A energia renovável vai para o espaço
No solo, a energia solar, apesar de ser uma boa opção em escala local, acarretaria problemas em nível global, pois é o modo de geração de energia que exige maiores extensões de terraAmâncio Friaça
Em 22 de maio de 2012, o foguete Falcon 9, da empresa SpaceX, partiu de Cabo Canaveral no primeiro voo orbital privado, transportando a cápsula Dragon para reabastecer a Estação Internacional Espacial (ISS, na sigla em inglês).1 O lançamento bem-sucedido foi saudado como um marco histórico na exploração do espaço. A utilização de naves privadas pode reduzir o custo do transporte para fora da Terra em 70%. Deu-se mais um “passo para libertar o homem de sua prisão na terra”. Essa citação, de um repórter norte-americano por ocasião do lançamento do Sputnik, encontra-se no segundo parágrafo de A condição humana, de Hannah Arendt. A filósofa ilustra com essa fala o profundo significado do evento da saída da humanidade ao espaço, que “em importância ultrapassa todos os outros”.2
A maior facilidade de nos alçarmos até a órbita terrestre torna mais próxima a energia solar produzida no espaço (ESE). Esta seria muito mais eficiente do que a gerada no solo e com impacto ambiental desprezível. O advento de empresas de lançamento ao espaço, como a SpaceX, transformou a ESE de uma fantasia futurística em um projeto plausível. O rápido desenvolvimento da transmissão sem fio de energia auxilia ainda mais a passagem da ficção científica para o dia a dia, permitindo que a energia gerada no espaço seja transformada em feixes de laser ou micro-ondas, captada em estações de recepção em terra e reconvertida em eletricidade. O Japão, por seus escassos recursos naturais e por temor em relação à energia nuclear na era pós-Fukushima, tomou a dianteira nessa área. O país planeja uma usina de energia solar no espaço a ser colocada em órbita geoestacionária (a 36 mil quilômetros da Terra) por volta de 2030.3
A discussão da ESE é especialmente oportuna neste momento em que a ONU declarou 2012 o Ano Internacional da Energia Sustentável para Todos.4 Como parte das celebrações do Ano Internacional, realizou-se, de abril a maio de 2012, no Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da USP, o Painel Astrobiologia, Energia e Sustentabilidade (Paes),5 dentro da disciplina de astrobiologia “A vida no contexto cósmico”. A astrobiologia, o estudo da vida no Universo, tem muito a dizer a respeito, já que um de seus temas centrais são os mecanismos de sustentação de um aporte continuado de energia por tempos longos o suficiente para que possa ocorrer a evolução darwiniana. Durante o Paes, refletiu-se sobre como pesquisas fundamentais em astrobiologia – habitabilidade, evolução das biosferas e impacto humano na Terra e além – poderiam contribuir para a realização dos objetivos do Ano Internacional – acesso universal à energia, eficiência energética e energias renováveis. Dada a natureza do Paes, um dos temas abordados foi a ESE.
Energia renovável é aquela que pode ser mantida em altos níveis por um tempo indefinido sem o esgotamento de sua fonte. Nas considerações da astrobiologia, energia é um dos três requisitos básicos da vida: um biossolvente (na biologia terrestre, a água); materiais biogênicos (para a vida terrestre e provavelmente qualquer vida alienígena, compostos orgânicos) e uma fonte de energia livre. O último ponto é particularmente importante. Vida é caracterizada, antes de tudo, por não equilíbrio sustentado por períodos de tempo extremamente longos, durante o qual uma fonte de energia deve estar presente. Em qualquer consideração sobre sustentabilidade, deve-se lembrar que a vida exige muita energia para se manter. No nível do indivíduo, a sustentabilidade do não equilíbrio é realizada por complexos processos autopoiéticos corporais. O corpo de um ser humano, capaz de viver cem anos, ao morrer torna-se um cadáver que se decompõe em dias. No nível planetário, a biosfera foi mantida por quase 4 bilhões de anos, o que exige uma fonte de energia constantemente renovada durante todo esse período.
A maior parte da energia renovável da Terra vem do espaço. O Sol é sua fonte. Darwin já havia percebido que o lento processo de especiação de sua teoria da evolução demandava muitos milhões de anos. Por meio do cálculo da taxa de desgaste do Weald, um grande vale no sul da Inglaterra, ele determinou uma idade de 300 milhões de anos para essa formação, implicando uma idade mínima para a Terra e para o Sol. Eis aí uma cifra para o período de tempo mínimo durante o qual a energia deve ser renovada: 300 milhões de anos. Hoje em dia, sabemos que a Terra tem 4,55 bilhões de anos. O Sol brilhou durante todo esse tempo e deverá brilhar por ainda 6,5 bilhões de anos até explodir, transformando-se em uma nebulosa.
Para planetas fora do Sistema Solar, a fonte de energia renovável principal também é o “sol”, a estrela central do sistema planetário. A vida requer energia livre, ou seja, com uma diferença de temperatura para que haja o fluxo de energia, e o brilho abrasador das estrelas é a fonte básica de energia livre do Universo. A origem da energia do Sol e das outras estrelas é nuclear. No atual estágio de sua evolução, o Sol converte, por fusão nuclear, hidrogênio em hélio, em sua região central. Assim, consumindo apenas 10% de sua massa, o Sol brilha por 11 bilhões de anos.
Como vimos, a maior parte de nossa energia renovável vem do espaço, proveniente do Sol. Agora, com a ESE, a energia renovável gerada pela humanidade vai para o espaço. Na verdade, os seres humanos sempre se serviram de energia renovável, solar em sua maior parte, como todos os outros seres vivos. Só recentemente passaram a depender de formas não renováveis de energia. A partir da Revolução Industrial, começamos a extrair energia do carvão mineral e depois do petróleo. Quando recorremos a combustíveis fósseis, servimo-nos de resíduos de ciclos químicos com vida curta do ponto de vista geológico e astronômico. A energia química é só uma forma provisória de armazenagem de energia. Se todo o Sol fosse feito de carvão, ele brilharia por 4 mil anos em vez de por 11 bilhões de anos. Combustíveis fósseis são extraídos de sepulturas de seres vivos, os fósseis. Resultam de ligeiros desvios dos ciclos de substâncias orgânicas recicladas pelos organismos. A biosfera segue a lógica de um ciclo aproximadamente fechado de “berço para berço”, no qual os restos, incluindo os cadáveres, dos seres vivos acabam por formar os corpos dos seres vivos de gerações posteriores.6 Porém, a humanidade passou a seguir uma lógica de “berço para túmulo”, em que o que produz é descartado como se ali fosse seu estágio final. Pior, pela dependência dos combustíveis fósseis, a lógica adotada pela sociedade moderna é a de “túmulo para túmulo”. As pequenas discrepâncias do comportamento cíclico da biosfera foram substituídas por um acúmulo exponencial de objetos em um extremo de uma linha e um consumo crescente de energia em outro.
Ao nos voltarmos para a energia solar, estamos indo diretamente à fonte mais importante de energia para a vida. A demanda mundial de energia é de 15 terawatts, uma fração mínima de toda a energia solar incidente na Terra: 175 mil terawatts. A ESE seria muito mais eficiente do que a gerada no solo. Apenas a absorção atmosférica, mesmo com céu claro, reduz em 35% a potência total incidente na Terra. Levando ainda em conta efeitos de latitude, clima, cobertura de nuvens e o ciclo dia-noite (no espaço a luz solar poderia ser coletada 24 horas), o ganho total de eficiência seria cerca de cinco vezes maior. A área terrestre que seria poupada poderia ser utilizada para produção de alimentos sem prejudicar a segurança alimentar. A ESE poderia ser direcionada para qualquer local do mundo e atender às variações das demandas ao longo do tempo e às necessidades distintas de cada região do globo. Não haveria a restrição de distância entre os locais de produção e de consumo de energia. A ESE não interferiria na cobertura vegetal nem na vida selvagem, diferentemente dos demais modos de produção de energia. Desse modo, não imporia qualquer pressão à biodiversidade. Finalmente, preservaria paisagens, contribuindo para a proteção do mundo simbólico e da rede das relações sociais.
No solo, a energia solar, apesar de ser uma boa opção em escala local, acarretaria problemas em nível global, pois é o modo de geração de energia que exige maiores extensões de terra.7 Suas formas eólica, de biomassa e fotovoltaica utilizam superfícies muito maiores do que outra maneira de captação de energia solar, que não tem sido muito mencionada: a energia hidrelétrica. Para gerar a mesma quantidade de energia, 1 km² de uma hidrelétrica corresponde a 6 km² para a geração fotovoltaica, 41 km² para a eólica e 208 km² para a por biomassa! Segundo estudos sobre os limites da Terra em relação a pressões antropogênicas, o limiar mais gravemente transgredido é o da perda da biodiversidade, com uma taxa de extinção de espécies cem a mil vezes superior ao nível pré-industrial.8 E o limiar da perda da biodiversidade correlaciona-se fortemente com o do uso do solo. Tecnologias mais avançadas poderiam reduzir a área utilizada pela biomassa. O Brasil é pioneiro nesse aspecto.9 Por exemplo, pesquisas aqui realizadas sobre a produção de etanol indicam como sua produtividade pode ser aumentada por um fator quatro. Porém, mesmo com uma área menor, as extensões ocupadas ainda são muito vastas. A energia eólica também exige grandes áreas, e a redução de sua ocupação do solo por novas tecnologias é apenas incremental, no máximo talvez 30%. Pelas grandes áreas que demanda, usar a energia solar para suprir o consumo de energia da Terra pode acarretar uma séria ameaça à biodiversidade. Se o consumo de eletricidade continuar crescendo (houve um aumento de 5,6% só em 2010), teremos um paradoxo: a energia solar, a energia renovável por excelência, poderia empurrar ainda mais o planeta rumo à sua sexta extinção em massa.
Já que estamos falando em extinções em massa, o que o fim dos dinossauros tem a ver com a ESE? Um artigo clássico de 1980, sobre uma causa extraterrestre para a extinção Cretáceo-Terciário, parte da inusitada observação de que, exatamente na camada de transição entre os sedimentos correspondentes a essas duas eras geológicas, o irídio apresenta superabundâncias de até 160 vezes as típicas da crosta terrestre. E isso em locais tão distantes entre si, como a Dinamarca e a Nova Zelândia. Ora, o irídio é o metal mais raro do grupo dos metais nobres da tabela periódica, o grupo da platina. Contudo, as abundâncias cósmicas desses elementos são muito maiores do que as terrestres, o que sugere um influxo de material extraterrestre. O artigo conclui que a origem do irídio seria um asteroide que caiu sobre a Terra, causando a última extinção em massa do planeta.10
As grandes quantidades de metais preciosos no espaço despertaram a cobiça humana. A empresa Planetary Resources anunciou seus planos de mineração de asteroides próximos da Terra (NEAs, na sigla em inglês) em busca de metais do grupo da platina.11 Um perfeito exemplo de um capitalismo de risco. Os NEAs, uma potencial ameaça pela possibilidade de queda no planeta, tornam-se mercadoria. Converte-se risco em oportunidade. Dos cerca de 9 mil NEAs conhecidos, uns 1.500 são tão fáceis de visitar quanto a Lua. A mineração espacial permitira a fabricação no espaço dos painéis solares da ESE. O espaço está no DNA da Planetary Resources. Seu cofundador, Peter Diamondis, criou o Prêmio X para a primeira nave privada que realizasse um voo suborbital, visando o turismo espacial.
Com as novas empresas espaciais, a expansão do capitalismo atingiu sua fronteira geográfica final, o espaço. As novas corporações trazem, além de vantagens, perigos. Mesmo os promotores da benigna ESE, ao louvarem a eliminação da competição entre as nações pelos recursos energéticos, acenam com a possibilidade de uma empresa que vai além do transnacional e se afirma como transplanetária, com o domínio do recurso que nos chega abundante e livremente do espaço, a energia. A missão da Planetary Resources, “expandir a base de recursos da humanidade para incluir o Sistema Solar”,12 ecoa de modo insólito as palavras delirantes de Cecil Rhodes. Esse megaempresário do século XIX e colonizador britânico lamentava-se por não poder se expandir até o Sistema Solar: “Penso nessas estrelas que se vê no alto, à noite, esses vastos mundos que nunca poderemos atingir. Eu anexaria os planetas, se pudesse”.
Amâncio Friaça é astrofísico e pesquisador do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas da Universidade de São Paulo (IAG-USP). É membro do Conselho Editorial do Le Monde Diplomatique Brasil.