A esquerda governa El Salvador?
Vencedor das primárias organizadas pela oposição venezuelana em fevereiro, Henrique Capriles será candidato nas eleições presidenciais de outubro. Para seduzir os eleitores de esquerda, ele promete imitar o “modelo brasileiro”. Um discurso que lembra muito o de Mauricio Funes, eleito presidente de El Salvador em 2009Hernando Calvo Ospina
(Antigos guerrileiros da FMLN celebram aniversário dos acordos de paz)
O porto de Acajutla, na costa do Pacífico, 85 quilômetros a sudoeste da capital, San Salvador, se encontra a usina de estocagem de combustíveis Schafik Hándal, batizada com o nome do dirigente histórico e antigo comandante da guerrilha salvadorenha, a Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN). Em 2006, umas vinte comunas dirigidas por prefeitos do FMLN, que se tornou um partido político no fim do conflito armado dos anos 1980, uniram seus capitais e se associaram à companhia petroleira do Estado venezuelano, Petróleos de Venezuela SA (PDVSA). Trata-se do primeiro acordo de cooperação energética não firmado entre Estados. A instalação é a maior da América Central: ela poderá fornecer combustíveis e lubrificantes mais baratos aos outros países da região, para grande descontentamento das empresas petroleiras norte-americanas. Um detalhe: quando da inauguração da usina, em 19 de maio de 2011, o presidente Mauricio Funes, eleito à frente da FMLN, chamou a atenção por estar ausente.
Ao cabo de doze anos de guerra revolucionária, e em virtude dos acordos de paz de 1992, a FMLN desmantelou sua estrutura militar. Reconhecida como partido, fixou então um primeiro objetivo: as eleições legislativas de 1994. Mas, enquanto para diretores e militantes falta tempo (mas também experiência e dinheiro) para se organizar, a direita agita o slogan “Pátria, sim, comunismo não! El Salvador será o túmulo dos vermelhos”. No pleito, a direita dura da Aliança Republicana Nacionalista (Arena) ganha, mas a FMLN se torna, com 21 deputados, a segunda maior força política do país.
O principal desafio se apresenta em 2004, com a eleição presidencial, para a qual se candidata Schafik Hándal. A campanha midiática orquestrada contra ele o conduzirá à derrota. Washington esquece a discrição: se Hándal for eleito, anuncia, os 600 mil salvadorenhos com status de residentes provisórios correm o risco de serem expulsos do território norte-americano. Pânico do eleitorado: como vão sobreviver 70% das famílias salvadorenhas sem esses envios de fundos mensais que representam 16% do Produto Interno Bruto (PIB)? E onde vão trabalhar os expulsos de volta ao país, sendo que a taxa de desemprego já atinge 8%, e a do emprego precário 40%, principalmente entre os jovens? Num oceano de ambiguidades e mentiras, Antonio Saca (Arena) ganhou com folga.
Da CNN à Presidência
Em janeiro de 2009, a FMLN se torna, dessa vez, a maior força política do país, com 35 dos 84 deputados que ocupam a Assembleia. Só resta ganhar o voto presidencial do mês de março seguinte. Mas, com a morte de Hándal, em janeiro de 2006, o partido perdeu seu candidato carismático. Apela então para um jornalista vedete da televisão, antigo correspondente do canal Cable News Network (CNN) em espanhol, Mauricio Funes. Mesmo sem ser um militante, ele critica a gestão neoliberal da direita. Quatro dias antes das eleições, durante uma sessão do Congresso Norte-Americano, os republicanos Dana Rohrabacher e Cornelius Harvey McGillicuddy IV (“Connie Mack”)advertem: “Se a FMLN ganhar no próximo domingo, El Salvador se tornará rapidamente um satélite da Venezuela, da Rússia e talvez do Irã.”1 No dia 15 de março, a Frente ganha, apesar de tudo, com 51,3% dos votos. No dia 1º de junho, começa governo. Mas a situação já começava a ficar complicada entre Funes e “seu” partido. Durante a campanha eleitoral, o candidato se cercou de um grupo de conselheiros “pragmáticos” – os “amigos de Mauricio” – que não pertenciam à FMLN. Enquanto o vice-presidente Salvador Sánchez Cerén, um antigo comandante guerrilheiro, declara, durante uma visita a Cuba, que o governo poderia pensar em se unir à Alternativa Bolivariana para os Povos de Nossa América (Alba), o chefe de Estado se apressa em excluir essa hipótese: “Ao menos sob o meu governo e durante o meu mandato, nós não faremos parte dela.”2 Sim, ele restabeleceu as relações diplomáticas com Cuba, rompidas cinquenta anos atrás; mas a proximidade política continua fraca. Por outro lado, dez dias depois de ter sido acolhido em Washington por Barack Obama, no dia 8 de março de 2010, ele se apressará em reconhecer o presidente hondurenho Porfirio Lobo, vindo de eleições ilegítimas organizadas pelos golpistas que tinham expulsado Manuel Zelaya.3
“Teias de aranha ideológicas”
El Salvador é o único país latino-americano que enviou tropas ao Iraque, de 2003 a 2008, a pedido de Washington – o que Funes, então jornalista, criticava duramente. Agora, é ele quem os envia ao Afeganistão. O presidente começou fingindo que resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) de outubro de 2010 impunha isso a ele. Quando o WikiLeaks revelou que ele tomou essa decisão três meses depois da sua entrada no governo, Funes admitiu que foi a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton que lhe pediu isso: “É uma aliança estratégica que nós temos com os Estados Unidos, e colaboramos mutuamente.”4
Que, no plano social, ele tenha governado o país melhor do que a direita em vinte anos, ninguém pode negar. Mas uma “colaboração” tão estreita com a administração norte-americana provocou a demissão de Manuel Melgar, dirigente do FMLN e ministro da Segurança Pública. Funes replicou que “alguns setores da esquerda não evoluíram o suficiente e vivem em teias de aranha ideológicas”.5 Alguns dias depois, em 24 de novembro de 2011, ele teve, no entanto, que reconhecer que Melgar não era apreciado por “certos setores políticos” de Washington.
Funes é, com a costarriquense Laura Chinchilla, um dos dois chefes de Estado da região que, nos dias 2 e 3 de dezembro de 2011, não participaram do primeiro encontro da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e do Caribe (Celac), o qual pretende administrar os negócios continentais… sem os Estados Unidos (e o Canadá).6
Hernando Calvo Ospina é jornalista.