A era dos açougueiros vegetarianos
Entre a descoberta de surpreendentes capacidades dos bonobos – que resolvem conflitos copulando – e o destaque conferido ao sofrimento das criações na pecuária, nossa percepção sobre os animais foi modificada e a questão assumiu uma importância inesperada. Em geral acalorados, os debates que surgem não podem ser reduzidos a caricaturas: os malvados carnívoros arrogantes contra os doces vegetarianos empáticos, ou, pelo contrário, o bom senso dos comedores de carne contra o sectarismo dos trituradores de cenoura. Os questionamentos que surgem são de fato relevantes: qual é a parcela animal do ser humano? Qual é a melhor forma de coexistir? Devemos alguma coisa às outras criaturas vivas? Resta, por fim, descobrir se esse acolhimento da alteridade, alimentado de emoção, pode contribuir para o progresso social
As vacas francesas poderão em breve morrer alegremente: em virtude de uma lei votada em maio pela Assembleia Nacional, cada matadouro será dotado de um “responsável pelo bem-estar animal”, que zelará para que os bichos estejam bem “atordoados” – ou seja, eletrocutados ou dopados com gás – antes de sua execução. Não há certeza de que isso seja suficiente para aumentar a classificação da França no Índice de Proteção Animal estabelecido por ONGs para comparar as legislações de cerca de cinquenta países. Com um medíocre C, a França está no meio, bem à frente da Bielorrússia, do Azerbaijão e do Irã, onde não existe interesse algum pelo assunto, mas longe da Áustria, que proíbe a criação de frangos em granjas industriais, o comércio de peles, experiências médicas em macacos, a castração sem anestesia de leitões, a superalimentação de gansos…
A questão do sofrimento animal não entrou apenas nos parlamentos. Ela ocupa um espaço cada vez maior do debate público e dos meios militantes, em particular ecologistas. Na internet, vídeos virais explicitam o horror dos matadouros e da criação industrial. Sob a pressão das associações, diversas companhias de circo (Joseph Bouglione na França, Barnum nos Estados Unidos…) recentemente pararam de usar animais em seus espetáculos e redes de supermercado tiraram de suas prateleiras os ovos das galinhas criadas em gaiolas. Quanto às livrarias, suas prateleiras se cobrem de livros que exaltam os méritos do regime sem carne.
Na França, e ainda mais na Alemanha, nos países escandinavos, no Canadá e em Israel (Tel Aviv reivindica o título de “capital vegetariana do mundo”), o número de vegetarianos não para de aumentar. Sua proporção na França varia segundo estudos entre 3% e 6% da população (contra 8% a 10% na Alemanha), dos quais 1% seria vegano e teria assim excluído qualquer forma de exploração animal de seu modo de vida – desde comer mel até se vestir com lã. Contaríamos, além disso, com um quarto de “flexitarianos”, uma noção vaga designando pessoas preocupadas em reduzir sua alimentação de carne, sem, no entanto, aboli-la. Ainda que a sensibilidade em relação ao sofrimento animal não seja a única motivação para a mudança de regime – razões alimentares ou ambientais podem levar a isso –, a ideia de que podemos não consumir carne ganha espaço.
Os recentes avanços da causa animal se devem aos seus militantes. Associando objetivos a curto prazo (fechamento de um matadouro ou de um aquário de golfinhos) e um projeto mais geral (a “libertação animal”), eles organizam um lobby frenético junto aos representantes políticos. “São cinquenta e-mails por dia que todos [os deputados da República em Marcha, o partido de centro do presidente Emmanuel Macron] recebemos sem parar sobre a questão da violência animal”, constatou recentemente o deputado Gilles Le Gendre.1 Eles se introduziram clandestinamente nos locais do agronegócio para filmar os bastidores e sensibilizar a opinião com imagens chocantes. Muitos convertidos explicam ter dado esse passo depois de verem alguns desses vídeos – vacas cujo sangue é tirado quando ainda vivas, para que o processo seja mais rápido; pintinhos machos esmagados aos milhares…2
Para garantir reverberação midiática, a causa animal pode inclusive contar com a contribuição de uma penca de famosos. Na França, os jornalistas Franz-Olivier Giesbert e Aymeric Caron, a cantora Mylène Farmer, o monge budista Matthieu Ricard… Enquanto isso, Leonardo di Caprio subvenciona a proteção dos elefantes, Angelina Jolie e Brad Pitt se consagram à vida selvagem na Namíbia. Já os atores Penelope Cruz, Pamela Anderson e Natalie Portman e os cantores Justin Bieber, Morrissey, Paul McCartney, Bryam Adams e Moby participam das cruzadas da associação People for an Ethical Treatment of Animals (Peta – Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais), uma das mais importantes do movimento de defesa dos animais, que produz campanhas publicitárias em que mulheres nuas aparecem em posições sugestivas.
Que Hollywood tenha se tornado um dos centros nevrálgicos da causa animal não deixa de ser irônico. Quando se impôs no Reino Unido dos anos 1960, o movimento de “libertação animal” se ligava à estética punk e se identificava com a contracultura. Seus militantes, frequentemente batizados de ecoguerreiros e dos quais alguns terminaram na prisão, praticavam a ação direta, a sabotagem dos meios de transporte, o roubo de prédios da indústria alimentar e dos grupos farmacêuticos. Seus primeiros alvos eram as manifestações burguesas da exploração animal, tais como a caça e as corridas de cachorros, práticas que testemunhavam, segundo eles, a imbricação das dominações social e “especista”.3
Forjado no modelo dos termos “racismo” e “sexismo”, esse neologismo apareceu no início dos anos 1970 e se impôs rapidamente como a base ideológica do movimento de libertação animal. Segundo os Cahiers Antispécistes (“Cadernos antiespecistas”), “o especismo é para a espécie o que o racismo é para a raça e o que o sexismo é para o sexo: uma discriminação com base na espécie, quase sempre em favor dos membros da espécie humana”. Seria então conveniente libertar os animas como antes foram emancipados os escravos ou as mulheres – com a diferença notável de que os principais envolvidos não correm o risco de se unir à luta.
Houve no passado diversas vozes para pregar o vegetarianismo e recusar a morte dos animais. No século VI antes da nossa era, por preocupação de não violência e porque acreditavam na transmigração da alma, o matemático Pitágoras e seus discípulos se abstinham de comer carne. Mais de um milênio depois, seitas evangélicas e puritanas continuavam banindo produtos da carne, esperando assim “vencer a carne e fazer o espírito triunfar”.4 A partir dos anos 1960-1970, justificou-se o vegetarianismo pela igualdade entre as espécies, sob o pretexto de que todas seriam compostas de seres sensíveis à dor, capazes de refletir e de se comunicar.
Pouco a pouco, o símbolo da luta animalista se deslocou da caça e das peles para a indústria da carne. O assunto tem, com efeito, poder de mobilização. A cada semana, segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mais de 1 bilhão de animais terrestres são mortos para encher estômagos humanos, sem contar cerca de 20 bilhões de peixes e crustáceos.5 A fim de satisfazer uma demanda sempre crescente, em particular nos países do Sul, é preciso produzir e matar o mais rápido possível, da forma mais barata possível. A zootecnia, a ciência das produções animais, adaptou então os bichos às necessidades de criação, para que eles crescessem mais rápido, para que as tetas das vacas se adaptassem melhor às máquinas etc. “Os animais de criação se tornaram ‘máquinas animais’ a serviço de um projeto industrial de exploração da ‘matéria animal’”, analisa a socióloga e agrônoma Jocelyne Porcher.6 Para alguns, o animal constitui um obstáculo para a indústria agroalimentar – é preciso alojá-lo, alimentá-lo, cuidar dele… –, que não teria nenhum escrúpulo em se livrar dele se encontrasse uma matéria-prima mais rentável.
Investido pelos fundos de pensão e as start-ups da FoodTech, o setor dos produtos similares à carne está em pleno desenvolvimento. Com o dinheiro do Google, cientistas norte-americanos se dedicam a cultivar bifes in vitro a partir de células-tronco – projeto aplaudido com entusiasmo pelo Peta. Enquanto a preocupação com a alimentação vegetariana se desenvolve, novos produtos aparecem nos mercados: salsichas à base de ervilhas, presuntos “sem carne, mas ricos em proteínas”… Na França, os números do departamento “embutidos vegetais” quase dobrou entre 2015 e 2016. Essas misturas que têm aparência, textura e pretensamente gosto de carne são frequentemente elaboradas por multinacionais da carne ou dos embutidos, como a Fleury-Michon, que criou em 2016 a linha Côté Végétal (“Lado vegetal”), a Herta, com Le Bon Végétal (“O bom vegetal”), a Aoste, com “Le Végétarien (“O vegetariano”), e a Le Gaulois (“Le Gaulois Végétal”). E elas não têm nada de natural. Para preparar seu “cordon bleu vegetal” (vendido por um preço 67% mais caro que seu equivalente de carne), o aviário Le Gaulois deve, por exemplo, misturar não menos de quarenta ingredientes, entre os quais maltodextrina (que fornece o aroma e o agente de carga que permite o aumento de volume do alimento), alho-poró e clara de ovo em pó, goma xantana (gelificante), carragenina (espessante e estabilizante), proteínas de soja reidratadas, citrato de sódio (conservante regulador de acidez, aromatizante) etc. A paixão vegetariana pode paradoxalmente gerar um alimento cada vez mais artificial, reforçando o poder da agroindústria sobre a cadeia alimentar.
Privilégio das classes superiores durante séculos, a carne “mudou de campo sociológico”: os operários e as pessoas sem diploma consomem hoje em dia mais do que os executivos e diplomados, ressalta a Terra Nova, uma fundação que se propõe a contribuir para a “renovação intelectual da esquerda progressista” convidando-a a “aproveitar as oportunidades de uma alimentação com menos carne” e baseando-se nos “setores mais promissores da FoodTech”.7 Agora, os mais favorecidos se distinguem ao renunciar à carne, por sensibilidade à causa animal, assim como por preocupação com sua saúde, e o vegetarianismo se transforma em estandarte. Tratar-se-ia do “novo regime da moda”, segundo a revista semanal Le Point (13 jun. 2015). “Comer bem sem consumir animais nunca foi tão descolado”, declara a revista Elle (1º jul. 2016). Quanto à estilista Lolita Lempicka, especializada na moda têxtil custosa mas 100% vegetal, ela se gaba de seu “negócio glam e vegano”.8 A batalha contra a carne abre um novo episódio na luta de classes?
Os restaurantes vegetarianos já se tornaram símbolo da gentrificação dos antigos bairros populares. Ao mesmo tempo que despertam as consciências sobre a realidade da agroindústria, os vídeos da associação L214 contribuem para estigmatizar os operários dos matadouros, a respeito dos quais os comentaristas se divertem ao discutir sobre a falta de empatia. Mas podemos realmente esperar de um esquartejador que viu passar por suas mãos, ao longo de 25 anos de carreira, de 6 milhões a 9 milhões de bichos, que trate cada um com delicadeza?9 Introduzir a vídeo-vigilância nos matadouros irá apenas reforçar o controle exercido sobre os operários, que já são submetidos a cadências infernais. O bem-estar dos animais de criação passa por cima do dos trabalhadores da linha e os dois dependem do mesmo imperativo: diminuir o ritmo da produção.
*Benoît Bréville é jornalista do Le Monde Diplomatique.