A esquerda brasileira sobre as brasas do crédito
Lula acaba de voltar ao poder e já tem que enfrentar a espinhosa questão das taxas de juros abusivas. No entanto, a situação atual é, em grande parte, resultado das políticas de crédito adotadas pelo PT nos anos 2000
No Brasil, a esquerda fez do crédito um instrumento para combater a pobreza e promover a cidadania das classes populares por meio do consumo. O acesso ao crédito, especialmente a partir dos anos 2000, tornou possível ter uma máquina de lavar roupa, comprar um carro e construir uma casa. “O crédito foi a possibilidade de comprar coisas que não conseguiríamos juntando dinheiro”, diz Carla, uma cozinheira autônoma. “As pessoas não viam o crédito apenas como um progresso”, diz Yuri, um pequeno comerciante. Elas se sentiam “parte da sociedade, porque ter crédito é um sentimento de pertencimento”.
No entanto, a recessão econômica de 2014-2015 acabou com as esperanças de mobilidade social e enfraqueceu setores intensivos em mão de obra, como a construção civil. No início de 2018, Yuri estava desiludido: “Tudo que as pessoas tinham acesso, hoje é tudo menos. As pessoas conseguem comprar, mas não conseguem pagar porque a taxa de juros é muito alta”. Se as classes populares consomem para pertencer à sociedade no Brasil, então, todo o projeto levado pela esquerda chegou a um ponto de crise. O desbloqueio do acesso ao crédito para os 63 milhões de brasileiros inadimplentes, ou seja, 40% da população adulta, virou uma questão chave na campanha presidencial de 2018. Ciro Gomes, do Partido Democrático Trabalhista, faz disso uma prioridade do seu programa. Ele propõe a intervenção do Estado federal para renegociar as dívidas das famílias e cancelar 70% de seus valores, correspondentes aos juros cobrados pelos bancos. Fernando Haddad, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), reage algumas semanas depois, propondo um programa para reintegrar as famílias superendividadas no circuito do consumo.

O crédito, um objeto político específico
Durante a eleição presidencial de 2022, o mesmo roteiro se repetiu entre os candidatos de centro-esquerda: Lula e Ciro Gomes. Se por um lado a discussão foca na limpeza do “nome sujo”, na outra via parece que o objetivo é dar mais crédito a uma população superendividada. Seis semanas antes do primeiro turno, Jair Bolsonaro estende o acesso ao “crédito consignado” para os beneficiários do Auxilio Brasil. Ampliado por Lula em 2003, o crédito consignado se baseia em um mecanismo de reembolso específico: o Estado desconta os pagamentos mensais das pensões dos pensionistas e os transfere para os bancos. Mais de 22 milhões de famílias pobres puderam ter acesso a ele. O desconto será de até 40% do Auxilio Brasil, fixado em R$ 600. Os principais meios de comunicação do país, como a Globo, criticam o desejo de “multiplicar o efeito eleitoral do Auxilio Brasil, dando acesso a crédito de até R$ 2.600”. Para eles, Bolsonaro está tentando influenciar o voto das famílias mais pobres, que eram a favor de Lula. Mais amplamente, é o fato de que um beneficio que deveria garantir a sobrevivência das famílias acabar por alimentar lucros financeiros que provoca a indignação. Por sua vez, Lula se opôs a esse crédito, alertando sobre seus efeitos devastadores: “Com essa taxa de juro que ele (Bolsonaro) está falando, ele vai levar o povo a um sufoco sem precedentes na história do país. Crédito consignado tem que ser a 1% ao mês. Não pode passar de 8%, 9% ao ano. Se você tiver 8% ao mês, vai chegar a 200%, 300% ao ano. Você vai sufocar”.
A medida entrou em vigor no meio do segundo turno com uma taxa de juros anual de 50%. Na manhã de 11 de outubro, milhares de pessoas correm para o banco. Ao meio-dia, as televisões mostram enormes filas de espera. Nos vídeos, você pode ver os clientes cansados da desorganização das agências saturadas. Contudo, a concessão do crédito atende as necessidades das pessoas: pagar o aluguel, comprar uma geladeira, colocar uma dentadura. Na noite de 13 de outubro, a Caixa Econômica já havia emprestado R$ 1,3 bilhão. Ou seja, 700 mil pessoas contraíram um empréstimo consignado no espaço de 72 horas. Milhares de outras pessoas tiveram seus pedidos recusados.
Em meados de dezembro de 2022, a equipe de transição anunciou a provável suspensão dessa lei. No entanto, esse episódio da campanha eleitoral destaca as contradições da esquerda brasileira. Lula se apresenta como defensor do crédito barato, apesar de sempre ter se recusado a regular, pela lei, as taxas de juros. Foram os deputados do PT que, em 2003, impulsionaram a abolição do parágrafo 3 da Constituição, que previa uma taxa máxima de juros de 12% ao ano.[1] Dessa forma, eles conquistaram a confiança das elites financeiras para governar. Porém, essa medida provocou a aplicação de taxas de juros exorbitantes que sugam até hoje a renda das classes trabalhadoras. Enquanto as rendas do trabalho e da proteção social aumentam, a situação das famílias é sustentável. Entretanto, a recessão abala esse frágil equilíbrio. A partir de 2016, o governo de Michel Temer amplia a política de austeridade fiscal iniciada por Dilma Rousseff. Em seguida, ataca os direitos dos trabalhadores, dos sindicatos e da justiça do trabalho. Contudo, o desemprego continua aumentando. Em 2019, a inflação volta com força e afeta os alimentos básicos como arroz e feijão. Nesse contexto deteriorado, o uso do crédito se intensifica. Ele é utilizado para garantir a sobrevivência material: despesas com alimentação e saúde, contas de luz e questões de moradia. A proporção de famílias endividadas no sistema financeiro aumenta de 44% em janeiro de 2010 para 55% em maio de 2015. E sobe de maneira acelerada durante a pandemia da Covid-19 para atingir 80% em outubro de 2021, segundo a Fecomércio. Assim, a crise se reflete na crescente dependência das famílias da classe trabalhadora em relação aos bancos que registram lucros históricos.[2]
O sufocamento financeiro das classes populares
“Até quando vou pagar?” Esta é a questão que atormenta Maria, viúva de 73 anos. Há quatro anos, o banco desconta um terço da pensão dela para um crédito que fez para ajudar o neto desempregado. “Eu tenho sérios problemas de coluna vertebral e deficiência visual, mas não posso me tratar com o dinheiro que sobra.” Em janeiro de 2020, Linda, aposentada de 75 anos, é mais sarcástica: “No governo de Lula (2003-2010) dava para comprar carne duas vezes por semana. Agora a gente não compra, só vê passar a carne. Nem dá para fazer meio carrinho de compra”. Com seu marido Carlos, Linda pega desde 2015 empréstimos tanto na financeira como no banco. A dívida financeira aumenta com o nascimento dos bisnetos e o acúmulo das contas vencidas de luz e água. Em dezembro de 2019, o peso dos juros pagos pelos aposentados e pensionistas atinge 40% de sua renda. A dívida excede o valor das duas pensões de aposentadoria. Ela obriga os netos a lutar por doações de cesta básica e para reparcelar as dívidas de luz, evitando cortes de energia. Yuri vendeu o carro e a motocicleta dele após a falência do restaurante que tinha com sua esposa. “No sufocamento financeiro há vários anos”, ele se afasta do papel de liderança da comunidade onde mora.
O espectro do “sufocamento financeiro” denunciado por Lula durante a campanha de 2022 já está ancorado na vida cotidiana das famílias da classe trabalhadora. Ele afeta particularmente as aposentadas e as viúvas que comprometem suas aposentadorias e/ou pensões e seu acesso ao crédito para ajudar seus filhos e netos desempregados. Como Maria e Linda, uma figura central emerge da crise: a avó endividada, que sacrifica sua saúde para proteger sua família e permanecer confiável para o sistema financeiro, conforme analisa Isabelle Guérin em The indebted woman (Stanford University, 2023). Os esforços dessas mulheres para pagar causam estresse, insônia e muita ansiedade. A impossibilidade de pagamento leva à depressão, pois a perda do acesso ao crédito estigmatiza e complica a vida cotidiana. Destacar os efeitos psicológicos da dívida está se tornando parte do debate público[3]. A Federação Brasileira de Bancos (Febraban) apoia o estabelecimento de um “Índice Nacional de Saúde Financeira Brasileira” em 2021. As instituições que oferecem o antidoto são as mesmas que injetam o veneno, os juros abusivos.
Nas classes populares, a explosão das dívidas provoca tanto a ampliação das solidariedades intergeracionais como a agudização das tensões. A perda do acesso ao crédito leva à proliferação de circuitos informais de cartões de crédito. Assim, as pessoas “no SPC” podem continuar a consumir e pegar empréstimo, utilizando o cartão ou o nome de um parente, de uma amiga ou de um vizinho. Mas esta situação leva a um alto nível de dependência. “Quando alguém não paga, toda a cadeia pode quebrar”, diz Maria, uma auxiliar de limpeza. Tal risco impõe a todos um nível extra de desconfiança e uma forte disciplina. Nas favelas onde morei, na cidade de Vitoria, observei um processo comum de responsabilização individual por meio da dívida. Cada morador tem um exemplo de um amigo ou um parente que “sujou o nome” por conta de outra pessoa. Apesar da diversidade de causas, há uma explicação comum: o não pagamento de uma dívida é causado pela falta de vontade e pela falta de trabalho pesado. Isso provoca rancor e afastamentos de certos amigos ou parentes. De acordo com o sociólogo Gabriel Feltran, “as dívidas fazem a triagem do bom e do mau pagador, do trabalhador e do vagabundo”. Essa observação ressoa na retórica de Jair Bolsonaro, que classifica os pobres em duas categorias: o “cidadão de bem” e o “bandido”. A estigmatização dos “maus pagadores” legitima essa divisão. Valores como a responsabilidade individual, o senso de família e o esforço são consolidados por meio da culpabilização dos “maus pagadores”. Na ausência de proteção estatal, a autodisciplina é a única forma de lidar com a dívida. Na vida cotidiana, o endividamento é experimentado menos como exploração financeira do que como um problema moral. A responsabilidade pelas dívidas altas não pagas é colocada não nos interesses abusivos cobrados pelos bancos, mas na falta de virtude de seus parentes ou de seus vizinhos. Ao aguçar os ressentimentos, essa culpabilização dos pobres pela dívida contribui para a disseminação de ideologias autoritárias. Ela distorce os laços sociais e enfraquece a coesão nas classes populares. Os moradores se retiram para a esfera familiar, esvaziando as praças comunitárias e as esferas públicas. Essas mudanças se refletiram de maneira significativa no processo eleitoral: em 2018, Bolsonaro ganhou nas favelas de Vitória: em 2022, ele empatou com Lula enquanto as pesquisas davam o candidato do PT com um avanço significativo nos bairros populares. Embora Lula esteja resistindo, o bloco de esquerda, formado em 2006, está desmoronando.
O que era a força da esquerda brasileira virou seu calcanhar de Aquiles. A política de crédito gerou adiantamentos materiais e abriu esperanças de ascensão social. Porém, a desregulamentação das taxas de juros criou as condições para o superendividamento. O excesso de dívidas está agora impedindo o consumo em massa e a cidadania prometida pelo Estado. A responsabilidade da esquerda pela crise financeira e política do país é, portanto, imensa. Sua estratégia de democratização via consumo provou ser ilusória a partir do momento em que o Estado estendeu o controle do capital financeiro nas periferias. O caminho previsto pelo PT durante a campanha presidencial limitou-se a aliviar os sintomas do problema: o superendividamento. O novo governo planeja criar um sistema de garantias públicas pelo Estado e reparcelar as dívidas sem cancelar seus montantes excessivos por causa dos juros abusivos. Mesmo que as margens de manobra sejam estreitas, o retorno de Lula abre um espaço de possibilidade para politizar a questão do endividamento.
Nas últimas semanas, a estratégia de pressionar o Banco Central para diminuir a taxa Selic encontrou o forte apoio da população. Lula insistiu, com razão, para pressionar o Banco Central. E conseguiu certos avanços como a redução da taxa de juros aplicada ao consignado[4]. Contudo, não basta uma negociação conjuntural sobre um tipo de crédito para limitar o sufocamento financeiro das classes populares. Sim, é preciso regulamentar, por lei, as taxas de juros de todas as formas de créditos. Enquanto não tiver uma limitação do poder do setor financeiro, as classes populares continuarão a pagar mais de 700% de taxas de juros (anuais) para Crefisa, de 200% para o BMG ou 120% para o Bradesco.
Timothée Narring, etnógrafo e sociólogo (Universidade Paris Cité, Cessma), é autor da tese de Sociologia: “Os enlaces da dívida. Uma etnografia do endividamento das classes populares de Vitória, dentro e além das favelas de Vitória”. Este artigo se baseia em uma experiência de campo de catorze meses em três favelas de Vitória, entre 2016 e 2021.
A revisão da tradução deste artigo foi feita por Renata Freitas Machado, a quem o autor agradece muito.
[1] Grün R. Decifra-me ou te devoro! As finanças e a sociedade brasileira. Mana. 13 out. 2007.
[2] Em 2015, eles cobraram R$ 800 bilhões de juros, o equivalente a 28,4% de todos os empréstimos domésticos pendentes e 15,4% do PIB (Banco Central do Brasil, 2015). No primeiro semestre de 2021, as famílias brasileiras estão pagando R$ 233,5 bilhões em juros, o equivalente a 73% da ajuda emergencial injetada pelo Estado em todo o ano de 2020. Em meio à pandemia da Covid-19, os bancos capturam quase 12% da renda das famílias, ou 6% do PIB em um período de seis meses (Fecocomercio, 2021).
[3] Fernandes, V., 2019. Cuidando Da Saúde Financeira: Uma Etnografia Sobre Endividamento (Tese de Doutorado). Universidade Federal de Rio de Janeiro – Museu Nacional, Rio de Janeiro.
[4] O juro do empréstimo consignado deveria ser reduzido de 2,14% a 1,97% ao mes.