A esquerda se tornou liberal
Sejam quais forem as diferenças entre uma centro-esquerda moderna, a terceira via e um socialismo liberal, o que sobra é um socialismo renovado que se diz igualitário, que não pretende erradicar todas as desigualdades e que exige o reconhecimento do caráter potencialmente benéfico de um mercado regulamentado
A questão não é nova, mas cada vez mais candente. As promessas de Liberdade-Igualdade-Fraternidade anunciadas pela República apontavam para um mundo compartilhado, e não se cumpriram. Como fazer para que esses compromissos não sejam apenas enunciados formalmente, como direitos, mas tornem-se dados concretos, efetivos?
Evidentemente, é no domínio da “igualdade” que o descumprimento é mais flagrante, traduzindo-se tanto em diferenças gritantes de renda quanto na famosa “pane” do elevador social, ou, ainda, na crescente vulnerabilidade dos mais pobres que se convencionou chamar de “acidentes da vida”, advindas do desemprego, das doenças, entre outros…
Da mesma forma, a “liberdade” só tem sentido completo quando se pode escolher uma profissão, ou o lugar onde se quer morar. Todos livres e iguais, mas, claro, uns mais que outros…
A missão tradicional da “esquerda” é buscar atenuar as disparidades. Mas depois da chamada “queda do comunismo”, as referências se relativizaram. Segundo alguns analistas, teríamos entrado então numa era radicalmente nova, marcada pelo famoso fim das ideologias, ou, na verdade, pelo fim da História1. Ainda que essa afirmação pareça um tanto arrogante, seria necessário, ao menos, reconhecer a morte da “utopia” comunista e o triunfo do bom senso e, com mais ou menos entusiasmo, aceitar que a economia de mercado e a democracia são intrinsecamente ligadas.
A partir daí, tudo se torna mais simplificado e mais complicado ao mesmo tempo. Simplificado porque tal ideia consagra o “mercado” como um dado natural e julga qualquer “revolução” destinada a inventar outra economia como um equívoco, tanto no plano das liberdades quanto no da eficácia – e a prova seriam os países do Leste Europeu. E complicado porque com os dois “extremos” legitimadamente desqualificados, a esquerda – de Anthony Blair a Lionel Jospin – tornou-se “realista” e Pascal Lamy, membro do Partido Socialista (PS), foi promovido a responsável da Organização Mundial do Comércio (OMC).
A realidade, nesse contexto, permanece preocupante. As desigualdades crescem e os questionamentos se fazem urgentes, por vezes desoladores. Com a revolução excluída e a “modernidade” aceita, como fazer para que a democracia, o governo do “povo para o povo”, funcione, sob o regime do mercado?
Certamente, os valores da esquerda diferem dos da direita, mas qual ideal, qual projeto para o mundo pode se afirmar sobre a marca do realismo? Não há, por definição – e ousemos dizê-lo –, contradições a nomear e resolver?
Esse enorme problema gera enormes expectativas. E diz respeito não apenas aos eleitores de espírito dito socialista, mas provavelmente a todos os cidadãos inquietos, desejosos de compreender se as mazelas sociais são uma fatalidade, se o futuro tem apenas uma cara, com diferentes maquiagens, ou se uma mudança de fato é possível… Em suma, trata-se de questionar o pensamento da esquerda, que se tornou liberal.
O debate no âmbito desse socialismo modernizado procura responder se é a inscrição concreta de valores éticos no mundo real que, essencialmente, permitiria a concretização das promessas da democracia. Trata-se de uma concepção particular de igualdade e dos meios de alcançá-la. Propõe-se outra visão de homem.
Talvez não seja completamente inútil procurar definir com mais exatidão a “esquerda liberal”, já que, às vezes, ela parece sofrer de falta de unidade.
O filósofo Serge Audier, conhecido por seus ensaios consagrados a Raymond Aron, lembra, no breve volume2 no qual retoma a genealogia do socialismo liberal, que este foi fundado sobre uma dupla recusa: a do liberalismo “burguês” e a do “totalitarismo comunista”. Se a rejeição do “totalitarismo comunista” é certa, a do liberalismo “burguês” é mais fluida.
Sejam quais forem as diferenças entre uma centro-esquerda “moderna”, a terceira via do “New Labour”, e um socialismo liberal, que não seria uma “simples adaptação da social-democracia ao capitalismo”, o que sobra é um socialismo renovado que se diz “igualitário” e não “igualitarista”, que não pretende erradicar todas as desigualdades (naturais e sociais) e que “exige o reconhecimento do caráter irrefutável e potencialmente benéfico de um mercado regulamentado e correto”. Trata-se de por em prática, na lógica da eficácia econômica, uma “busca pela igualdade”, que se traduz em primeiro lugar pela exigência de “solidariedade”.
É exatamente esse ponto que caracteriza o socialismo liberal, sejam quais forem as nuances e divergências reivindicadas por cada corrente. O importante é renunciar ao igualitarismo – que visaria igualdade civil, política e social – e agir por uma “filosofia dos direitos do homem”, complementada pelos direitos sociais que reconhecem “a todos os indivíduos um mínimo de justiça social, condição de uma liberdade política efetiva”. Assim, adeus utopia e bem-vinda a lucidez: os homens não são, não podem ser, realmente iguais. Seria conveniente, no entanto, criar instrumentos que impeçam níveis gritantes de desigualdade, o que não seria frutífero nem para a democracia, nem para… o mercado. E a solidariedade está no núcleo desses dispositivos.
Essa noção de solidariedade pertence ao domínio da filosofia política e moral e foi introduzida em 1840 por Pierre Leroux, um dos fundadores do socialismo republicano. Ele a explica de maneira clara: “quis substituir a caridade cristã pela solidariedade humana3”. Léon Bourgeois, um dos fundadores da Liga das Nações, prolongou essa reflexão sobre a “necessidade moral” da solidariedade como dever4 até o fim do século XIX. É uma noção que, além de substituir a ideia de justiça social, possui o charme da virtude fluida, já que dependeria de cada um, em seu espírito e consciência, muito mais do que da autoridade das leis.
Apoio aos “desfavorecidos”
A “solidariedade” permitiria a moralização do capitalismo brutal ao introduzir, no interior do próprio sistema, a “possibilidade” de suavizar suas agruras. É a consciência dolorosa da inevitabilidade da desigualdade entre indivíduos que induz à busca de uma conciliação entre eficácia econômica e apoio aos “desfavorecidos”.
Essa concepção de desigualdade é central. E se articula perfeitamente com a própria ideologia do capitalismo, que supõe que o melhor ganhe, que o mais trabalhador ou o mais inteligente faz a diferença e sabe abrir seu caminho, contribuindo para a democracia. O sucesso vem para aqueles que merecem, e os mais belos dis
cursos igualitaristas não impedem que alguns sejam mais talentosos para subir na escala social.
Monique Canto-Sperber, diretora do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS), afirma que se a precariedade aumentou, “as oportunidades para os talentos e iniciativas” também aumentaram entre aqueles que sabem agarrar as oportunidades. O intervalo logicamente vai se aprofundar. Será assim, pois que não temos todos as mesmas capacidades.
Seria preciso, portanto, acabar com os “mitos”, que serviram para alimentar o “terrível espetáculo” do socialismo “real”. E mais: seria preciso reconhecer que se “é possível exercer uma influência sobre o homem, não se pode modificá-lo”.
Nada de inocência à Rousseau, de que o homem é bom por natureza. O mal existe e é precisamente “no reconhecimento do mal e do conflito” que o liberalismo se desenvolveu – e o liberalismo de esquerda deveria levar isso em conta.
As diferenças de ânimo, de vontade, de competência, criam o conflito, a luta, a hierarquia. É por essa razão que “é ilegítimo se servir de categorias morais, como, por exemplo, o predicado ‘justo’ para qualificar fenômenos tão complexos como a divisão das riquezas, cuja produção resulta de uma variedade de ações voluntárias cruzadas”.
O liberalismo de esquerda trabalhará, dessa forma, por um “liberalismo solidário e trágico”. O “trágico” refere-se aqui à aceitação vigilante da constatação do mal inscrito potencialmente na natureza do homem.
É exatamente em torno dessa definição que tudo se organiza. O mercado é indissociável do homem e refutá-lo seria recusar “a complexidade, a saber, a ambivalência do real”, que é fundamentalmente desigual.
Uma sociedade solidária deve ter como objetivos reduzir “situações de dominação” e preservar “a riqueza da vida humana – a preocupação com o bem comum, a família, a espiritualidade, o saber, a criação, a tradição, a força irredutível do mal e uma visão humanista”.
Para alcançá-los, as “regulações”, os “acompanhamentos sociais” deveriam buscar superar “o pluralismo irredutível de interesses e opiniões”. “As pessoas afetadas por uma ruptura no trabalho” poderiam, assim, ter a “segurança de estarem protegidas da miséria e de que encontrarão soluções para voltar ao trabalho”, sem que sejam impedidas as demissões – o que garantiria o crescimento em longo prazo.
De fato, seria importante preservar o mercado e, ao mesmo tempo, permitir que cada um continue a participar, pois é “a condição não somente do enriquecimento, mas também da autocrítica e do aperfeiçoamento do ser”. Com um mercado correto – ferramenta para a liberdade e não um instrumento de dominação – todos teriam a chance de buscar autonomia e “pleitear um projeto de vida”. O liberalismo de esquerda, apresentado de maneira equivocada como muito diferente do neoliberalismo, garante as “funções protetoras de base” e permite “às pessoas retomar a iniciativa, ou ao menos encontrar um sentido para a vida”. Na medida em que o coeficiente intelectual de cada um permita…
Lembremos ainda que Raymond Aron, cujo pensamento não está longe de Audier ou Canto-Sperber, já buscava uma conciliação entre o socialismo e a tradição liberal “sem ilusão, mas não sem vontade5”.
Essa aproximação parece se manifestar com uma clareza particular no governo de Nicolas Sarkozy. Além da crucial “solidariedade”, se a questão social está diluída e sai do campo da decisão política para passar ao da boa consciência compartilhada, é a ideia de “povo” que, de maneira furtiva, muda de definição.
A partir de uma escala de valores que toma como referência a do liberalismo econômico, a lei dos grandes números não saberá ser automaticamente justa se nada puder garantir que esse maior número saiba pensar de maneira justa. Dito de outra forma, é preciso se voltar à noção de “povo” e seu uso.
Massa Homogênea ou Conjunto Plural
Quando, em La légitimité démocratique6 [A legitimidade democrática], o historiador Pierre Rosanvallon interroga a validade do sufrágio universal como única fonte de poder democrático, ele não se apoia na desigualdade das capacidades naturais, mas nas diferenças entre os indivíduos. Segundo ele, fazer com que o maior número valha para a totalidade é uma “ficção fundadora”, na qual o “povo” é considerado representante do conjunto da sociedade.
De acordo com Rosanvallon, os cidadãos têm cada vez mais consciência de serem insuficientemente representados, o que se comprova pelas taxas elevadas de abstenção. “A ideia de maioria tem um sentido aritmético, mas não corresponde a nada de ordem antropológica”. Para que a democracia volte a ter importância, seria conveniente dar-lhe legitimidade: o povo não se apresentaria mais como uma massa homogênea, mas “como uma sucessão de histórias particulares”. O povo se tornaria o conjunto “plural das ‘minorias’”, e, pela preocupação de indivíduos concretos, seria possível implementar “a constituição de um poder da sociedade em geral”. Para acompanhar o “novo mundo” é preciso, de acordo com o autor, levar em conta os novos valores que dão sentido ao ideal de democracia e pensar em meios que os efetivem.
A equidade necessitaria de instituições das quais ninguém poderia se apropriar, pluralização das expressões da soberania popular, escuta ativa da multiplicidade de situações pelo reconhecimento das singularidades. Essas instituições estariam a cargo de “denunciar o intervalo entre a realidade e os princípios fundadores da democracia”.
Para Rosanvallon, uma “sociedade de imparcialidade radical” abriria espaço para os valores caros ao novo cidadão: compaixão, proximidade, transparência etc. As instituições seriam reguladas por agências cidadãs, espécies de conselhos de orientação. Esse povo, assim, não seria mais apenas população eleitoral, reduzida a uma maioria, nem somente povo social, “soma de protestos e iniciativas”, mas também povo-princípio, no qual “cada um quer ser considerado em sua existência e dignidade”.
Nesse contexto, a democracia é enfim “moral”: a maioria não faz mais a lei. Passou-se da aplicação mecânica do estatuto à escuta do indivíduo, “o exercício dos direitos se torna indis
sociável da apreciação dos comportamentos”, a aplicação da regra inumana porque mecânica está ultrapassada, a noção de povo se amplia para povo-humanidade, para que advenha, graças às instancias de “deliberação racional”, confiadas aos conhecedores e esclarecidos, a possibilidade de “afirmação positiva do ser”.
Tal ideal político não está longe daquele proposto pelo Tratado Constitucional Europeu e acompanha certo discurso difundido, próprio de um liberalismo atento a se humanizar e que se diz arauto e defensor de uma “sociedade da particularidade”, assim como de uma “economia da particularidade”.
Mas a proposta, com todas as bases delineadas por Rosanvallon, não tem uma inclinação… aristocrática? Oh, certamente essa aristocracia não se justificaria a não ser por seu esclarecimento e mérito e interviria apenas no contexto da democracia representativa. No entanto, e sem se deter sobre algumas afirmações surpreendentes – como, por exemplo, a de que o voto seria determinado por “atrações e repulsões” – somos obrigados a observar que esses diferentes contrapoderes, para tentar “aprofundar” a democracia, pretendem simplesmente limitar o sufrágio universal, o poder de voto de cada eleitor, esclarecido ou não…
No mesmo estado de espírito, em La Reine du Monde7 [A rainha do mundo], o historiador e jornalista Jacques Julliard, diretor da redação do Nouvel Observateur e da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), examina, após a comoção criada pelo resultado do referendo europeu, como contrariar “essa piedosa mentira que chamamos sistema representativo” e a “trapaça” do sufrágio universal. Ele questiona, assim, o poder da opinião pública que permite não deixar ao parlamento a função legisladora e destruir o monopólio da vontade geral, considerada “totalitária”.
A opinião é a voz do povo, e é em geral uma potência moral, que leva, por exemplo, à criação de um tribunal penal internacional, uma dessas instâncias independentes, caras a Rosanvallon. Mas opinião e sufrágio universal não se opõem. “Sondagens, eleições, referendos, debates coletivos são modalidades diferentes de expressão de um mesmo fenômeno: a opinião pública”.
O futuro da democracia repousa, assim, sobre uma cooperação entre o sistema parlamentar e o sistema de opinião pública – com a condição de educar este último. Ora, “não há outro educador para o povo que não ele mesmo, à luz da razão e da experiência histórica, do estímulo de seus chefes. É, então, da coragem de homens políticos que procede a sabedoria do povo”. O povo precisa de um “líder democrático” que “o leve a querer aquilo que é de seu interesse superior”. Não poderia ser mais claro.
Assim, de modo mais ou menos preciso, a vontade de democratizar a democracia – o que implica tratar de igualdade, em suas diferentes acepções – leva ao pensamento liberal social. Do mesmo modo, faz com que a política deslize para o campo da moral. E substitua mais ou menos parcialmente as elites pelo “povo” − mas resiste, claro, a colocá-lo no controle. Da lei ao contrato, do coletivo ao particular, da escolha ao consenso, do voto ao diálogo, é esse movimento que vai caracterizar o “novo indivíduo democrático”.
É perturbador observar até que ponto essas modificações do ideal de “cidadão” correspondem ao novo “look” de um capitalismo de rosto humano. Podemos nos perguntar, assim, se se trata de modernidade ou de dar passos para trás no caminho da virtude, inteligentemente fantasiados de progresso.
*Evelyne Pieiller é jornalista.