A demonização da mulher é um projeto
O que há por trás da narrativa construída em torno da demonização do sexo feminino? Que medos e objetivos ela esconde? Confira um trecho do livro “Para revolucionar o amor: a crise do amor romântico e poder da amizade entre as mulheres”

Créditos: Martins Fontes
“É necessário entender de onde vem a violência, quais são suas raízes e quais são os processos sociais,
políticos e econômicos que a sustentam para entender que mudança social é necessária”.
Silvia Federici
Hipócrates, o pai da medicina, acreditava que “as mulheres são mais propensas a doenças do que os homens por causa de seus úteros errantes”. Aristóteles descreveu as mulheres como “uma deformidade natural” e “uma espécie de seres intermediários entre homens e animais”. São Tomás de Aquino, afirmou que as mulheres são “um erro da natureza”. Para Lutero, “se as mulheres ficarem fatigadas e morrerem, isso é o que foram feitas para fazer”. Já um radical São Jerônimo não titubeou em dizer que “a mulher é a raiz de todo o mal.” Confúcio pegou um pouco mais leve “as mulheres são como crianças, mas nunca tão boas”. Um ressentido Nietzsche anunciou que “uma mulher é o mais malvado dos males”. Charles Darwin escreveu que “As mulheres estão mais fortemente marcadas por algumas faculdades que são características das raças inferiores e de um estado passado e inferior de civilização”,
O que essas frases têm em comum, além da misoginia presente em cada uma delas? Que a definição da mulher no mundo ao longo da história patriarcal foi feita por homens. Mas, o que há por trás da narrativa construída em torno da demonização do sexo feminino? Que medos e objetivos ela esconde?
Mito, quem em grego significa “discurso” tem uma relação intrínseca com a psicanálise e o inconsciente. Lacan diz que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, e, sendo assim, ele é atravessado pela cultura em que está inserido. E o mito faz parte da construção no campo do simbólico de toda cultura e, portanto, de todo inconsciente. Os mitos são como a música, diz Gilbert Durand[1], possuem uma lógica alternativa à que conhecemos, um sentido e ritmo próprio, que se insere no inconsciente por meio da repetição, como um refrão:
O imaginário nas suas manifestações mais típicas (sonho, devaneio, rito, mito, narrativa de imaginação, etc.) é portanto alógico relativamente à lógica ocidental, desde Aristóteles até mesmo de Sócrates. Identidade não localizável, tempo não dissimétrico, redundância, metonímia ‘holográfica’, definem uma lógica ‘alternativa’ que, por exemplo, a do silogismo ou da descrição temporal, mas mais próxima, em certos aspectos, da da música. Esta última, como o mito ou o devaneio, repousa sobre as transposições simétricas, dos ‘temas’ desenvolvidos ou mesmo ‘variados’, um sentido que só se conquista pela redundância (refrão, sonata, fuga, leitmotiv, etc.) persuasiva de um tema. A música, mais que qualquer outra, procede por um assédio de imagens sonoras ‘obsessivas’ (DURAND, 1994).
Pela influência que exercem em nosso aparelho psíquico, os mitos vêm sendo historicamente retirados do seu lugar como significante que apreende o mundo à nossa volta para assumir a função de instrumento através do qual se pratica a violência simbólica que desumaniza, silencia e apaga povos e minorias, como é o caso das mulheres, suplantando os mitos originários destes grupos para colocar no lugar narrativas que mais convém aos dominantes e colonizadores.
Assim, foi a criação do Mito de Adão e Eva, sendo esta última a personagem histórica que personifica a demonização da mulher pela mitologia judaico-cristã, que associou o feminino a todos os males humanos quando a responsabilizou pela expulsão da humanidade do paraíso após Eva comer a tal maçã oferecida pela serpente. Ela é também a personificação da inferioridade feminina em relação aos homens, pois, segundo o mito, a mulher sequer existiria se não fosse como apêndice nascido da costela de Adão.
Antes de Eva, Lilith, a primeira esposa de Adão. Segundo a lenda, Lilith se recusou a se submeter a Adão e, por isso, foi expulsa do Éden. Ela sempre foi retratada como uma figura maligna, associada à tentação e destruição de tudo ao seu redor. Lilith é a representação de que uma mulher deve antes de tudo ser obediente ao homem.
Já na mitologia grega, temos o mito de Pandora, que descreve a criação da primeira mulher, Pandora, por ordem de Zeus, que reforça esta narrativa da mulher como portadora do mal. De acordo com o mito, Zeus cria Pandora e a presenteia com uma caixa fechada, instruindo-a a nunca a abrir. Acontece que, movida pela curiosidade, Pandora eventualmente abre a caixa, liberando assim uma série de males e desgraças no mundo, incluindo doenças, fome, dor e sofrimento. A ideia de que Pandora foi punida por sua curiosidade sugere mais uma vez que as mulheres não podem questionar a autoridade dos homens.
Ainda na mitologia grega, não podemos deixar de falar da lenda de Medusa, sacerdotisa do templo de Atena que atraiu a atenção de Poseidon, tio de Atena e Deus do mar, e ele então a estuprou no templo da deusa. Atena, enfurecida pela profanação de seu templo, transformou Medusa em uma criatura monstruosa, com serpentes em vez de cabelo e um olhar petrificante. Qualquer semelhança com as histórias cotidianas em que as vítimas são culpabilizadas pelas ações dos homens não parece ser mera coincidência, não é mesmo?
Rose Marie Muraro, ao comentar[2] o pensamento de Joseph Campbell, a respeito do lugar que as mulheres ocupavam nas sociedades antigas, lembra como os mitos passaram da figura feminina como central nas narrativas da criação do mundo (Grande-Mãe) para, com a dominação patriarcal, desaparecerem quase por completo das narrativas religiosas. A mulher então deixa de ser criadora para tornar-se, pelas mãos dos homens, a criatura.
[Joseph Campbell] (…), em seu livro The Masks of God: Occidental Mythology, divide em quatro grupos todos os mitos conhecidos da criação. E, surpreendentemente, esses grupos correspondem às etapas cronológicas da história humana. Na primeira etapa, o mundo é criado por uma deusa mãe sem auxílio de ninguém. Na segunda, ele é criado por um deus andrógino ou um casal criador. Na terceira, um deus macho ou toma o poder da deusa ou cria o mundo sobre o corpo da deusa primordial. Finalmente, na quarta etapa, um deus macho cria o mundo sozinho (MURARO, 1993).
“Um Deus macho cria o mundo sozinho”, até o caráter sagrado relativo ao poder de trazer vida ao mundo foi retirado das mulheres. No mito de Adão e Eva, a mulher foi criada da costela do homem. Na mitologia grega, Atenas, a deusa da sabedoria, nasceu da cabeça de Zeus. Como disse Rosie Marie Muraro em Martelo das Feiticeiras[3][4], “agora, parir é um ato que não está mais ligado ao sagrado, e é antes, uma vulnerabilidade do que uma força, a mulher se inferioriza pelo próprio fato de parir que outrora lhe assegurava grandeza”.
Mais adiante na história, temos a caça às bruxas, o período trevoso da história que ocorreu principalmente entre os séculos XV e XVIII, e é um radical exemplo de como as mulheres foram caçadas, torturadas e mortas por não se conformarem às imposições sociais de submissão e domesticidade, o que refletia e reforçava a dominação patriarcal da sociedade na qual o poder masculino era central e qualquer forma de desafiar esse poder deveria ser impedida. As mulheres que exerciam autonomia ou desafiavam as normas de gênero estabelecidas eram frequentemente vistas como uma ameaça ao status quo e eram alvo de atroz perseguição.
As acusações de bruxaria também estavam muito ligadas à sexualidade das mulheres. A caça às bruxas foi usada como uma forma de controlar e reprimir a sexualidade feminina, particularmente aquela que estava fora dos limites do casamento e da procriação. Mulheres solteiras ou viúvas que eram sexualmente ativas podiam ser acusadas de bruxaria como uma forma de puni-las e controlá-las.
No final do século XV, os inquisidores, Heinrich Kramer e James Sprenger lançaram “Malleus Maleficarum”, mais conhecido como “Martelo das Bruxas”, que funcionou como um guia sobre como detectar, condenar e torturar bruxas, tendo sido a segunda obra mais vendido na Europa, só perdendo para a bíblia, por dois séculos. O livro diz que as mulheres possuem uma tendência natural para a bruxaria e foi responsável pela perseguição de mais de 100 mil pessoas, a imensa maioria mulheres pobres.
Nesta época, “inveja”, que vem do latim “invidia” e significa “olho maligno”, era frequentemente associada a práticas de feitiçaria e bruxaria e passou a ser associada também à mulher, como uma característica feminina. A origem da expressão “mau-olhado” se deu porque os inquisidores acusavam as bruxas de produzir tragédias e até matar, apenas com o olhar.
Essa associação entre as mulheres e a inveja foi reforçada pelas acusações frequentes durante os julgamentos de bruxaria na Inquisição. Muitas vezes, as mulheres eram acusadas de usar magia para prejudicar outras mulheres ou seus filhos por inveja de sua beleza, fertilidade, sucesso ou felicidade.
Havia uma ideia difundida de que as mulheres eram particularmente suscetíveis à inveja e, portanto, mais propensas a se envolverem em práticas de bruxaria. Isso se devia, em parte, à visão misógina predominante na época, que retratava as mulheres como seres moralmente fracos, emocionalmente instáveis e propensos ao pecado. Além disso, as mulheres muitas vezes eram vistas como rivais umas das outras, competindo por recursos limitados e atenção masculina.
Mas, o fato é que a relação das mulheres com a natureza, a fertilidade e o poder da criação, despertavam o medo dos homens diante de algo que lhes parecia fora do controle mundano, que era a maneira com que elas se relacionavam com os mistérios da mãe-terra. A “caça às bruxas” representava então a batalha entre o masculino, que exerce o poder através da dominação, e, o feminino, representando a força cósmica e misteriosa da fertilidade e da criação, mas não foi bem isso que ficou registrado nos anais da história.
A demonização da mulher é um projeto que nasce com o patriarcado e segue acontecendo de diferentes maneiras ao longo de todos os anos que se sucedem, gerando consequências psíquicas nas mais diferentes gerações de mulheres que nascem a partir daí.
A culpa que carregamos apenas por existir faz parte de nós sem que tenhamos compreendido como veio parar aqui, uma culpa que não sabemos como nem porque, mas que nos ronda como um fantasma que não conhecemos, pois, por alguma razão, permitimos estar ali, pela sensação de que nos é familiar.
São séculos sendo retratadas da forma mais aviltante, carregando a culpa por dores e sofrimentos que não fomos nós quem criamos. Toda violência simbólica encontra o seu destino quando consegue fazer do sujeito o seu próprio algoz. Portanto, um dos nossos maiores desafios enquanto mulheres é nos livrarmos desta carga psíquica repleta de culpa que carregamos por conta de narrativas mitológicas que tentaram nos fazer prisioneiras de culpas estrategicamente inventadas para nós.
[1] DURAND, Gilbert. L’ imaginaire. Essai sur les sciences et la philosophie de l’image. Paris: Hatier, 1994.
[2] MURARO, Rose Marie. “Breve introdução histórica”. In: KRAMER, Heinrich & SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. Trad. Paulo Fróes. 10. ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993.
[3] KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. 29 ed. – Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
[4] KRAMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras. 29 ed. – Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
Ingrid Gerolimich é graduada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), mestre em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e também tem formação em Psicanálise pela Sociedade Psicanalítica Iraci Doyle. Em 2023, ela esteve à frente do “Brasil no Divã”, uma série de entrevistas no canal da Carta Capital no YouTube. Em 2020 lançou o curta-metragem “Revolução dos Afetos”, que fala sobre solidão na contemporaneidade. Dois anos depois, criou e dirigiu o documentário “Explante”, que acompanha sua própria trajetória na retirada das próteses de silicone e levanta o debate sobre a pressão estética na saúde física e mental das mulheres. A autora já contribuiu com artigos em veículos como UOL e revistas Cult, Marie Claire, Carta Capital e TPM. Em 2024, lança Ingrid Gerolimich “Para revolucionar o amor: a crise do amor romântico e poder da amizade entre as mulheres” (editora Claraboia, 139 pág.).