Também vítima de queimaduras causadas pelo manuseio do diesel, Alia passou semanas em recuperação no hospital de Atmeh. Agora curada, continua exposta aos mesmos riscos que quase a mataram. “Estamos há 13 anos enfrentando frio, fome e sofrimento”, desabafa Alia, com a voz embargada e os olhos marcados pelo trauma.
O corte de fundos por parte de um dos maiores doadores internacionais ocorre em um momento em que a Síria mais precisa de apoio. A resposta humanitária está dramaticamente aquém das necessidades: os campos estão superlotados, a segurança alimentar é precária e o sistema de saúde está à beira do colapso. Enquanto isso, o sofrimento de Mohammed, Alia e milhões de outros sírios permanece invisível aos olhos de boa parte da comunidade internacional.
É urgente que os recursos financeiros sejam restaurados e ampliados. A ajuda humanitária não pode ser condicionada a interesses geopolíticos ou a mudanças de governo, e a dignidade e a sobrevivência de um povo não devem depender de decisões administrativas tomadas a milhares de quilômetros de distância.
A esperança dos sírios é simples: viver com dignidade. Ter um teto seguro, comida na mesa, acesso à saúde. Nada além do básico — aquilo que a guerra, o abandono e a indiferença lhes tiraram há mais de uma década.
Este artigo foi produzido em colaboração com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras.
Roger Flores Ceccon é professor da Universidade Federal de Santa Catarina.