A derrota da socialdemocracia?
As contradições são parte essencial de todo e qualquer projeto, mas é objetiva a reunião de forças em torno de um projeto ultraliberal e disposto a enterrar todo e qualquer rastro, não de “comunismo”, e sim de socialdemocracia. Confira o segundo artigo do Observatório da Economia Contemporânea
Após anunciar o fim do Ministério do Trabalho, via incorporação em outra pasta, Bolsonaro incorre em novo recuo mantendo a referida pasta ministerial. Mas não nos enganemos, com ao menos um esvaziamento da pasta. Porém, uma das características fundamentais de Bolsonaro, e dos que o cercam, está na nitidez de princípios, meio e estratégia. E não somente. Soma-se a esse atributos alguns outros, sendo o principal o claro senso e ímpeto de poder político a ser exercido.
As contradições são parte essencial de todo e qualquer projeto, mas é objetiva a reunião de forças em torno de um projeto ultraliberal e disposto a enterrar todo e qualquer rastro, não de “comunismo”, e sim de socialdemocracia. O meio para isso? A “despolitização”, ou nas palavras de Karl Polanyi, a desregulamentação das três mercadorias fictícias: o trabalho, a terra e o dinheiro. Assim criando as condições institucionais que tornariam a financeirização completa da economia brasileira um caminho de difícil volta.
O caminho intelectual para essa abordagem sobre o “micro-Estado” remonta há mais de trezentos anos com John Locke em seu Segundo Tratado do Governo (1688), onde a naturalização da desigualdade, a legitimação da propriedade privada e o consequente surgimento do mercado de trabalho servem de base à despolitização de uma invenção recente à época: o dinheiro. Daí a noção religiosa tanto da “neutralidade da moeda” quanto a deturpação a que foi submetida a Teoria Quantitativa da Moeda criada por Willian Petty, com o objetivo funcional de auxiliar os mecanismos relacionados ao processo de racionalização das contas nacionais.
Em ambos os casos, desde Locke, o esforço era o de colocar o Estado em seu devido lugar: separado do mercado e legitimador da propriedade privada e do indivíduo tendo a economia, em seus estertores, como algo próximo de um “sistema fechado de ações” – um organismo baseado em leis ou lógicas próprias de funcionamento independente do Estado, de um modo geral, e especificamente do monarca (inglês). Evidente que essa tipologia de desenvolvimento econômico, social e humano não somente dispensa, como demanda expulsão do Estado em nome do bom “funcionamento dos mercados”. Hoje se lê esse mesmo conteúdo sob forma de “reformas microeconômicas”, “criação de ambiente de negócios”, “respeito e garantia ao cumprimento de contratos” etc. Em teoria econômica seria o mesmo que negar a validade do valor trabalho em nome da ampla ação sem freios da lei do valor.
Na vida real, significa a liberdade irrestrita à superexploração do trabalho, a garantia a “técnicos acima do bem e do mal” à liberalização financeira no plano doméstico e internacional, a garantia de “câmbio flutuante”, contas de capital abertas e juros acima dos praticados em nível internacional tornando a especulação com títulos, moeda estrangeira e a terra (que além do desmatamento gerado pela especulação fundiária desenfreada, poderá deixar de ser protegida por instituições reguladoras de seu uso, como o Ibama) negócios legalizados e sem nenhuma influência da “política”. O mesmo raciocínio, e mais perverso raciocínio (o núcleo da derrota da socialdemocracia), vale à mercantilização dos direitos sociais anexos à previdência social, a educação e saúde públicas: todas, na visão “deles” mal geridas por “políticos geneticamente corruptos”. O mercado como o “campo da virtude” (e do mérito) por excelência saberá lidar melhor com as demandas sociais, represadas ou não.
É sob esse guarda-chuva intelectual e ideológico que se inspiram os “economistas de Bolsonaro” chefiados por Paulo Guedes, cujo sinal mais recente (indicação do ótimo contador Joaquim Levy à presidência do BNDES) indica justamente no sentido da “despolitização” de qualquer coisa que ouse se aproximar e ameaçar a “neutralidade da moeda”. (inclui-se nesse pacote, também, a “despolitização” das relações exteriores).
Na verdade, intenta-se no Brasil a aplicação de utopias que insistem em sobreviver (inclusive a despeito de grandes crises como a de 2008), independente de o capitalismo ter se tornado monopolista e de Estado em todos os países que alcançaram o topo da escada e onde o legado da “socialdemocracia” é pilar fundamental não somente de Estados nacionais estáveis, mas principalmente de sociedades educadas, cultas e hígidas. Sempre bom nos remeter aos conselhos de grandes mestres como Albert Hirschman para quem deveríamos desconfiar de “verdades” que sobrevivem, apesar, e por séculos a fio.
Trata-se de ideias que atualmente no mundo estão se transformando em um entulho. O exemplo chinês é sugestivo com o país crescendo há quase quarenta anos de forma ininterrupta sem seguir nenhum dogma utilitarista gerado por John Locke ou David Hume. Ao contrário, por lá é total e completa a “politização” da taxa de câmbio e juros. O comércio exterior é um bem público, planificado e de Estado e o “mercado” é dominado por 149 conglomerados empresariais estatais e dezenas de bancos nacionais, provinciais e municipais de desenvolvimento.
Já o ultraliberalismo existe no mundo como exceção, não regra: na Argentina está levando o país a um buraco sem fundo. Honduras e Paraguai são territórios de “livre-comércio” para tudo, inclusive drogas. E agora no Brasil onde neoliberais fanáticos estão prestes a tomar de assalto o Estado com todos os riscos anexos que uma aventura desse tipo pode incorrer em um país de 210 milhões de habitantes e com seu tecido social com óbvios sinais de rompimento.
Infelizmente, aqui está a se construir não uma China do século XXI, conforme disse um empresário ligado ao Paulo Guedes. Acho mais fácil replicar aqui a China pós-Guerras do Ópio (1839-1842). Um país dominado não por narcotraficantes de ópio, mas por traficantes de moeda. Um Estado autoritário no campo político e mínimo no campo econômico, e uma questão social com tendência ao amplo agravamento.
*Elias Jabbour é professor adjunto da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCE-Uerj) e de seu Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE-FCE-Uerj).
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O Observatório da Economia Contemporânea tem como foco a discussão da economia nas suas várias dimensões; estrutural e conjuntural, empírica e teórica, internacional e doméstica. Sua ênfase, porém, será na política econômica, com acompanhamento aprofundado da conjuntura internacional e da economia brasileira no governo Bolsonaro. Fazem parte do Observatório, economistas e cientistas sociais, professores e pesquisadores de diversas instituições, listados a seguir: André Calixtre, André Biancarelli, Antonio Correa de Lacerda, Bruno De Conti, Carolina Baltar, Claudio Amitrano, Claudio Puty, Clemente Ganz Lúcio, Cristina Penido, Daniela Prates, David Kupfer, Denis Maracci Gimenez, Elias Jabbour, Ernani Torres, Esther Bermeguy, Esther Dweck, Fernando Sarti, Giorgio Romano, Guilherme Magacho, Guilherme Mello, João Romero, Jorge Abrahão, José Celso Cardoso, José Dari Krein, Luiz Fernando de Paula, Marcelo Miterhof, Marta Castilho, Maryse Farhi, Pedro Barros, Ricardo Carneiro e William Nozaki.