A diluição do poder de expor à morte
No cenário pré-pandêmico, tinha-se a necropolítica, que geria parcela considerável das mortes de negros e pobres através de políticas de segurança pública “de guerra”, constituindo, assim, uma população mais matável. A pandemia trouxe à tona novas formas de tecnologias de gestão da morte descentralizando o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer, exsurgindo-se, ao que parece, uma expansão do poder de expor à morte.
Nós choramos a morte de João Pedro. O menino, morador de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, foi morto durante uma operação da Polícia Federal, com apoio das polícias Civil e Militar. Morreu enquanto brincava. João Pedro, junto com os seus primos, jogavam sinuca em casa.
Segundo as testemunhas, a família tentou socorrer João Pedro, mas foram impedidos pelos policiais, que logo levaram o menino de helicóptero até uma base do Corpo de Bombeiros localizada a 18 km do local dos disparos, sem, contudo, informar aos familiares sobre o paradeiro do jovem. A família iniciou uma campanha nas redes sociais em busca de João Pedro, que fora encontrado 18 horas depois, já sem vida, no Instituto Médico Legal.
Embora chocante, a morte de João Pedro não se projeta enquanto única. Dados do Atlas da Violência informam que as cidades brasileiras registraram, em 2017, cerca de 65,6 mil homicídios. Foram 179 mortes letais intencionais por dia, número que garantiu ao período de 2017 o recorde de ano mais violento desde que se iniciou a série histórica, em 1979.
Embora estarrecedor por si só, o número de mortes se torna ainda mais preocupante quando clivado. Isto porque, ao observar os aspectos raciais, de gênero e de geração, o levantamento demonstrou que das 65,6 mil pessoas mortas intencionalmente, 49,5 mil eram negras, majoritariamente jovens e do sexo masculino. Isto significa que 75,5% dos homicídios cometidos naquele ano foram contra pessoas pretas ou pardas.
Estes índices de violência letal intencional coadunam forças às acusações de diversos segmentos, especialmente aqueles ligados aos movimentos sociais, de que experienciamos no Brasil um genocídio da juventude negra. Entretanto, as acusações de genocídio imputadas aos agentes de Estado que produzem ou deixam de produzir políticas públicas parecem ter-se renovado e adquirido variantes de modus operandi frente à pandemia de Covid-19.
Covid-19 e a continuidade do extermínio
Isso porque, se antes, no cenário pré-pandêmico, tinha-se que a necropolítica1 geria parcela considerável das mortes de negros e pobres através de políticas de segurança pública “de guerra”, com táticas, armamento e brutalidade típicos de um conflito bélico, constituindo, assim, uma população mais matável, a pandemia trouxe à tona novas formas de tecnologias de gestão da morte, descentralizando o poder de decidir quem pode viver e quem deve morrer, exsurgindo-se, ao que parece, uma expansão do poder de expor à morte.
Esta diluição no poder de matar e expor à morte começa a se esboçar nos dados preliminares da primeira leva de infectados e mortos pelo coronavírus no Brasil, já que, segundo informações subnotificadas do Ministério da Saúde divulgadas em abril, pretos e pardos representam 23,1% dos hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave, mas somam 32,8% dos mortos pelo novo coronavírus.
Os números são diametralmente opostos no que diz respeito às pessoas brancas, já que estes correspondem a 73,9% entre aqueles hospitalizados e 64,5% entre os mortos por Covid-19. Dessa maneira, segmentos sociais têm denunciado o governo Bolsonaro pelo seu desdém narcisista em relação às políticas de enfrentamento aos impactos do vírus nas favelas e periferias. Desdém narcisista este que, ao tempo que faz com que Jair Bolsonaro pregue contra o isolamento social e impacte diretamente no número de contaminações e mortes, confere-lhe a fantasia de imunidade ao vírus.
Vê-se, aqui, que o racismo surge enquanto uma linha fronteiriça entre as mortes justificadas pela “metáfora da guerra” e aquelas fruto da ausência deliberada de ações de confronto ao coronavírus. Nesse contexto, encontramo-nos implicados em um dilema acerca das similitudes argumentativas que levam ao acionamento, em ambas as ocasiões e mesmo em diferentes contextos, do argumento de genocídio da população negra. Serão o racismo e a ausência de políticas públicas efetivas as únicas chaves explicativas para o morticínio de negros no Brasil antes e durante a pandemia de coronavírus?
Os signos da “favela” e do “favelado”
Os esforços para produção de possíveis respostas a esta indagação passam, inexoravelmente, pelo contexto de formação das favelas e periferias no Brasil. Estes ambientes, como se vê, encontram-se no cerne da discussão em razão dos riscos que permeiam o território nestas situações.
Márcia Leite 2 nota, ao analisar o processo de formação das favelas no Rio de Janeiro, que antes de práticas de Estado consideradas arbitrárias e violadoras de direitos se tornarem modus operandi naqueles locais, houve uma caracterização destes espaços enquanto lócus da violência, espaços distintos da cidade em que estavam inseridas e radicalmente à margem da sociedade, criando, enfim, uma cisão social e fazendo da “favela” e do “favelado” categorias que carregariam em si as mazelas sociais mais perturbadoras para a classe média, como a prostituição, a vagabundagem, a pobreza e as práticas criminosas.
Embora tenha sofrido algumas mudanças, essa visão racializada denunciada por Márcia Leite tem impactado diretamente no modo como os moradores das favelas e das periferias acessam políticas públicas, já que, tal como Leite, não acredito que ações de Estado estejam ausentes nestes locais, “mas sua presença caracteriza-se pela prestação de serviços de baixa qualidade, clientelismo e ineficiência das instituições estatais, brutalidade policial e desrespeito aos direitos civis de seus habitantes que não têm reconhecido e garantido seu estatuto de cidadania”3.
Precariedade de vidas desnecessárias ao neoliberalismo
Este descaso proposital engendra diversos processos passíveis de análise, mas um, especificamente, interessa-nos: a precariedade. Os signos de “favela” – que passou a assumir uma forma de semiótica genérica para caracterização de locais simbolizados no imaginário social enquanto “violentos” ou expostos à pobreza – e “favelado” exsurgem enquanto marcadores necessários à desqualificação dessas vidas enquanto vidas precárias.
Embora, na literalidade, a “precariedade’ possa ser compreendida enquanto algo sem valor, em más condições, para Judith Butler o conceito é contrário. A vida precária constitui-se enquanto aquela que se perde ou que pode ser perdível, já que estas vidas só podem ser assim compreendidas se forem tomada enquanto vidas que podem ser percebidas e, assim, dignas de luto. No fim, a afirmação de que os moradores das favelas e periferias são “marginais” ou “foco da pobreza” significa que aquelas pessoas não são percebidas e não atendem às condições sociais e econômicas necessárias ao seu reconhecimento enquanto uma vida.4
Essa dependência de condições sociais e políticas faz com que negros e pobres, moradores das favelas e periferias, estejam submetidos aos argumentos de “saúde da economia” ou das “mortes de CNPJ”, por exemplo. É preciso, assim, compreender que o manejo do pretexto econômico não visa, aqui, a manutenção de empregos ou a valorização da mão de obra, mas a exposição de segmentos sociais precarizados à morte na busca pelo lucro, de maneira que seja nas mortes marcadas pelas dinâmicas de “quase guerra” ou aquelas causadas pelo Covid-19, estas vidas são desnecessárias na lógica do necropoder.
Aliás, a ausência de condições sociais, exponenciada pelo descaso racista de agentes de Estado, é uma das principais razões pelas quais negros e negras são obrigados a deixar suas casas em meio à pandemia. Ora, não sendo estas pessoas passíveis de luto, podem ser facilmente descartadas. Tanto que, segundo o Observatório Covid-19 e a Prefeitura de São Paulo, pretos têm 62% mais chance de morrer que brancos na cidade de São Paulo.
Note-se que essa constituição do negro e do pobre enquanto descartáveis ou desnecessários passa, necessariamente, pela raça. Isto porque a visão constitutiva dos pretos e pobres enquanto “o outro” permite o afastamento destas pessoas do acesso às políticas de saúde, educação e alimentação, por exemplo, relegando-os às ações violadoras dos direitos humanos. Constituir uma parcela da população enquanto mais matável, seja pelas ações violentas, seja por um vírus dito “democrático”, é manejar a raça para a aplicação das tecnologias de morte.
Percebe-se, claro, que o acesso defeituoso às políticas públicas, associado ao racismo, importa em parte significativa da resposta às questões aqui levantadas, mas não é suficientes. Digo isso porque as pessoas vulnerabilizadas por relações desiguais de raça também são cruzadas pela classe, pelo gênero, pelo território e pela geração. Estas pessoas não se constituem negras antes ou depois de se fazerem trabalhadoras ou “pobres”.
No Brasil, como em diversos outros contextos, raça, pobreza, gênero, sexualidade, criminalização do território e geração não consistem em domínios apartados da vida social. Pelo contrário, como notou Angela Davis, “raça é a maneira como a classe é vivida”. Mas isto de tal maneira que a própria ideia de que existe um grupo populacional que pode morrer, como uma baixa inexorável da guerra ou da doença, é racializada. A disposição dos pobres à morte resulta da construção desse “outro” – o pobre, o favelado etc. – como menos humano, formando aquilo que Roberto Efrem Filho5 chamou de reciprocidades constitutivas que oportunizam o mata-mata.
A visão do “outro” como menos humano, aliás, é a constante que tem justificado mudanças significativas na compreensão da necropolítica, já que, se antes o poder e a capacidade de decidir quem pode viver e quem deve morrer se concentravam em certas figuras políticas, capazes de executar ou dar ordens de execução, a pandemia inaugura um novo modo de diluição deste poder, afinal de contas, as pessoas podem carregar em seu próprio corpo um vírus capaz de atingir especificamente certas parcelas sociais.
Esta expansão do poder de expor à morte é destinada aos negros e pobres porque, neste caso, doenças pré-existentes aumentam significativamente o risco de morte, de maneira que se considerarmos as dificuldades no acesso às políticas de melhoria de vida experienciadas por negros e pobres, facilmente podemos aferir quem está mais propenso à doença. Além disso, segundo a ONU, negros representam cerca de 80% dos usuários do Sistema Único de Saúde. O SUS, como se sabe, tem sofrido consideráveis cortes de verbas, sendo que a precarização do sistema de saúde ao qual negros e pobres estão recorrendo se mostra enquanto uma das diversas táticas de morticínio.
Não à toa, a imprensa noticia recorrentemente as manifestações bolsonaristas em diversas cidades do Brasil, de modo que o próprio Bolsonaro e a sua malta participam dos protestos antidemocráticos que pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal e do Congresso Nacional. Estas pessoas, notavelmente brancas e com privilégios de classe que as permitem o acesso a planos de saúde, que vão às manifestações e fazem “acampamento” regado a churrasco e armas de fogo, sabem, em um nível ou em outro, do risco a que expõem pessoas mais vulneráveis, mas, tal qual o presidente, debocham.
O argumento de que a economia irá se “destroçar” revela que, embora o racismo seja uma fronteira entre as mortes causadas pelo descaso em relação ao coronavírus e aquelas cometidas pelo acionamento do arquétipo da guerra, ambas as situações confluem para a constituição de uma população mais matável ou mais morrível, desnecessárias às dinâmicas do capital, demonstrando, afinal de contas, que a “preocupação” com a saúde da economia significa, na verdade, a necessidade de expor os trabalhadores à morte em favor do lucro.
O assassinato de João Pedro, afinal de contas, mostra-nos, inequivocamente, que a constituição de uma população frequentemente cruzada pelas políticas de gestão da morte passa pela raça, pela criminalização do território, pela geração, pelo gênero e etc, evidenciando, então, o contínuo extermínio da população negra, seja antes ou durante a pandemia. No fim, pode-se perceber que os corpos que outrora foram compreendidos enquanto mais matáveis nas incursões violentas de agentes de Estado nos lugares à margem da cidade são, agora, os mesmos que são mais morríveis graças às omissões – e por vezes ações – destes mesmos agentes e da sua horda. Os corpos mais matáveis e mais morríveis que se inscrevem nestas dinâmicas de poder, portanto, são os dos negros, dos pobres, dos trabalhadores, dos, não à toa, doentes.
*Agradeço imensamente a Roberto Efrem Filho pela revisão e pelos importantes debates que possibilitaram a escrita deste texto.
José Clayton Murilo Cavalcanti Gomes é graduando em Direito pelo Departamento de Ciências Jurídicas (DCJ-Santa Rita) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB); pesquisador junto ao projeto de pesquisa “”Mal Secreto”: decisões do STF e políticas de gênero e sexualidade”.
1 MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018. 80 p.
2 LEITE, Márcia. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança v.6, n.2, 374-389, 2012.
3 Idem
4 BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Trad. Sérgio Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
5 EFREM FILHO, Roberto. Mata-mata: reciprocidades constitutivas entre classe, gênero, sexualidade e território. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, 2017.