A desconstrução do planejamento na política neoliberal
O planejamento pressupõe atividades de pesquisa e diagnóstico, atividades de planejamento propriamente dito, como o estabelecimento de prioridades, estimativa e destinação dos recursos financeiros necessários. Por fim, atividades de acompanhamento da execução de programas e projetos, seguidas de avaliações.
Podemos conceituar o planejamento como uma atividade técnica (e política) institucionalizada, que a partir de dados históricos, estatísticos e teorias sócio-econômicas intenta interferir na realidade com o intuito de atingir objetivos e metas estabelecidas quantitativa e qualitativamente.
Operacionalmente o planejamento, de maneira cíclica retroalimentando-se, pressupõe além de atividades de pesquisa e diagnóstico, atividades de planejamento propriamente dito, como o estabelecimento de prioridades e exame de coerência entre as mesmas. Além disso, estimativa e destinação dos recursos financeiros necessários e, por fim, atividades de acompanhamento da execução de programas e projetos, seguidas de avaliações. Esses pressupostos devem ser vistos cum grano salis, isto é, relativizados.
Nesse sentido, Ghislaine Duqué indica que “assimila-se um conjunto de valores em torno de palavras-chave tais como: racional, eficaz, técnico, tecnológico; ou ainda dominar a natureza, demonstrar, organizar, planejar, controlar. Essas palavras parecem ser perfeitamente neutras mas nunca são inseridas no contexto social: eficazes para quem? Planejar em função de quais interesses? (…) Os técnicos são os principais objetos de tal ideologização e tornam-se os melhores instrumentos da mesma.”
Estamos diante do que chamo de ideologia do “iluminismo tecnocrático”, que é simultaneamente a expressão ingênua de uma visão de mundo e o exercício objetivamente mistificador de uma política. Esse tipo de “iluminismo” pode ocorrer tanto num espectro político mudancista, como conservador.
União Soviética
Se a instituição do planejamento econômico era uma estratégia já adotada pela antiga União Soviética, nos países centrais do Ocidente só veio a ser utilizado como instrumento de política socioeconômica depois da crise dos anos 30 (New Deal rooseveltiano nos Estados Unidos). E na Europa depois da segunda guerra, espalhando-se o exemplo, como teoria e prática, para a América Latina através da Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), agência das Nações Unidas.
Essa dupla vertente levou a se distinguir o que se chamava de planejamento impositivo (modelo soviético) do planejamento indicativo (ocidental). Este planejamento indicativo se insere teoricamente na corrente keynesiana ou estruturalista em oposição à corrente monetarista de corte liberal, esta última restringindo a atividade de planejamento à administração orçamentária.
No Brasil a instituição do planejamento em grande escala se inaugura com a experiência da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) liderada pelo economista Celso Furtado e fundada no final dos anos 1950 pelo então presidente da República Juscelino Kubtschek, cujo mandato (1956-60) já tinha por marca um Plano de Metas.
A Sudene foi criada no contexto de um movimento social mobilizando várias classes e categorias sociais como operários, o clero católico, estudantes, intelectuais, empresários etc. Francisco de Oliveira assinala que “este movimento popular, talvez pela primeira vez na história nacional, vai reivindicar em praça pública a aprovação do Primeiro Plano Diretor da Sudene.”

Planejamento regional
A partir do modelo da Sudene são criadas outras agências de planejamento regional, modelo que implicava numa descentralização da administração federal. O fundador da Sudene dirigiu a mesma através de três governos sucessivos e de diferentes conotações políticas (JK, Jânio Quadros e João Goulart). Furtado foi também o primeiro ministro do Planejamento (durante o governo Goulart) quando apresentou um Plano Trienal.
Se o planejamento no sentido estrutural propunha-se, via descentralização regional, intervir nos diversos setores da economia e da administração pública, sob a ótica monetarista que busca legitimar o neoliberalismo. O planejamento é esvaziado de conteúdo, renuncia a intervir nos problemas reais da sociedade e da economia (educação, saúde, saneamento, habitação, transporte, infraestrutura), limitando-se à administração contábil das receitas e despesas com um viés de corte destas últimas, pois são sempre encaradas como custo e não investimento, caso clássico da educação.
Legitimando a “desidratação” do planejamento atuam simultaneamente uma ciência econômica teorizando a racionalidade liberalizante, reificada das relações humanas e uma mídia empresarial insistindo na necessidade de sacrifícios e de cortes nos gastos sociais. Na difusão deste “pensamento único” que recusa alternativas lança-se mão inclusive de argumentos aparentemente imbatíveis como o de comparar a economia doméstica com a economia pública como se naquela se pudesse coletar impostos, lançar títulos ou imprimir dinheiro.
Esvaziamento do planejamento
Segundo Belluzzo e Galípoli, a fé no mercado financeiro se converteu em senso comum engendrando um poder político de veto sobre políticas públicas. Para esses autores, “a conversa mole de transparência e austeridade encobriu o movimento real das coisas: sob o véu da racionalidade econômica esgueirava-se a mão que iria pilhar a poupança ou a aposentadoria dos desavisados.”
As políticas neoliberais de restrição de gastos públicos, sempre ignorando o pagamento de juros, resultam inevitavelmente no esvaziamento do planejamento, forma sem conteúdo, um planejamento de letra morta que nada planeja de fato a não ser a omissão e a destruição. A economista da USP Laura de Carvalho assinala que “o pagamento de juros escorchantes sobre a dívida pública não é sequer discutido, mas as despesas com os sistemas de saúde e educação são tratadas como responsáveis pela falta de margem de manobra para a política fiscal.”
Austeridade
Há, pois, uma correlação entre políticas neoliberais e desconstrução do planejamento, uma política de classe enobrecida por um discurso de teoria econômica que, ao se pretender irrecusável, equivale a uma dogmática.
Para o economista grego Yanis Varoufakis “a famigerada austeridade econômica tornou-se palatável pelo eufemismo do “ajuste fiscal”, e foi apontada como a única saída para o colapso segundo a cartilha liberal, sendo exportada para o mundo quando os países se viram diante do tsunami causado pela crise [de 2008].
Apesar das diferenças econômicas entre os países o lema continuava sendo o mesmo: todos perdem, mas os bancos continuam ganhando. No caso brasileiro os arautos do “ajuste fiscal” (políticos ou jornalistas) sempre lamentam uma hipotética “desidratação” da reforma da previdência, enquanto por outro lado a “desidratação” do planejamento continua, e sem ressonância midiática, em decorrência de reformas apenas inspiradas por ajuste fiscal, esquecidas a sociedade e a economia reais.
Gilvando Rios é sociólogo e professor aposentado da UFPB
Referências
BELLUZZO, Luiz Gonzaga e GALÍPOLO, Gabriel. Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo. São Paulo. Editora Contracorrente, 2017.
CARVALHO, Laura. Valsa brasileira: do boom ao caos econômico. São Paulo. Todavia, 2018.
DUQUÉ, Ghislaine. Casa Nova: interventions du pouvoir et stratégies paysannes. Tese (Doutorado em Sociologia). École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, 1980.
OLIVEIRA, Francisco de. Elegia para uma re(li)gião: SUDENE, Nordeste, planejamento e conflitos de classes. Rio de Janeiro. Editora Paz e Terra. 1978.
VAROUFAKIS, Yanis. O minotauro global: a verdadeira origem da crise financeira e o futuro da economia global. Belo Horizonte. Autonomia Literária. 2016.