A emergência de uma “nova classe média” no Brasil: a dissintonia de uma ideia
Grande parte da imprensa brasileira – respaldada por órgãos do governo federal e por alguns autores – divulga há alguns anos a ideia de que depois de 2002 teria havido a emergência de uma “nova classe média” no Brasil.João Batista Pamplona e Amanda Viviam dos Santos
Grande parte da imprensa brasileira – respaldada por órgãos do governo federal e por alguns autores¹ – divulga há alguns anos a ideia de que depois de 2002 teria havido a emergência de uma “nova classe média” no Brasil. Tem-se aceitado, sem a necessária e cuidadosa reflexão, manchetes como: “Mais da metade dos brasileiros está na classe média”; “Renda aumenta nas favelas e classe média chega a 65% dos moradores”² .
Após 2003 houve de fato um importante movimento no perfil da distribuição de renda do Brasil, resultante de um aumento significativo e maior da renda de segmentos mais pobres da população brasileira. Nesse período, ocorreu crescimento dos rendimentos reais do trabalho para todos os estratos da distribuição, mas os da base tiveram aumentos bem maiores do que os estratos superiores. Como consequência, verificou-se diminuição da concentração de renda e da pobreza no Brasil³ . Por trás desse movimento esteve a política de valorização do salário mínimo – aumento de mais de 50% em termos reais – e o aquecimento do mercado de trabalho, representado pela queda do desemprego que foi reduzido à metade.
Diante deste cenário, surge o seguinte problema: este aumento real expressivo do rendimento da população de baixa renda no Brasil permitiu alçá-la à condição de classe média? Em outras palavras: a recente elevação no padrão de renda e consumo de segmentos sociais de baixa renda deu origem a uma “nova classe média” no Brasil? Essa é uma denominação adequada para o fenômeno em questão?
Quando o tema é a definição de classe social em geral, ou de classe média em particular, o recomendável é recorrer a Karl Marx e Max Weber, dois autores clássicos do pensamento social e econômico que fundamentam as interpretações mais consistentes sobre a controversa e extensa problemática. Mas não é isso que é feito a seguir. O primeiro motivo é a necessária concisão que este artigo requer. O segundo é a dimensão histórica das contribuições dos autores clássicos. Marx e Weber criaram o conceito de classe média, ou classes médias, em um contexto histórico de formação e expansão da sociedade capitalista. Com o surgimento das sociedades capitalistas avançadas em meados do século XX, o assalariamento nas grandes empresas passou a ter relevância social e econômica em geral superior à posse de pequenas propriedades ou negócios.
Erik Olin Wright e Charles Wright Mills, tendo como base a escola marxista e a weberiana, respectivamente, incorporaram as mudanças do contexto histórico no debate acerca da definição de classe média. Esses autores são referências da sociologia moderna no tema. São eles que alicerçam boa parte dos argumentos apresentados neste artigo, os quais demonstram a falta de correspondência entre aquilo que sociologicamente pode ser entendido como classe média e o fenômeno de mudança de renda e padrão de consumo verificado recentemente para parte da população brasileira.
Wright (1985, 1989) constrói sua narrativa partindo da existência de duas classes sociais básicas na sociedade capitalista: a dos trabalhadores e a dos capitalistas. Esta duas classes se constituem a partir de mecanismo de exploração formado por relações sociais de produção que se estabelecem entre quem tem a propriedade dos meios de produção (“ativos de capital”, na expressão de Wright) e quem não a tem. No entanto, o autor aponta a existência de “localizações contraditórias” na estrutura social, que estão inseridas nas relações de exploração, mas são diferentes das duas classes básicas. As classes médias ocupam essas “localizações contraditórias” porque controlam “ativos de qualificação” e “ativos de organização”. Embora estejam também submetidas à exploração capitalista, como afirma Bertoncelo (2010, p.22), interpretando Wright, elas também desfrutam de uma posição privilegiada na apropriação do excedente social em decorrência da posse desses ativos. Os profissionais qualificados são um bom exemplo dessa situação para Wright.
Mills (1979) aponta a existência de duas classes médias: uma antiga e outra nova, a primeira baseada na propriedade, a segunda estabelecida por meio da ocupação. Para ele a classe média antiga perderia espaço para a nova classe média, já que o mercado de trabalho, e não mais a propriedade, passaria a ser o elemento principal que levaria o indivíduo a ter acesso a dinheiro, poder e prestígio. Neste sentido, essa nova classe média se aproximaria dos operários, uma vez que ambos não possuem meios de produção. No entanto, como destaca França (1994), interpretando Mills, o que delimita uma situação de classe média é o tipo de emprego e as variações ocupacionais acarretam níveis diversos de especializações e funções que articulam diferenças de poder e prestígio. O prestígio e poder superiores de que dispõe a nova classe média em relação aos trabalhadores é resultado, segundo Mills (1979), de um relacionamento muito próximo com os donos do capital (o prestígio da empresa passa a ser usufruído pelo gerente, pelo executivo), de anos a mais de estudo, do desempenho de tarefas mais variadas, de diferenças étnicas, de uma renda superior; e, em se tratando de poder, do exercício da supervisão e de sua estreita ligação com cargos de direção. E como acrescenta Maia (2006), particularismos nos modos de vida e das formas de sociabilidade (maneira de se vestir, relacionamento com autoridades, etc.), além de distintos níveis de sentimento de subordinação, diferenciam os trabalhadores das classes médias.
Os defensores da ideia da emergência de uma “nova classe média” apoiam-se exclusivamente em critérios de renda como definidor de classes e estabelecem intervalos de renda per capita familiar dentro do qual estaria a classe média brasileira. Um desses intervalos, estabelecido por SAE (2014), possui o limite mínimo de R$ 291,00 e o limite máximo de R$ 1.019,00, correspondendo a valores de abril de 2012. Esta mesma fonte, procurando reduzir os efeitos da subdeclaração de renda presentes nos levantamentos da PNAD, sugere um novo limite mínimo – R$ 458,00 – para o intervalo, com base na Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do IBGE. Aceitando essa compensação, multiplicando esse valor por 3 (tamanho médio da família brasileira) e corrigindo pela inflação do período, ter-se-ia algo como R$ 1.500,00 (valores de abril de 2014) como renda mínima para que uma família seja considerada de classe média por SAE (2014). Isso significa que uma família de uma grande cidade brasileira composta de uma faxineira, de um porteiro, de um filho dependente, ganhando cada um R$ 750,00 (cerca de um salário mínimo), seria considerada uma família de classe média.
É flagrante, como afirma Xavier Sobrinho (2011), a ausência de correspondência entre o nível de vida possibilitado por essa renda e as necessidades decorrentes das representações sociais ligadas ao estilo de vida da classe média, repleto de distinções reais e simbólicas.
É inegável que nos últimos anos houve uma elevação do padrão de consumo de parte expressiva da população brasileira de baixa renda, que passou a ter maior acesso a serviços, a bens não duráveis e duráveis, como eletrodomésticos, e a material de construção. Porém, essa ampliação do acesso a bens e serviços privados não foi acompanhada na mesma proporção do acesso a serviços públicos essenciais. A chamada “nova classe média” continuou tendo baixo acesso a esgotamento sanitário4 ; morando em favelas5 ou periferias distantes, precariamente servidas de meios de transporte; possuindo perfil educacional débil6 ; vendo seus filhos frequentarem escolas ruins, sendo vítimas de atraso escolar e evasão; recebendo serviços de saúde de baixa qualidade; possuindo ocupações não especializadas, pouco qualificadas. Com efeito, o consumo desse segmento da população aumentou, mas sua vida continua longe de ter os confortos e as garantias que a vida de classe média oferece.
Uma família de classe média deve ter atributos de classe média. Deve ter fundamentalmente uma ocupação que lhe garanta “ativos organizacionais” e de “qualificação”. Estes ativos dão status diferenciado dos operários à classe média porque permitem que essa tenha em suas mãos controle organizacional e conhecimento especializado diferenciado, que são fontes de poder na sociedade capitalista moderna. Em decorrência disso, obviamente, a renda da classe média será maior do que a dos trabalhadores/operários. Ou seja, a renda é uma consequência e não um pressuposto da condição de classe média.
Os apoiadores da ideia da emergência de uma “nova classe média” defendem-se de críticas alegando que eles estabelecem e analisam a evolução de estratos econômicos e não de estratos ou classe sociais. Se se trata apenas de estratos econômicos não há que se falar em classe média e sim de uma designação qualquer que não remeta às classes sociais. No entanto, não é isso que acontece. Remeter às classes sociais e designar de “nova classe média” dá conteúdo inteiramente diferente do que daria chamar, por exemplo, de “estrato econômico A, B, C ou D”, pois constrói a sensação de “mobilidade social”, de “ascensão social”, de “resolução de problemas sociais”. Legitima os artífices do modelo econômico que permitiu tal “ascensão”, ou seja, o poder político incumbente. Assim é pertinente a avaliação de Bava (2012), que sugere tratar-se de uma operação ideológica o processo de fazer crer que o aumento do padrão de consumo de um grupo social de baixa renda o elevou à condição de classe média.
Pode-se dizer que não há uma “nova classe média” brasileira, mas sim a representação de uma elevação da renda de famílias que ainda pertencem à classe trabalhadora. Para chegarem à categoria de classe média realmente, essas famílias necessitariam ter nível superior de renda, melhores trabalho e educação, em termos qualitativos e quantitativos, maior acesso a serviços públicos, prestígio e poder.
A denominação “nova classe média” é equivocada, está fora de lugar, não corresponde à realidade de um grupo social no Brasil que teve seu nível de consumo aumentado nos últimos anos, mas partilha muito mais uma sensação de ascensão social do que uma real ascensão social.
Referências
BAVA, S. C. Classes médias? Le Monde Diplomatique Brasil, v.5, n. 58, p. 3, maio 2012.
BERTONCELO, Edison Ricardo Emiliano. Classes sociais e estilos de vida na sociedade brasileira. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação de Sociologia do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
FRANÇA, Barbara Heliodora. Nova classe média ou novo proletariado?. São Paulo em Perspectiva, jan/mar, p. 45-51, 1994.
IPEADATA. Dados e indicadores sobre distribuição de renda. Disponível em: Acesso em: 25 mar. 2014.
MAIA, Alexandre Gori. Espacialização de classes no Brasil: uma nova dimensão para análise da estrutura social. Tese de Doutorado. Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2006.
MILLS, Charles Wright. A nova classe média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1979.
NERI, Marcelo. Consumidores, Produtores e a nova classe média: miséria, desigualdade e determinantes das classes. Rio de Janeiro: FGV/IBRE, 2009.
NERI, Marcelo. Os emergentes dos emergentes: reflexões globais e ações locais para a nova classe média brasileira. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2010.
NERI, Marcelo. A nova classe média: o lado brilhante da base da pirâmide. São Paulo: Saraiva, 2011.
REVISTA EXAME. Mais da metade dos brasileiros está na classe média. São Paulo: Editora Abril, 2012. Disponível em: . Acesso em: 04 abr 2013.
SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (SAE/PR). A nova classe média brasileira: desafios que representa para a formulação de políticas públicas. Disponível em: . Acesso em: 05 ago 2012a.
SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (SAE). Comissão para definição da classe média no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 05 ago. 2012b.
SECRETARIA DE ASSUNTOS ESTRATÉGICOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA (SAE). Perguntas e respostas sobre a definição da classe média. Disponível em: . Acesso em: 01 abr. 2014.
XAVIER SOBRINHO, Guilherme G. de F. “Classe C” e sua alardeada ascensão: nova? Classe? Média?. Indicadores Econômicos FEE, Porto Alegre, v. 38, n. 4, p. 67-80, 2011.
VALOR ECONÔMICO. Renda aumenta nas favelas e classe média chega a 65% dos moradores. Disponível em: . Acesso em: 05 abr. 2013.
WRIGHT, E. O. Classes. London: Verso, 1985.
WRIGHT, E. O. The debate on classes. London: Verso, 1989.
Ilustração: Daniel Kondo
João Batista Pamplona é Professor Associado do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política da PUC – SP; Amanda Viviam dos Santos é economista e mestre em Ciências Sociais pela PUC – SP.