A encruzilhada dos modelos
Cabe aos movimentos sociais e à sociedade civil continuarem se mobilizando pelo fim da fome e pela garantia do direito à alimentação adequada. Nesta luta, é fundamental fortalecer as instituições de Direitos Humanos, que são conquistas históricas dos povos
A campanha eleitoral e os primeiros dois anos do governo Lula foram marcados por um intenso debate público sobre a questão da fome e da segurança alimentar e nutricional (SAN). Tal debate foi permeado por uma mescla de questões técnicas e ideológicas. De um lado, o governo eleito, com amplo apoio popular, reafirmava sua meta de erradicar a fome e de colocar a economia a serviço desta proposição. De outro, os setores conservadores, com o apoio de alguns renomados cientistas, diziam que o governo superestimava a fome, que a desnutrição não teria relevância atual e que deveríamos, isto sim, preocupar-nos com a crescente epidemia de sobrepeso e obesidade apontadas por alguns estudos.
O governo, com o apoio da sociedade civil organizada, em especial daquela aglutinada em torno do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e dos movimentos sociais, realizou um conjunto de estudos que documentou a gravidade da situação alimentar e nutricional da população brasileira. Esses estudos, que não haviam sido realizados nas últimas duas décadas, apontaram para a coexistência de um grave quadro de insegurança alimentar, afetando cerca de 70 milhões de pessoas, com alta incidência de desnutrição infantil nas populações, e simultaneamente, de sobrepeso e obesidade em um terço da população, especialmente entre o mais pobres. A situação é mais grave entre as populações negra, rural, quilombolas e indígenas.
Este processo também colaborou para fazer avançar o entendimento de que a alimentação adequada é um Direito Humano, estabelecido nos tratados internacionais ratificados pelo Estado brasileiro – o que implica que o Estado, e portanto os governos estaduais e federal, têm a obrigação de respeitá-lo, protegê-lo, promovê-lo e provê-lo. Tal compreensão foi reafirmada na Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional, aprovada pelo Congresso Nacional em setembro de 2006, que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, com o objetivo central de garantir a realização do Direito Humano à Alimentação Adequada (DHAA).
Isto significa que a promoção da SAN vai além da meta imediata de acabar com a fome. Também cabe à sociedade, por meio do Estado, garantir que todos os habitantes do Brasil tenham condições de produzir sua alimentação e/ou ter recursos financeiros para adquirir alimentação adequada, com dignidade. Ao mesmo tempo, cabe ao Estado garantir a qualidade da alimentação produzida e comercializada, e proteger os habitantes do país, em especial as crianças, contra propagandas abusivas de alimentos que tragam riscos à saúde.
No campo da promoção do DHAA, a sociedade civil cumpriu um importante papel a partir de 2002, com a criação da Relatoria Nacional para os Direitos Humanos à Alimentação Adequada, Água e Terra Rural, vinculada à Plataforma Brasileira de Direitos Humanos Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais. Esta relatoria, desde então, investigou dezenas de denúncias de violações do DHAA, na maioria dos estados, e encaminhou relatórios circunstanciados sobre as mesmas para as autoridades públicas competentes em âmbito nacional e internacional. Este trabalho contribui para o avanço do debate no Consea e com diferentes setores do governo, visando à reordenação das políticas públicas com o objetivo de promover e proteger o DHAA de toda a população.
Do debate às políticas públicas
Como afirmado anteriormente, pode-se reconhecer que houve alguns avanços na discussão sobre o tema, na ação da sociedade civil e mesmo no âmbito governamental. No entanto, tem sido muito limitada a tradução desses avanços em políticas públicas capazes de reverter as causas estruturais da desigualdade, pobreza e fome no país.
Certamente, houve avanços com a instituição do Programa Bolsa Família, que hoje beneficia mais de 11 milhões de famílias que vivem abaixo da linha de pobreza, com a manutenção da previdência rural, com o fortalecimento institucional e financeiro do Programa Nacional de Alimentação Escolar, e com um conjunto de iniciativas voltadas ao apoio da agricultura familiar, entre as quais pode-se ressaltar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que facilita a compra direta de alimentos do pequeno agricultor para programas públicos de alimentação.
Também se conseguiu a institucionalização do Consea Nacional e de Conseas em estados e municípios, permitindo que a Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, realizada no início de julho último em Fortaleza, conseguisse mobilizar mais de 70 mil participantes em seu processo de preparação. Em 2004, foi instituída uma Comissão Permanente de Promoção do DHAA no Consea nacional, encarregada de colaborar para a incorporação dos princípios e dimensões deste direito às políticas públicas. Uma outra comissão, com a finalidade específica de analisar denúncias de violações do DHAA, foi criada no âmbito do Conselho Nacional de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. No entanto, o trabalho dessas comissões é severamente prejudicado pela sua fragilidade financeira e estrutural e pela política de direitos humanos vigente no país, que não respeita nem promove a autonomia e independência das instituições públicas do setor, como preconizam os Princípios de Paris, aprovados pela ONU.
Mas o problema central na implementação de uma verdadeira política pública de SAN se encontra na flagrante contradição entre os princípios de SAN e de DHAA com os que, hegemonicamente, embasam o modelo de desenvolvimento socioeconômico atual, ancorado no agronegócio para exportação e na política externa em apoio à liberalização dos mercados. Esta contradição foi uma vez mais identificada pela declaração final da III Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, ao reafirmar – em contraposição ao modelo hegemônico – seu apoio à articulação das políticas sociais e econômicas, com subordinação das últimas às primeiras; à agricultura familiar e à agroecologia; à reforma agrária e à demarcação das terras indígenas, quilombolas e de populações tradicionais; à proteção e geração de empregos; à promoção e garantia do direito à renda, entre outras.
No ponto de intersecção
Tudo indica que o novo governo Lula, com uma composição mais conservadora que o primeiro, e claramente alinhado com os interesses dos grandes produtores agrícolas, tende a se afastar estruturalmente das propostas de promoção da SAN, no contexto de um fortalecimento da Soberania Alimentar e da realização do DHAA. As últimas duas décadas de desenvolvimento econômico internacional, sob a hegemonia do mercado, da liberalização do comércio internacional e do Consenso de Washington, demonstraram claramente que este modelo serve apenas aos seletos grupos que se beneficiam da concentração de renda e de poder, tanto no âmbito nacional como internacional, aprofundando as desigualdades e gerando mais pobreza e fome.
O aprofundamento da hegemonia deste modelo, mesmo com a implementação do conjunto de políticas sociais compensatórias, ora em andamento, pode implicar a reversão do processo de redução das desigualdades observado nos últimos dois ou três anos, em parte devido aos programas sociais, mas também devido à ampliação do número de empregos e à recuperação do salário mínimo.
A perspectiva de desmonte e enfraquecimento dos direitos trabalhistas, a redução do ritmo da recuperação do salário mínimo, e a expansão acelerada do agronegócio e das monoculturas, agora sob a perspectiva de grandes investimentos na produção de biocombustíveis, poderão ter um efeito catastrófico na capacidade de os habitantes do território brasileiro garantirem seu acesso aos recursos necessários para produzir os alimentos e à renda necessária para garantir uma alimentação adequada e digna.
Correlação de forças
Este curso pode ser certamente mudado se os movimentos sociais e as organizações da sociedade civil conseguirem mudar a correlação de forças atual, tanto em âmbito nacional como internacional. Avanços em alguns países da América Latina, especialmente na Bolívia e na Venezuela, apontam para possíveis caminhos em direção a um desenvolvimento com maior soberania e participação popular.
Infelizmente, o governo Lula optou por não solicitar o apoio da população para fazer as mudanças estruturais e institucionais necessárias ao estabelecimento e fortalecimento de um processo contra hegemônico em nível nacional. Processo este capaz de sinalizar a direção rumo à consolidação de um desenvolvimento nacional soberano, capaz de enfrentar e superar as causas estruturais da desigualdade, da pobreza e da fome. O mesmo pode ser dito em relação à sua política externa mais recente, que aponta para a tendência de fortalecer uma aliança com os interesses econômicos das elites brasileiras e não com os povos da América Latina, e para crescente busca da hegemonia econômica e política na região.
Caberá aos movimentos sociais e à sociedade civil brasileira continuarem se mobilizando pelo fim da fome e pela garantia da realização do DHAA no Brasil, aliando-se, quando possível, com setores governamentais que trabalhem na perspectiva contra hegemônica. Nesta luta, considero fundamental a utilização e fortalecimento das instituições e dos instrumentos de Direitos Humanos, que são conquistas históricas da luta dos povos contra a opressão e a discriminação.
Flavio Luiz Schieck Valente é médico, mestre em saúde pública e secretário geral da FIAN Internacional, sediado em Heidberg, Alemanha.