A cultura é a saída
Para não perdermos nossa essência, é preciso proteger a diversidade, todas: a das espécies, dos pensamentos, das manifestações simbólicas, das opiniões, das idéias.
Meu caro Danilo Santos de Miranda,
Foi com estupefação que acabei de saber que o Sesc corre o risco de ser privado de 33% de seus fundos, em benefício de uma educação estritamente técnica e profissional.
Ora, nós sabemos que uma competência geral do espírito, formada por uma cultura humanista, permite um melhor desenvolvimento das competências especializadas, profissionais ou técnicas, e que o Sesc tem um papel cultural insubstituível, que suscita a admiração entre nós, europeus, que conhecemos sua ação. Ele contribui ao desenvolvimento das sensibilidades artísticas, ao desenvolvimento das faculdades do espírito, ao desenvolvimento da capacidade de responder aos desafios contemporâneos da complexidade, ao desenvolvimento de uma consciência cidadã, brasileira e, ao mesmo tempo, segura de si mesma e aberta ao mundo. O Brasil pode orgulhar-se, graças ao Sesc, de estar na vanguarda da cultura de nossa época. O Sesc deveria ser, não limitado, mas por todos imitado.
Esteja seguro, meu caro Danilo, da minha compreensão e do meu apoio.
Com minha calorosa admiração por vossa ação.
Edgar Morin
Meu caro amigo Edgar Morin,
Há muito não escrevo uma carta como esta: uma carta pensada e escrita no tempo da tinta sobre o papel, no tempo do movimento da mão desenhando cada letra, buscando palavras que dessem conta de dizer sobre uma experiência, a experiência de uma vida dedicada às ações socioculturais.
“Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo”.
Carlos Drummond de Andrade
Se você, por um momento, ficou estupefato, também eu, ao saber das intenções do governo em retirar uma parcela dos recursos do Sesc para a criação de um fundo de financiamento de programas de formação profissional. Se por um lado a situação não oferece conforto algum, por outro, nos mobiliza para novos movimentos, novas ações, novas reflexões.
Ao parar para ler a proposta, ao me reunir com colegas para trocar idéias, ao chamar integrantes do governo para o diálogo, não pude deixar, em nenhum momento, de ter seus ensinamentos como baliza para meu caminho. Não digo que este meu caminho esteja íngreme, tortuoso, sombrio, como costumamos dizer nos momentos de tensão. Pelo contrário, neste momento tão delicado, há muito não via um caminho, um destino tão claro para as minhas crenças. Nas nossas inúmeras conversas, em seus preciosos livros, algumas questões sempre me ficaram em órbita, qual escudo protetor dos meus pensamentos e – por que não? – também de minhas ações.
Se é parte da condição humana retomar, refazer, religar, se é parte da ação sociocultural recuperar, reorganizar, religar aqueles e aquilo cindido de sua essência, você tem me apontado que o problema maior que o século XXI nos apresenta é o problema da compreensão humana. E pensá-lo significa discorrer acerca da sociedade, da educação, das culturas, do conhecimento, dos modos de fazer.
Mais que ninguém, Morin, você sabe que o mundo contemporâneo tem se constituído numa mutação constante. A mudança tornou-se ordem, e o que o homem antes tinha como parâmetro não é mais suficiente e convincente. As antigas dualidades entre cultura e natureza, animal e máquina, real e imaginado, que sempre surgiram como oposições, estão em mutação.
Tais mudanças não poderiam deixar de atingir essências que formaram a humanidade, como no caso da educação. A história, sistematicamente, nos aponta os diferentes caminhos já percorridos no âmbito educacional, desde sua canalização a uma restrita classe social até sua democratização, fazendo-se valer a todos os seres humanos.
Foi-se um tempo em que a tecnicidade se fazia necessária para a industrialização. Era preciso criar mão-de-obra especializada. Foi um árduo começo, um aprendizado rígido à força das mãos dos que morreram trabalhando. Grande parte da literatura ocidental do século XIX nos mostrou um modo de vida que deveria ser transformado, um apelo ao espírito humano para zelar pela vida.
A modernidade, nascida de uma revolução, a Revolução Francesa, iniciou sua trajetória de mudanças aumentando a velocidade. Para isso, precisou ganhar espaços, construiu estradas, automóveis, aviões. Depois, conquistou o espaço sideral, levou o homem à Lua, desenvolveu satélites, fez estações espaciais. Mas, para tudo isso, teve de aprender. Aprendeu com o sangue de pessoas dedicadas exclusivamente ao trabalho, sem direito ao ócio, ao lazer (veja Morin, sem o Sesc), e deixou um legado desse aprendizado que se resumia num trabalho técnico, específico, compartimentado.
Hoje, graças aos esforços dos povos e da própria democracia, vigente em grande parte do mundo, a exacerbação da indústria toma um rumo por águas mais calmas. Nos nossos dias, temos aí as afamadas novas tecnologias produzindo o chamado pós-humano (não mais para um fim comum necessariamente, com maquinarias gigantescas, mas com um caráter individual, como os Personal Computers – PCs), a prosperidade da ciência de forma nunca pensada, tornando realidade a ficção científica em realidade. Tais tecnologias estão na base das grandes mudanças conceituais da modernidade e pós-modernidade. A ciência foi ao ponto de conseguir mapear o genoma humano. E, a partir daí, nem o céu é mais um limite.
Tal cientificismo determinou a ruptura entre filosofia e ciência, criando uma cultura científica e uma humanista. Nesta seara, é preciso dizer que a cultura humanista é uma cultura geral, enquanto a científica se deteve nas especializações. Portanto, isso nos leva a pensar que os conhecimentos desta cultura, científica e especializada, serão progressivamente fechados em disciplinas e terão linguagens formais muito próprias e inacessíveis às pessoas comuns.
Porém, é esse modo de conhecimento que opera a distinção entre natureza e humano, reduzindo os diversos aspectos da vida de sua complexidade. Isso nos mostra que, como humanidade, estamos sempre aprendendo, pois devemos reconhecer a importância e os benefícios da ciência para o nosso desenvolvimento, sem que, para isso, tenhamos de nos separar de nossa essência, daquela nossa cultura humanista.
Segundo você mesmo disse, caro Morin, nossa cultura ocidental está fragmentada em virtude do tecnicismo da razão. Cada vez mais, temos nossa razão operando em pedaços. E como fica, então, esta complexidade da vida? A que ela está sujeita? A desaparecer? Creio que não. Não só por crença, fé no homem, mas por exemplos contundentes que pululam mundo afora. É o caso do convívio saudável entre a “formalidade” e a “não-formalidade” da educação em muitas sociedades contemporâneas e nos estudos que afloram nas diversas instituições educacionais.
Já que a complexidade, diante da “amea-ça” da fragmentação do pensamento, reclama uma nova aptidão para organizar o conhecimento, nada mais justo que se concretize uma reforma paradigmática que seja difundida pelas culturas, pois só a educação formal não seria suficiente. Acredito que é a cultura que pode apresentar saídas para que seja possível o desempenho humano de suas potencialidades múltiplas, ligando a unidade e o múltiplo, a parte e o todo. Assim, me parece, a vida cheira mais à vida.
Por isso, para que não percamos nossa essência, é preciso proteger a diversidade, todas: a das espécies, dos pensamentos, das manifestações simbólicas, das opiniões e das idéias. Tornarmo-nos diversos, Morin, implica olhar para o que somos, respeitar o que somos, já que o que somos é o universo todo.
E falo de proteger a diversidade, no caso cultural, não engessando as manifestações já existentes, nem impedindo as fusões e novos significa
dos que possam surgir das reuniões entre as diferentes culturas, pois tal reunião pode apresentar um terceiro resultado da conjunção de duas partes diferentes. Talvez um dos caminhos seria implementar políticas de ação cultural para atuarmos, como você mesmo disse, de maneira dialógica, ou seja, reunir de modo complementar termos antagônicos, ou mesmo reabilitar a arte, a poesia, a música como sensibilidades inerentes e inseparáveis da razão.
Você sabe, Morin, que minha defesa na abordagem educativa da ação cultural é fazer necessário recuperar ou criar possibilidades educativas da cultura. É o credo que rezo e prego aqui em São Paulo. Longe de mim tirar o prestígio e a importância que a educação formal tem em nossa sociedade. Com o olhar voltado para a complexidade que é nossa vida, vejo que o caminho da união é mais plausível e salutar. Podermos desfrutar uma cultura científica juntamente com uma cultura humanista, uma educação formal com uma não-formal. Quanto poderíamos nos desenvolver, ou melhor, como nos desenvolvemos quando temos a oportunidade de ser mais completos e complexos!
Unir cultura, educação e cidadania me parece a fórmula principal de promoção do desenvolvimento em direção à criação, à auto formação e à liberdade advinda do conhecimento: um poder civilizador ao alcance de todo cidadão.
Mas o conhecimento não se estabelece única e exclusivamente na razão, nem tampouco sobre normas. O conhecimento, como você tem nos ensinado, é uma operação de tradução e reconstrução permanentes.
Sabemos que a visão usual de educação consiste em vê-la como o conjunto de todos os meios que contribuem para o desenvolvimento das faculdades físicas, morais e intelectuais do ser humano. Esse conjunto diz respeito a pelo menos três amplos domínios, intercomplementares. O domínio do saber, correspondente ao conhecimento intelectual. O domínio do saber-fazer, relacionado ao exercício de competências práticas, sejam técnicas, comunicacionais, estéticas, científicas. O domínio do saber-ser, alusivo à capacidade de produzir ações adaptadas ao meio social e natural no qual o indivíduo se encontra imerso.
Por mais desenvolvidos que sejam os sistemas formais de educação, é impensável que a escola, por si só, possa pôr em prática um projeto educativo de semelhante envergadura. Ele diz respeito a todas as instâncias e instituições da sociedade, o que remete à noção de sociedade educativa.
Caro Morin, permita-me levantar algumas indagações:
Em face de uma definição de tal alcance, como ignorar o papel ambíguo dos meios de comunicação de massa? Como criar estruturas intermediárias entre a produção cultural pautada pelas regras do mercado e o público receptor? Como favorecer a triagem crítica dessa produção? Como promover a produção cultural de corte crítico, criativo, interrogativo, inovador, em geral ao alcance apenas de estratos privilegiados da população? Como democratizar essa produção, de forma a fazer contraponto à torrente poderosa de lugares comuns conformistas difundidos pela cultura de mercado?
Veja-se, a esse respeito, o parecer de um perito em educação com atuação no âmbito da Unesco, ainda em franco diálogo com o Aprender a Ser, de Edgar Faure: “É de se salientar, entre as novas políticas educativas, uma melhor integração entre cultura e educação, no programa educativo, e uma busca obsessiva da cultura como educação em si mesma, da cultura como o conjunto de manifestações da vida humana em todos os seus diferentes setores. A valorização da cultura não significa o confinamento da tradição cultural aos museus e ao folclore; a cultura vive e, para viver, precisa evoluir. É essa abordagem cultural que permite fazer frente e contrapor-se a uma educação redutiva. Todos têm direito à arte, à filosofia e às ciências; as experiências artísticas, filosóficas e científicas não são mais o privilégio de elites. Todavia, a democratização dessas experiências, só de maneira muito restrita, pode ser considerada resultado único do ensino; é graças a uma vivência cultural intensa que as crianças, os jovens e os adultos se abrem à descoberta artística, filosófica e científica, quotidiana e não acadêmica. Essa riqueza da vida cultural se torna também instrumento de resistências culturais contra qualquer manipulação que vise a tornar o homem dependente no que diz respeito à sua opção como cidadão, produtor, consumidor, militante político e outros”(GELPI, 1983:21).
O novo paradigma educacional planta desafios em territórios cuja geografia ainda é incipientemente conhecida. Assim, perante a nova realidade do trabalho industrial e urbano, como encarar de maneira criativa os novos tempos sociais, especialmente o tempo livre? Como contribuir para fazer do tempo de lazer um espaço privilegiado de educação para a cidadania, para a sociabilidade, para a tolerância, para o respeito à diversidade? Como minimizar as possibilidades de ele vir a se transformar em novo fator de alienação, de desintegração social, de delinquência e de violência, sobretudo nos meios jovens? Esta última questão aplica-se igualmente à configuração explosiva do espaço das grandes metrópoles, em cujas periferias bolsões de pobreza de dimensões inauditas tornam diluída a presença e a ação do Estado.
Caro Morin, também ressoam em minha memória os ensinamentos do mestre Paulo Freire: é preciso unir a educação e a cultura. Concebidos como inseparáveis na proposta transformadora do Sesc, acredito nessa premissa e procuro desenvolver uma ação própria, gerando uma tecnologia social de acordo com nossas características e demandas locais. A maneira para articular educação e cultura foi estabelecida a partir dos princípios do que seria o desenvolvimento das potencialidades de todo cidadão em suas diversas idades.
Assim, o caminho mais freqüente é aquele que se constrói do mundo para o papel, e menos aquele que se constrói do papel para o mundo. Como educadores, acredito, acreditamos todos nós do Sesc, mais nas pessoas do que nas grades curriculares. Penso que isso nos leva a um percurso mais generoso, a uma crença nos processos, a uma valorização das atitudes, uma descoberta ao fazer. Não se trata de dispensar o rigor ou renunciar aos métodos, mas simplesmente de aprender a escutar. Escutar mais generosamente a realidade, as pessoas, as complexas relações humanas. Saber escutar é saber sentir, estas são duas palavras que se confundem em muitas línguas… trata-se de um saber que reúne e atribui novos sentidos ao
s erros, aos riscos, ao hesitar, ao experimentar.
Como uma agência educativa não-formal, pudemos criar e recriar estratégias, adotar conceitos, de modo a atender as transformações políticas, culturais e sociais que nos acompanham no Brasil. Nosso objetivo nunca foi o de criar pessoas brilhantes para despontar no cenário cultural, mas de provocar e estimular um processo de auto formação permanente, segundo a ideia do “aprender a aprender”. Afinal, as pessoas precisam de formação contínua ao longo da vida, pois o conhecimento e a cultura humanizam a existência.
Como último exercício, e neste meu processo de tradução e reconstrução das idéias que carrego do mundo e verto em palavras, posso escrever que trago algumas certezas. A certeza de que trabalhamos para o lazer: o lazer é algo voluntário; quando o escolhemos, somos co-responsáveis, donos de nossas ações, mais abertos ao contato com o outro, com o novo, com o diferente. A certeza de que trabalhamos para a inclusão: ao reunirmos diferentes públicos em convivência harmônica, respeitamos e somos respeitados. A certeza de que trabalhamos para a educação: almejamos desenvolver a autonomia, o senso crítico e a criatividade. A certeza de que trabalhamos para a inclusão social pelo lazer educativo. Isso significa que tudo está pronto? Não, longe disso. Significa, sim, que alguns objetivos e métodos de trabalho já estão estabelecidos e nossa contínua existência no tempo se deve ao permanente estado de atenção e abertura para o novo, para a reflexão, para as inquietações. Se uma instituição educativa estanca, ela não dura e deixa de ser vivamente apropriada pelo público. Acredito, pois, que essa apropriação viva, essa pulsação se deve à capacidade de mobilizar e acolher a diversidade, à capacidade de mobilizar e recolher humanidades.
“Para preservar o mundo contra a mortalidade de seus criadores e habitantes, ele deve ser, continuamente, posto em ordem. O problema é simplesmente educar de tal modo que um pôr-em-ordem continue sendo efetivamente possível, ainda que não possa nunca, é claro, ser assegurado.”
Hannah Arendt
Com meu abraço, Danilo Miranda
Danilo Miranda é especialista em ação cultural e diretor do Departamento Regional do SESC – Serviço Social do Comércio no Estado de São Paulo. É também conselheiro do MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo), da Fundação Itaú Cultural e do Art or the World, da Suíça. Foi presidente do Conselho Diretor do Fórum Cultural Mundial/2004, em São Paulo, integrando ainda a diretoria do International Institute for Cultural Enterprise, dos EUA.