A dívida pública: de vilã a aliada do Estado
O endividamento público é o mal da nossa economia ao consumir em torno de 45% do orçamento e obrigar o Estado a “apertar” os gastos em outras áreas para fazer frente aos compromissos financeiros?
O debate sobre a dívida pública há tempos tem sido alvo de discussões acaloradas. Consagrado no popular “gráfico pizza” da autoria cidadã da dívida, o questionamento em torno do uso da emissão de título como parte considerável do financiamento do Estado tomou espaço nas discussões sobre política econômica.
Nosso objetivo aqui é, aproveitando o ensejo da necessidade de se pensar formas de financiar medidas que tragam respostas às demandas deflagradas pelo avanço do coronavírus, problematizar a afirmação corriqueira e, às vezes, superficial de que o endividamento público é o mal da nossa economia e que consome em torno de 45% do orçamento disponível do Estado, o qual teria que “apertar” os gastos em outras áreas para fazer frente aos compromissos financeiros.
No Brasil, com certa razão, a forma como a dívida foi conduzida, historicamente, abre um precedente para diversos questionamentos. Contudo, isso não significa dizer que o mecanismo de emissão de títulos públicos para financiamento do Estado seja, de partida, condenável, como fazem alguns de forma ingênua.
Em primeiro lugar, para tecer opiniões sobre o uso – ou não – da dívida pública, faz-se necessário compreender o mecanismo que envolve o uso desta, a saber: a composição do orçamento público.
O orçamento da união é composto por duas unidades contábeis: a receita e a despesa. O lado da receita compreende, basicamente, o recolhimento de impostos, tributos, taxas e outras fontes de recursos como as receitas (dividendos) das empresas estatais. O lado das despesas é composto por todos os gastos do governo necessários para o funcionamento do país, dentro de um período determinado de tempo.
Caso as receitas arrecadas sejam maiores que as despesas, temos o que chamamos de superávit. No entanto, caso contrário, despesas superiores às receitas, incorremos em um déficit fiscal.
O Brasil tem uma economia fortemente fragilizada e vulnerável às oscilações externas. Em momento de crescimento e dinamismo econômico, como o que vivemos na década de 2000, amparado pelo boom das comodities e a realização de investimentos públicos e de políticas sociais de distribuição de renda, obtivemos resultados positivos em nosso orçamento. Sobretudo alavancado pelo aumento do consumo das famílias, onde repousa majoritariamente o recolhimento de impostos hoje no Brasil, e pelo aumento das nossas exportações.
Por outro lado, em períodos de recessão, nossas receitas rapidamente são minadas, incorrendo em contínuos déficits. Ao contrário do que pregam os liberais, a saída não passa pelo ajuste fiscal austero, mas sim pela aplicação de um conjunto de políticas que mantenha o nível da demanda aquecida, em meio à diminuição do emprego e da renda geral dos agentes. Para isso, perante a queda da arrecadação, é preciso ter alternativas de financiamento que possibilitem a efetivação de políticas econômicas anticíclicas.
Assim, caso tivéssemos obrigatoriamente que manter o equilíbrio fiscal, ou seja, gastar somente aquilo que arrecadamos, em períodos de bonança teríamos mais dinheiro para as universidades, pagaríamos a integralidade do salário dos servidores públicos e assim por diante. No entanto, caso a arrecadação desacelere, por motivos exógenos ou mesmo endógenos – como vem ocorrendo desde 2013 –, o Estado teria que cortar as verbas das universidades e pagar metade dos salários dos servidores.
Para que isso não ocorra, ou seja, para que a gente possa continuar pagando salários, benefícios sociais e mantendo as instituições públicas tais como as universidades, o governo – quando arrecada menos do que gasta – pode utilizar do mecanismo da dívida pública, para cumprir com as necessidades orçamentárias.
Notem, a dívida pública, por essência, se conforma como uma importante ferramenta para a manutenção de políticas de Estado. Ou seja, o endividamento público é a forma de garantir a atuação do Estado mesmo em momentos em que se deprime a arrecadação. Por outro lado, quem – frequentemente – faz coro contra o endividamento público são, justamente, os conhecidos liberais brasileiros, tais como o senador José Serra, autor de um projeto de lei para colocar teto ao endividamento público em consonância com o argumento de que o Estado é como uma dona de casa, que não pode gastar mais do que arrecada.
Um primeiro elemento que envolve essa discussão é que uma parte das receitas é “consumida” pelos serviços da dívida contraída pelo Estado anteriormente – o pagamento de juros e amortizações. Entretanto, esse pagamento acaba não saindo das receitas do orçamento do período no ano corrente, mas sim da emissão de novas dívidas. Ou seja, os compromissos com a dívida acabam, em grande parte, sendo pagos com emissão de novos títulos. Chamamos isso de mecanismo de rolagem ou refinanciamento da dívida pública.
Dessa forma, o pagamento dos juros não concorre com o gasto com saúde e educação por exemplo, porque você não está tirando recursos do orçamento, você está refinanciando grande parte com a venda de novos títulos da dívida pública.
Ademais, há outros mecanismos próprios de financiamento vinculados ao pagamento da dívida, como o resultado das operações do Banco Central e o resultado do rendimento da dívida dos estados e municípios com a União.
Para exemplificar esse debate, de acordo com dados do Tesouro Nacional, em 2019, o que de fato foi empenhando do orçamento para pagamento de juros da dívida foi aproximadamente R$ 285 bilhões, e destes a principal fonte de pagamentos foi a emissão de novos títulos, cerca de R$ 250 bilhões. Ou seja, parcela que não sai efetivamente dos recursos orçamentários oriundos dos impostos. Em outras palavras, a dívida pública, em alguma medida, se autofinancia.

Isso não quer dizer que não se possa fazer uma avaliação crítica acerca do uso desse mecanismo. Historicamente no Brasil, é a política monetária que organiza a emissão dos títulos, sobretudo as taxas de juros, consideradas elevadíssimas e, perfeitamente, passíveis de questionamentos. Por exemplo, a taxa básica de juros (Selic) variou, em média, de 10% a 20% durante os anos 2000. Isso transforma o mecanismo da dívida num proveitoso balcão de oportunidade para o setor financeiro. Ou seja, para os setores e instituições que enriquecem com a compra de títulos, pelo seu alto grau de valorização.
Nesse sentido, a discussão deve se voltar para a política monetária, que dita as condições as quais esses títulos serão ofertados no mercado, defendendo que seja menos oneroso possível ao Estado.
Em termos de espaço fiscal para se efetivar políticas públicas e investimentos, o mecanismo da dívida se configura como um aliado e salvaguarda o orçamento em situação de déficit.
Contudo, a longo prazo, é mais que necessário olhar para as diversas dimensões que influenciam nossos termos arrecadatórios, como a efetivação de um sistema tributário que incida de forma mais progressiva e igualitária sobre as rendas mas, sobretudo, identificar que o crescimento econômico é a variável fundamental no que diz respeito às finanças “sadias”. Só através de maior dinamismo econômico, efetivado por um Estado que direcione os gastos em áreas essenciais e com forte efeito multiplicador, é que será possível ir criando condições para amortizar o conjunto dívida e diminuir, progressivamente, nossa dependência deste mecanismo.
Iriana Cadó é economista e mestranda em desenvolvimento econômico na Unicamp. Juliane Furno é doutoranda em desenvolvimento econômico na Unicamp e militante do Levante Popular da Juventude e da Consulta Popular.