A elite deve pagar a conta
Nos últimos 12 anos, a despeito das dificuldades de crescimento econômico do país, da elevação do desemprego e da queda da renda dos trabalhadores, a arrecadação de impostos continua batendo todos os recordes históricos e reforça a injusta estrutura tributária brasileira
Para compreender os fundos públicos, no Brasil, é preciso analisar o seu financiamento. São recursos socialmente criados e administrados pelo Estado por meio da extração de tributos da sociedade: contribuições, impostos e taxas1.
No Brasil, os estudos sobre o financiamento do Estado limitam-se a comentar o expressivo crescimento da carga tributária dos últimos 12 anos. Mas é necessário ir ao cerne da questão para desvendar sobre quem recaiu esse aumento de tributos ou, em outras palavras, quem de fato pagou e paga a conta. A questão-chave é quem financia o Estado brasileiro. O sistema tributário tem sido um instrumento que favorece a redistribuição de renda?
Nos últimos 12 anos, a despeito das dificuldades de crescimento econômico do país, da elevação do desemprego e da queda da renda dos trabalhadores, a arrecadação de impostos continua batendo todos os recordes históricos e reforça a injusta estrutura tributária brasileira.
Historicamente os recursos fiscais no Brasil sempre foram usados para subsidiar e financiar a acumulação de capital, enquanto os recursos contributivos cobrados na folha de salários financiavam o social.
Ao contrário dos países que financiam seus Estados de bem-estar com recursos fiscais, em geral impostos diretos, o Brasil permanece com arrecadação tributária centrada em tributos indiretos, significando que os mais pobres pagam proporcionalmente mais tributos em relação à sua renda do que os mais ricos2. Essa sobrecarga de impostos sobre os trabalhadores assalariados também se expressa na política dos impostos diretos no Brasil, que incidem predominantemente sobre a renda desse setor.
Já os ricos, que se encontram no topo da pirâmide social, pagam cada vez menos impostos no Brasil, principalmente após 1994, com as inúmeras modificações realizadas na legislação tributária que caminharam na contramão da justiça social. Aliás, este é um tema ausente na agenda de debates sobre reforma tributária após a Constituição de 1988.
A discussão sobre quem financia o Estado passa pelo debate teórico do seu tamanho e da distribuição da carga tributária entre os membros da sociedade. Diversos estudos revelam que a carga tributária brasileira aumentou muito nos últimos anos. De fato, já é mais alta que a de muitos países desenvolvidos. Mas, ao contrário desses países, o Brasil tira a maior parte de sua receita de tributos indiretos e cumulativos, que oneram mais o trabalhador e a classe média. Na composição da receita tributária, mais de metade da carga provém de tributos que incidem sobre bens e serviços, enquanto a tributação sobre a renda não ultrapassa 25% do total.
A construção do Estado de Bem-Estar Social nos países desenvolvidos privilegiou a redistribuição da renda gerada por meio do orçamento, com tributação sobre os mais ricos e transferências dos recursos dos fundos públicos para os mais pobres.
Nos países desenvolvidos, no segundo pós-guerra, foram realizadas reformas como a tributária, a social e a trabalhista. Pela via da reforma tributária os ricos passaram a pagar impostos, especialmente com o mecanismo da progressividade sobre a renda e patrimônio. Construiu-se uma nova estrutura de redistribuição da renda e, com isso, os mais ricos passaram a ser tributados consideravelmente com impostos sobre a renda, patrimônio e herança, permitindo a criação de fundos públicos para financiar a transferência de renda para a população de menor renda, combatendo a pobreza, o desemprego e a desigualdade social nos países desenvolvidos3.
O Brasil, com base na experiência internacional e levando em conta os objetivos de erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e construir uma sociedade mais justa, deveria utilizar o sistema tributário como instrumento de distribuição de renda e riqueza, no caminho inverso do construído nas últimas décadas. Mas a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 233/2008 não caminha para a construção de um sistema tributário progressivo, pautado pela tributação de renda e do patrimônio. Além disso, a proposta de reforma tributária traz graves conseqüências ao financiamento das políticas sociais no Brasil, pois altera de forma substancial a vinculação das fontes de financiamento exclusivas das políticas da seguridade social (previdência, saúde e assistência social), educação e trabalho4.
O nosso país encontra-se entre as dez economias mais ricas do mundo5 e uma das maiores concentrações de renda do planeta6. Nosso principal problema é a desigualdade e apesar da melhoria no coeficiente de Gini, no período de 1995 a 2005, de 0,601 para 0,569, a concentração de renda do nosso país só é comparada à de alguns países da África subsaariana, uma das regiões mais miseráveis do mundo. Para agravar ainda mais esta situação, é preciso levar em conta que os dados utilizados no cálculo do Coeficiente de Gini são baseados na Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que subestima a renda do capital: juros, lucros e aluguéis.
Iniquidade social
O Sistema de Contas Nacionais (SCN) do IBGE apresenta informações valiosas para a análise da iniquidade social no Brasil. Os dados revisados do SCN pelo IBGE (2007) revelam o quadro em vigor no país: em 2000, os salários representavam 32,1% do PIB, reduzindo para 31,7%, em 2005; enquanto os lucros, mensurados a partir do excedente operacional bruto, aumentaram sua participação na renda nacional de 34% (2000) para 35,2%, em 2005.
O Imposto de Renda (IR) tem sido utilizado como instrumento de renúncia fiscal e favorecido a elisão e o planejamento tributário, na mesma linha do tratamento mais gravoso dos rendimentos do trabalho e a isenção dos rendimentos do capital, como a distribuição do lucro. O que torna necessária uma profunda revisão do IR, com o objetivo de restabelecer o seu verdadeiro significado, contribuindo para assegurar a eqüidade horizontal e vertical na tributação.
Além de precisar rever a distribuição proporcional dos tributos entre os distintos setores sociais, a reforma tributária precisa também garantir a progressividade dos tributos para reduzir a concentração de renda. O nosso país carece de progressividade: taxar com alíquotas maiores e crescentes as rendas maiores.
A construção de uma tributação mais justa no país passa pelo resgate e reafirmação de diversos princípios tributários, já existentes na Constituição brasileira, e que nos últimos anos não vêm sendo observados7. A política tributária não pode conceder tratamento privilegiado à renda dos capitalistas, de forma que todos os rendimentos tributáveis da pessoa física devem ser feitos obrigatoriamente na tabela progressiva do IR e sujeitos a ajuste anual.
A política tributária deve ser, antes de tudo, um instrumento de distribuição de renda e indutora do desenvolvimento econômico e social do país. Deve ser buscado um modelo tributário que assegure a sustentação de um Estado que priorize as políticas sociais. Nesse sentido, é necessário revogar algumas das alterações realizadas na legislação tributária infraconstitucional, após 1996, que sepultaram a isonomia tributária no Brasil com o favorecimento da renda do capital em detrimento da renda do trabalho. Entre as mudanças que precisam ser revertidas destacam-se: a redução da alíquota do IRPJ de 25% para 15%, e do adicional sobre os lucros; a possibilidade de remunerar com juros o capital próprio das empresas, reduzindo-lhes o Imposto de Renda e a CSLL; a isenção de IR na distribuição dos lucros e dividendos, na remessa de lucros e dividendos ao exterior e nas aplicações financeiras de investidores estrangeiros no Brasil.
O pilar do sistema tributário deve ser o Imposto de Renda, pois é o mais importante dos impostos diretos, capaz de garantir o caráter pessoal e a graduação de acordo com a capacidade econômica do contribuinte. O Imposto de Renda é um instrumento fundamental para redistribuição da renda, garantindo justiça fiscal. Por intermédio dele será possível aplicar a máxima “igualdade é tratar desigualmente os desiguais” no ordenamento tributário do país. Portanto, dever ser ampliado o número de faixas e de intervalos da tabela do IR, estabelecendo alíquotas iniciais inferiores às vigentes hoje, e com correção periódica da tabela8.
As modificações propostas são passos importantes para a construção de uma estrutura tributária progressiva e, portanto, mais justa. Com isso, as classes de elevado poder aquisitivo passariam a arcar com maior ônus tributário, permitindo na prática uma redistribuição de renda no país e a desoneração da tributação sobre o consumo.
A desoneração da tributação sobre bens e serviços seria um forte incentivo aos investimentos produtivos, contribuindo para a retomada do crescimento econômico. Os donos do capital financeiro seriam chamados a contribuir com uma maior parcela do financiamento do Estado brasileiro e não simplesmente a ser o seu maior beneficiário. Por outro lado, não haveria tratamento desigual da renda, a partir do momento em que todos os rendimentos fossem tributados pela tabela progressiva do Imposto de Renda, já recuperada com novas alíquotas e maior número de faixas de contribuição. O resultado esperado das propostas apresentadas é uma inversão na distribuição da carga tributária que passaria a ser concentrada em tributos diretos, ou seja, sobre a renda e o patrimônio.
*Evilásio Salvador é economista, doutor em política social (UnB). Assessor de política fiscal e orçamentária do Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC).