Cinemateca, entre o deserto e a miragem
O maior acervo brasileiro de cinema, que contém a memória de mais de cem anos de imagens, hoje não possui ninguém para zelar por ele
Panorâmica “Terra em transe”
O incêndio na cinemateca não foi um acidente. Os responsáveis sabiam o que faziam e mesmo assim o fizeram. Foram seguidamente avisados da gravidade da situação e escolheram colocar em risco um patrimônio coletivo que se perdeu. Outros materiais seguem em perigo. Perigo de destruição imediata, em um novo incêndio. Perigo da destruição silenciosa, de filmes que apodrecem dentro de latas sem o devido cuidado.
Primeiro Plano “A margem”
No dia 29 de julho de 2021, um incêndio atingiu um dos galpões da Cinemateca Brasileira na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo. Não se sabe exatamente o tamanho do dano ao patrimônio armazenado na instituição, mas estima-se que o fogo tenha consumido documentos da antiga Embrafilme, acervos de cineastas brasileiros como Glauber Rocha e Carlos Reichenbach, matrizes de filmes e programas de televisão. Não sabemos o que se perdeu. Não sabemos o que restou. Tampouco saberemos: não há funcionários na Cinemateca para fazer essa avaliação. O maior acervo brasileiro de cinema, que contém a memória de mais de cem anos de imagens, hoje não possui ninguém para zelar por ele. Em declaração após o incêndio, o corpo de bombeiros afirmou que “não houve vítimas”. Não poderia haver vítimas em um balcão abandonado. A perda da memória não se mede por palavras. Em cada escrito, cada fotograma carbonizado, há uma alma ultrajada, uma visão incinerada.
Flashback. “Bang Bang”
Em dezembro de 2019, o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub encerrou unilateralmente o contrato com a Associação Roquette Pinto, organização social privada, que geria a Cinemateca desde 2018. A instituição adentra o ano de 2020 sem gestão designada e sem repasses do governo federal.
No dia 3 de agosto de 2020, a juíza Ana Lúcia Petri Betto, titular da 1ª Vara Cível Federal de São Paulo, negou o pedido emitido pelo Ministério Público solicitando a renovação emergencial do contrato com a Roquette Pinto para tutela da Cinemateca. Segundo a juíza, “A União Federal comprova a adoção das medidas emergenciais de preservação do patrimônio histórico da Cinemateca”. A instituição estava há mais de oito meses sem administradores, sem funcionários (demitidos em abril de 2020) e com dívidas acumuladas pela interrupção de repasses. Nada disso sensibilizou a magistrada. Salvo engano, após o incêndio a juíza não se manifestou. No jargão jurídico, “nada mais foi dito e nem perguntado”.
Em 7 de agosto de 2020, técnicos do Ministério do Turismo (que abrigava, então, a secretaria de Cultura), em ato teatral e farsesco, tomaram a Cinemateca de assalto, acompanhados de agentes da Polícia Federal. A ação, que tinha por fim apreender as chaves da instituição, era direcionada contra os funcionários da Cinemateca, que trabalhavam voluntariamente para a preservação do acervo. O ato, de simbólica intimidação, contou com o protagonismo de Hélio Ferraz de Oliveira, então secretário substituto do audiovisual. Os funcionários foram impedidos de entrar na Cinemateca a partir de então.
Em abril de 2021, os Trabalhadores da Cinemateca Brasileira emitiram comunicado alertando para os perigos a que o acervo da Cinemateca estava exposto, abandonados, sem nenhum cuidado técnico. Em junho de 2021, meses após a espalhafatosa performance na Cinemateca, Hélio Ferraz foi promovido a secretário adjunto da cultura, tornando-se o “Nº 2” de Mário Frias, secretário de cultura. A Prefeitura de São Paulo, em inúmeras ocasiões, propôs auxiliar a gestão da Cinemateca Brasileira, aventando a hipótese de transferência de gestão da entidade para a Cidade de São Paulo. Pedidos e questionamentos foram feitos para diversos integrantes do governo federal, entre eles o general Luiz Eduardo Ramos e o garoto de recados Hélio Ferraz. O governo não respondeu às propostas e questionamentos. O fato de Bolsonaro e Mário Frias não terem riscado os fósforos nem atiçado faíscas não os exime da responsabilidade pelas chamas.
Plano de conjunto. “A falecida”
A gestão da cultura no governo Bolsonaro é uma versão em miniatura de seu projeto. O abandono programado da Cinemateca se soma à extinção do próprio Ministério da Cultura, à paralisia da Ancine, à interrupção do incentivo à produção cinematográfica, à censura a projetos culturais, à intervenção moralista na Lei Rouanet, à perseguição a artistas e ao aparelhamento dos órgãos públicos de cultura por militares e apadrinhados sem formação técnica. O projeto cultural do governo é um não projeto. Uma destruição que nada cria.
Bolsonaro é um presidente obcecado em não governar. A CPI da Covid, instalada no Senado Federal, explicita ao país que a ação por omissão é marca e estratégia de governo. Mais de 500 mil mortos ou milhares de arquivos audiovisuais perdidos não foram suficientes para incitar nenhum compromisso público do governo militar capitaneado pelo clã Bolsonaro.
Mas a CPI nos mostra mais: os interesses escusos por trás da omissão, tiveram como fim beneficiar os sócios ocultos do governo no sobrepreço de vacinas. A corrupção não pôde ser varrida para baixo do tapete, nem mesmo pela chantagem golpista dos militares. Houve lucro com as mortes. As mãos estão sujas de sangue.
Menos explícito, mas não menos execrável, são os interesses por trás da destruição do cinema brasileiro. “Follow the money”, dizia um filme dos anos 1970 sobre o escândalo de Watergate. Não é preciso ser gênio para deduzir que os maiores beneficiários da destruição do cinema brasileiro são as multinacionais de audiovisual norte-americanas, com suas produções massivas, suas redes de distribuição virtual e suas salas de cinema. A subserviência dos militares que nos governam aos norte-americanos não é novidade, assim como não é surpresa as notícias sobre a participação do serviço secreto deste país nos eventos que levaram à ascensão de Bolsonaro. Nunca na história deste país um governante se prestou a tamanho desmonte. Nunca antes na história deste país um presidente bateu continência para a bandeira dos Estados Unidos. Capitão do mato dos estrangeiros, Bolsonaro pode ser tudo, menos um patriota.
Plano. “Filme Demência”
Em seu ensaio Working towards the Führer, Ian Kershaw argumenta que Hitler era um “ditador preguiçoso”, que realmente não estava interessado em se envolver muito na gestão diária da Alemanha nazista. A grande exceção eram as decisões militares. Analogamente, o Brasil é hoje administrado por um autocrata beligerante e indolente, preocupado unicamente com a militarização do Estado e com a “guerra cultural”, a sujeição das políticas públicas à sua ideologia. O principal da administração, o presidente aluga a seus grupos apoiadores.
Bolsonaro é um presidente-ventríloquo, um boneco movimentado por ações e interesses que ficam nos bastidores. Ao fundo, disfarçados medianamente pelo escuro, militares, milicianos, financistas, varejistas, donos de igreja, latifundiários e multinacionais movimentam o boneco para assinar decretos que lhes atendam. Para entreter o público, o ventríloquo repete incessantemente o mesmo bordão: “comunismo”, inventando inimigos ao deus-dará, enquanto o país é dilapidado.
Engana-se quem pensa que o projeto de Bolsonaro é aniquilar o Estado. O governo atua para retirar o Estado das suas funções públicas básicas, mas fortalece o aparato para a repressão social e, acima de tudo, para distribuir privilégios e cargos a militares e à canalha de facínoras que lhe segue. Em articulações parlamentares, o governo atende aos grandes estúdios de cinema internacionais e suas plataformas de streaming e age para desregular o mercado audiovisual brasileiro. No paralelo, os órgãos comandados por olavistas, pastores evangélicos e militares interrompem (quando não censuram) os repasses a projetos que não se encaixam em sua ideologia. Esse mesmo governo trabalha para criminalizar a classe artística, instaurando um clima persecutório ao reavaliar contas de projetos que já haviam sido aprovadas. Tudo sob a complacência do Judiciário e do Legislativo.
A gestão do cinema sintetiza a operação: os órgãos públicos são aparelhados por apoiadores desqualificados e sua ação efetiva serve unicamente para atender à pauta das multinacionais, financiar produtoras sem escrúpulos, comprometidas com a rede de mentiras bolsonarista e promover a dita “guerra cultural”, que nada mais significa do que destruir tudo o que lhe é diferente. A anti-utopia fascista dos militares no poder: guerra psicológica para a destruição simbólica, guerra concreta para a destruição física.
Contra-plano. “Limite”
Na ocasião do incêndio no Museu Nacional, o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro declarou: “o Brasil é um país onde governar é criar desertos”. Se todos os governos anteriores pouco fizeram para deter nossa condução ao abismo, no governo Bolsonaro o deserto é a miragem.
Deserto é o espaço tomado pelo vazio, o vácuo que constitui atualmente o Estado brasileiro. Bolsonaro corrói o Estado por dentro, desvirtuando suas funções, e o deixando à mercê dos interesses financeiros. Um governo caracterizado por militares e políticos que agem contra os órgãos pelos quais deveriam lutar. A Fundação Palmares persegue o movimento negro. A Funai persegue indígenas. A Ancine persegue cineastas. O Ministério da Educação persegue professores. Uma ação predatória, com propostas que favorecem a grilagem de terras, extração mineral em terras indígenas, perdão de dívidas milionárias de igrejas e reformas que cortam direitos e agradam ao empresariado. Um Estado-condomínio de parte da elite brasileira, que reparte os recursos (naturais e financeiros) do país com o capital internacional. A festa dos poderosos é o deserto do real.
Bolsonaro é sincero quando diz que vivemos uma revolução: mas ela se faz em sinal invertido – regredimos 50 anos em 5, com um país à mercê do crime miliciano, do extremismo, do militarismo e do extrativismo. “A revolução” bolsonarista consiste em destruir tudo o que não é espelho. Com violência. Uma máquina de guerra, conduzindo diversos massacres simultâneos contra os povos originários, contra o cinema, contra os pobres, contra a arte, contra as favelas, contra a educação, contra a Amazônia, etc, etc, etc. O deserto é metáfora e realidade no Brasil contemporâneo.
Plano Geral. “Das tripas coração”
A efetivação do projeto bolsonarista requer destruir a memória do país que ainda resta. O incêndio na Cinemateca é apenas o episódio mais recente da política de destruição. As chamas na Vila Leopoldina são a imagem síntese de um país em guerra consigo mesmo, abandonado.
Como escreveu o poeta Manoel de Barros, precisamos construir “algo para abrigar o abandono, como as taperas abrigam. Porque o abandono pode não ser apenas um homem debaixo da ponte, mas pode ser também de um gato no beco ou de uma criança presa num cubículo. O abandono pode ser também de uma expressão que tenha entrado para o arcaico ou mesmo de uma palavra. Uma palavra que esteja sem ninguém dentro. (O olho do monge estava perto de ser um canto.) Continuou: digamos que a palavra AMOR. A palavra amor está quase vazia. Não tem gente dentro dela. Queria construir uma ruína para a palavra amor. Talvez ela renascesse das ruínas, como o lírio pode nascer de um monturo”. E o monge se calou descabelado.”
Plano detalhe. “Memórias do cárcere”
É preciso insistir no óbvio: acervos não são depósitos, a mera estocagem não assegura a preservação de materiais tão diversos como os da Cinemateca Brasileira e não há adoção de medida alguma de preservação sem um corpo de funcionários presente e competente.
Acompanhamos um sonho de milhares de brasileiros que constituíram nossa memória em imagens se desfazer nas mãos de militares que se afirmam nacionalistas enquanto dilapidam o patrimônio do país, com a anuência de um Judiciário que não cumpre o seu papel. A destruição do acervo da Cinemateca é o símbolo dessa aliança torpe do que há de pior no Brasil, mistura de negligência, corrupção, estupidez e demência. Mas o que esperar de um governo que escolheu premeditadamente sacrificar a vida de milhares de pessoas na pandemia além de um legado de morte e destruição? O sequestro da Cinemateca por pessoas estranhas à sua cultura é um crime contra todo os povos brasileiros.
Corte. “Alma no olho”
O drama da Cinemateca brasileira é um filme feito de imagens ausentes. Lacunas de gestos e ações, que em 29 de julho se materializaram como material inflamável.
As principais omissões foram do presidente da República, Jair Bolsonaro, e do secretário executivo de cultura, Mário Frias. A deliberada omissão dos dois é criminosa e foi a principal causa do incêndio de parte do acervo da Cinemateca Brasileira.
No entanto, outras instâncias do Brasil também engendraram sua ausência. O Judiciário é conivente com a omissão do governo na Cinemateca, assim como é leniente com o seu projeto destrutivo. É amplamente sabido que há franjas bolsonaristas dentro do Judiciário, usando seus postos em favor do governo e contra o interesse público. Até o momento, foram pálidas as reações em contrário.
O Legislativo é outro agente importante na trama de destruição da Cinemateca. Ele é cúmplice (quando não sócio) do projeto de destruição da cultura (bem como do quadro geral da sociedade brasileira) do governo. O orçamento de manutenção anual da entidade custa menos que uma emenda parlamentar. Nada foi feito.
A elite brasileira também deixou as digitais de sua omissão nesse episódio. Os bilionários da cultura mantiveram sua elegante distância, endinheirados financistas preferiram doar dinheiro para o restauro de Notre Dame e do infame Borba Gato. Os ricos não se incomodam com as cinzas do cinema nacional sobre seus sapatos.
Plano Sequência. “O desafio”
A Cinemateca brasileira não é uma lembrança do passado, é uma memória em movimento, que constitui um futuro. Lembrar quem somos e de onde viemos é imaginar o que podemos ser. É preciso, acima de tudo, imaginar: se o governo atual nos impõe a cegueira violenta do presente, é preciso construir imagens de um país futuro, um país livre, de olhos livres. Imaginar é acreditar que este país é possível. Que os mais de meio milhão de brasileiros mortos e a memória incinerada do cinema brasileiro se convertam em fundamento de nossa coletividade. Como Corisco, não nos entregaremos. Jamais.
Adirley Queirós, Affonso Uchoa, Cristina Amaral, Eryk Rocha, Ewerton Belico, Luiz Pretti e Thiago B. Mendonça são cineastas brasileirxs.