Em 2004 eu cheguei em São Paulo vindo de Pernambuco. A viagem de ônibus durou em torno de 38 horas, passando por Alagoas, Sergipe, Bahia e Minas Gerais até chegar no Tietê, em um “pequeno mapa do tempo”, aquele da canção de Belchior. Um amigo me esperaria na rodoviária, mas quando desci do ônibus ele não estava. Na época eu não tinha celular, liguei de um orelhão e tive que esperar.
Num misto de expectativa e medo, sentei desconfiado e fiquei olhando aquele espaço cinza de concreto gigantesco. Avistei um policial circulando com seu Ray-Ban e assoviando Negro Drama, dos Racionais Mc’s, um garoto lendo O Código Da Vinci, uma mulher sozinha comendo um hot dog, pessoas cinzas normais, vindas de vários lugares do Brasil e dos países vizinhos. A cultura circula e está em todos os lugares.
Atrasado, meu amigo chegou, lembro do sorriso dele, Severo sempre sorrindo. De lá pegamos o metrô Tietê (nunca tinha andado de metrô antes) até o metrô Santa Cruz e esperamos um ônibus que nos levaria até o bairro Jardim Ângela, zona sul da cidade de São Paulo. O ônibus chegou e saímos do ponto. Lembro de olhar a cobradora e o motorista descontraídos, conversando.
No trajeto do ônibus, uma saudade me assola, alguém lê o Salmo 38, um homem concentrado olha distante, outro segura um rádio e ouve uma partida de futebol, vejo o movimento do tráfego, um rapaz delicado e alegre ao telefone. Olho e imagino a quantidade de vezes que a cobradora e o motorista fizeram esse mesmo percurso. A cultura se movimenta e está em todos os lugares.
Fixo o meu olhar na janela e no desconhecido, o motor Scania sacoleja meu silêncio. O meu amigo oferece um biscoito de chocolate, aceito e mastigo com vontade. A cultura está em todos os lugares, com suas formas e significados comuns. O trajeto é demorado. Mais distante, cruzamos o rio Embu-Mirim e começamos a subir, casas, muros e sobrados. “Doideira de cidade grande”, penso: “São Paulo, tem muita gente só”. Mais adiante, lojas de roupas, botecos, lojas de sapatos, McDonald’s, Habib’s e o nosso ponto final, a (que depois descubro famosa) Padaria Menininha. A cultura nos atravessa e está em todos os lugares.
A cultura pode ter dois sentidos gerais. Raymond Williams entende que a palavra pode “designar todo um modo de vida – os significados comuns; e para designar as artes e o aprendizado – os processos especiais de descoberta e esforço criativo”. A cultura está em todos os lugares e pessoas.
A cultura é e sempre será um espaço de disputas e a indústria cultural sempre teve interesse em moldar o gosto da maioria para a constituição da ordem, integrando desde Jackson do Pandeiro a Michael Jackson, de Godard a Spielberg, de cuscuz à pizza, de pop music a forró, de Paulo Coelho às novelas globais. Por mais diferentes que sejam essas vertentes culturais, a indústria cultural está muito mais presente do que imaginamos, é uma consequência inevitável.
Em sociedades heterogêneas, os embates também se deslocam para as questões culturais, a cultura se alonga, incluindo a pátria, a família, o gênero e a religião. Suprimir esse debate do cotidiano é um erro grave. O território em que vivemos não é apenas um conjunto de coisas, onde moramos, trabalhamos, estudamos e circulamos, é também um espaço de construção da dimensão do simbólico. “A cultura é de todos: em meio a todas as mudanças, vamos sempre nos ater a isso”, observa Williams.

Batalhas do cotidiano
Os meios de comunicação de massa absorveram o ideário do nacional-popular no Brasil das décadas de 1950 e 1960, consolidando a ideologia da indústria cultural nas décadas posteriores, criando uma tendência de homogeneização e comprometendo a cultura popular (que é associada à classe trabalhadora) pelo condicionamento. Essas ações acabaram por atingir a relação entre os polos da indústria cultural e da produção cultural popular, sendo o “popular” um termo que encampa disputas pelo seu significado.
Parece ser confusa essa concepção de cultura popular oposta à cultura de “massa” (termo em desuso), que a identifica como uma cultura “alternativa”, “autêntica”, “verdadeira” e distante da chamada “cultura popular comercial”.
Stuart Hall observa que “a dominação cultural tem efeitos concretos – mesmo que estes não sejam todo-poderosos ou todo-abrangentes. Afirmar que essas formas impostas não nos influenciam equivale a dizer que a cultura do povo pode existir como um enclave isolado, fora do circuito de distribuição do poder cultural e das relações de força cultural”.
É possível pensar que tentativas de contracultura se transformam em arte consagrada e dogma cultural quando tem êxito, ou seja, se de início fogem, ainda que parcialmente, à dominação, logo são absorvidas conforme os interesses do sistema político e cultural dominante. A cultura nos cruza e está em todos os lugares.
Não espanta que a produção cultural da periferia tenha se tornado visível ao mesmo tempo que surgiram representações da periferia na televisão e no cinema, na indústria cultural, de uma maneira geral. É sintomático que a indústria cultural tenha buscado dialogar com esse novo nicho que representa a nova ordem social, no qual o seu esforço de abarcar o todo da sociedade caminha para a incorporação da cultura popular periférica, a nova classe média e sua promessa de um país com menos pobreza. Ao menos era o que parecia, nos primeiros quinze anos do século.
No senso comum, popular refere-se ao que tem grande aceitação das “massas”. Mas “as massas não existem de fato, o que existem são modos de ver as pessoas como as massas”, observa Williams. Portanto, esse é um termo ligado ao consumo e ao mercado, que entende o povo de maneira pejorativa e passiva. Parece ser necessário se afastar desta concepção sem deixar de apontar para o aspecto de fato manipulador que a indústria cultural exerce sobre nós. Ainda que algo sempre possa nos escapar, pode ou não ganhar espaço e expressão, a depender da estrutura social que a faça ecoar.
Mas o que será que pensam os meus irmãos e pais evangélicos? São pessoas vulgares por assistirem ao BBB, novelas e irem à igreja? Seria eu mais refinado por assistir aos filmes do Cinema Novo ou da Nouvelle Vague? Acho que não. Ou não importa. Eles estão satisfeitos com seus hábitos e costumes em comum. Na realidade, a cultura é usada como indicador de status social de forma perversa. “A cultura é de todos” e valorizar seu aspecto diverso e inclusivo é opor-se à sua instrumentalização como meio de dominação. Ao mesmo tempo, é justamente o conhecimento de sua amplitude que nos possibilita um posicionamento melhor no campo de batalhas cotidiano, com resultados individualistas ou podendo compor uma articulação voltada para o bem comum, que é necessariamente inclusiva.
“Alta” e “baixa” cultura são termos indicativos e não conceitos determinantes. A cultura não existe descolada das pessoas. Nesse sentido, compreender o lugar da cultura significa visualizar seus impactos e desdobramentos nas batalhas do cotidiano. Se torna então fundamental trazer ao debate a luta de classes.
A indústria cultural se constitui em função das necessidades individuais: otimismo da felicidade, compensação pelo esforço e práticas de consumo. Esses três aspectos podemos chamar de ideia-força, uma busca vivida por milhões de pessoas. A indústria cultural impõe seus gostos, explorando as necessidades da grande maioria, que acaba incorporada como cliente. Na realidade, o que os senhores do kitsch buscam é projetar e preservar seu sistema de classes.
Herbert J. Gans, no livro Cultura popular e alta cultura, analisa conflitos entre distintos grupos de interesse que se estenderam a questões culturais, para além daquelas estritamente econômicas e políticas. O autor aponta que a guerra cultural “na realidade, é um debate acerca da natureza do padrão de vida, mas especificamente acerca de qual cultura, a cultura de quem, deve predominar na sociedade. Dessa perspectiva a guerra também é uma luta de classes”. Ou seja, a indústria cultural coloca a questão básica da dominação e não do valor artístico e humanista. A cultura dominante também está sujeita a todas as suas insuficiências.
Um dos desafios a serem enfrentados por um pesquisador da cultura reside, exatamente, em tentar compreender o significado histórico dessa palavra tão complexa, que abarca tantas camadas de sentido e tão diversos entendimentos. Como lembra Edward Said, “a cultura é o campo de batalha no qual as causas se expõem à luz do dia e lutam umas contra as outras”, não há respostas fáceis sobre o tema.
Os debates sociais capturados pela indústria cultural provêm de lugares nos quais seus sentidos vão além daquilo que a indústria encerra. Buscar estes outros caminhos pelos quais a cultura perpassa, atentando àquilo que mobiliza, identifica, faz as pessoas se reconhecerem e une as pessoas, é o desafio para a elaboração de outros sentidos comuns, que se voltem com contundência contra as estruturas de dominação.
Wilq Vicente é doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC) e mestre em Estudos Culturais (USP). É organizador do livro “Quebrada? Cinema, vídeo e lutas sociais” (2014).