A derrocada de Bolsonaro
Em seu discurso, Bolsonaro fissura a Constituição e coloca em xeque o pacto constitucional firmado pelo constituinte originário em 1988
A crise na política brasileira desde o término das eleições de 2014 e que, posteriormente, culminou com o impeachment de Dilma Rousseff demonstram a crescente instabilidade do país nas relações institucionais. Com pouco mais de 30 anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, pela terceira vez, a nação brasileira pode vivenciar o terceiro pedido de afastamento e perda de mandato do atual presidente Jair Bolsonaro.
Desde sua candidatura à presidência da República até o presente momento, os ataques de Bolsonaro aos poderes e as instituições democráticas mostram-se presentes. O questionamento das regras democráticas no jogo constitucional, a negação da legitimidade dos oponentes políticos, o encorajamento à violência – institucional ou política – a intolerância frente a direitos civis e políticos de seus adversários e da mídia e a propensão na restrição de direitos fundamentais e sociais reverberam o seu despreparo na atuação no cargo de presidente da República.
Se antes mesmo do advento da pandemia da Covid-19 o comportamento ora mencionado mostrava-se em desacordo com o princípio democrático, com a recente crise sanitária, política e econômica – a qual assola o Brasil e o mundo – trouxe à tona de forma contundente a incapacidade de compatibilizar às recentes manifestações e medidas políticas tomadas com um dos atributos fundamentais da República que é a atuação proba e responsável passíveis de ensejar crime de responsabilidade nos termos do art. 85, da Constituição Federal que preconiza: “São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente contra: II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III – o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; IV – a segurança interna do País; V – a probidade na administração; VI – a lei orçamentária; VII – o cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Em linhas gerais, o impeachment trata-se de um procedimento de natureza político-jurídica pelo qual ao constatar-se violações à Constituição instaura-se um processo em que o Poder Legislativo e Executivo avaliam em um sistema de freios e contrapesos se as medidas políticas perpetradas estão em consonância com a Constituição, de forma a responsabilizar com a perda de mandato e inabilitação, por oito anos, o exercício de funções públicas. Tal procedimento conta o aceite da denúncia por parte do presidente da Câmara dos Deputados e, posteriormente, com o crivo de admissibilidade dos deputados federais inicialmente e, posteriormente, aos senadores no qual resultará na suspensão do presidente de suas funções após a instauração do processo pelo Senado pelo prazo de 180 dias e, se aprovado, a definitiva perda do mandato, respeitado o princípio constitucional do contraditório e ampla defesa.
Importante mencionar que o processo de impeachment é um instrumento que deve ser utilizado apenas quando não existem outros para solucionar questões políticas, uma vez que, em última instância, a perda de mandato resulta no afronte da vontade popular que elege o presidente da República mediante o voto popular, manifestação máxima do exercício democrático. Contudo, quando constato os atributos constitucionalmente previstos e a frequente violação dos mandamentos constitucionais, há a necessidade de os poderes manifestarem-se de forma a preservar sua harmonia e a independência de forma a preservar a estabilidade da Constituição e das instituições democráticas.
Em seu discurso, Bolsonaro fissura a Constituição e coloca em xeque o pacto constitucional firmado pelo constituinte originário em 1988. Recentemente, os olhos do povo brasileiro foram testemunhas de sua irresponsabilidade ao travar um conflito desnecessário com os governadores sobre qual a vertente política que deveria ser adotada para o combate da pandemia da covid-19 questionando as medidas de isolamento tomadas pelos estados e incitando aglomerações com manifestações de cunho exclusivamente político para criar desordem, desobediência e afrouxar medidas sanitárias recomendadas. Assim, agrediu diretamente um dos pilares da federação que é a autonomia dos entes federativos.
Outrossim, incitou contra o livre exercício do Poder Legislativo e do Poder Judiciário ao mencionar em manifestações públicas a necessidade de fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal ao questionar a legitimidade das medidas tomadas pelos Poderes e sugeriu a implementação de atos de exceção com a política de atos institucionais praticados no regime militar, no qual teve por principal fator a supressão de direitos e garantias fundamentais e o prevalecimento do Poder Executivo sobre os demais poderes. Em outras palavras, neste discurso há o vilipêndio do princípio da separação dos poderes que é cláusula pétrea na Constituição.
Nessa toada, também violou um valor constitucional que é a segurança interna do país com o pronunciamento de que se fosse necessário utilizaria o “seu exército” para instaurar a normalidade, infringindo, portanto, a Lei de Segurança Nacional ao tentar impedir com emprego de violência ou grave ameaça o exercício dos poderes, bem como incitou a subversão política e social em ato público de propaganda para a utilização de processos ilegais ou violentos para alterar a ordem pública e social. Somado ao comportamento de risco à segurança nacional, também incorreu em improbidade ao infringir a lei de crime de responsabilidade ao incitar militares à desobediência à Constituição e às leis.
Mostra-se presente a violação de direitos individuais e sociais como o direito à saúde, ao descumprir as medidas sanitárias indicadas pela Organização Mundial da Saúde, bem como por meio de pronunciamento oficial deturpou o conteúdo para que sua tese de isolamento vertical e de afrouxamento do isolamento prevalecessem sob o pretexto utilitarista de que a economia do país é mais importante do que as vidas. Foram realizados inúmeros pronunciamentos no sentido de que as pessoas deveriam voltar a normalidade com campanhas como “O Brasil não pode parar” ao dizer que o povo precisa trabalhar. Como se não bastasse, por meio da Medida Provisória 928/2020 mitigou uma garantia fundamental prevista no art. 5º, XXXIII e art. 37 da Constituição Federal que é direito a publicidade, transparência e direito à informação dos órgãos públicos.
Outro ponto que merece destaque fora a menção realizada em pronunciamento oficial em que Bolsonaro mencionou “Eu sou a Constituição”, o qual demonstrou sua incompreensão do conceito de República e da democracia. Em outras palavras, o Poder emana do povo e não de apenas um indivíduo, a personalização dos poderes representa uma grave infração à moralidade administrativa e à Constituição.
Com o que foi dito, percebe-se que o comportamento do presidente da República é incompatível com os ditames constitucionais, sendo possível o enquadramento do crime de responsabilidade e a eventual perda de mandato como instrumento a preservar a Constituição e as instituições democráticas de um político que a todo momento tenta emplacar em sua imagem a criação de um iconoclasta, quando, na verdade demonstra a incipiência de um ególatra embriagado pelo poder e desafeto pela democracia. O “mito” precisa sair da caverna.
Bruno Talpai é advogado, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, Mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo – USP, Mestrando em Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP e Pós-Graduando em Ciência Política pela Fundação Escola de Sociologia de São Paulo – FESPSP.