Situada a uma mesma distância de Seul, Xangai e do arquipélago do Japão, a pequena ilha sul-coreana de Jeju soube preservar sua cultura ancestral, principalmente ao continuar celebrando o espírito dos defuntos em rituais xamânicos cotidianos. Com suas falésias de rocha vulcânica erguendo-se como fortalezas sobre as águas cintilantes do mar da China Oriental, seu lago formado em uma cratera e sua rede de galerias de lava, a ilha foi inscrita na lista do patrimônio mundial da Unesco1, em 2007. Suas lagunas não atraem somente os turistas. Provocam também a ambição da indústria de armamento, que considera sua localização ideal para ali implantar uma base de lançamento de mísseis. Apesar dos protestos de seus habitantes, Jeju poderá conhecer, em breve, a mesma sorte da ilha japonesa de Okinawa.
Na península, as opiniões estão divididas. O desenvolvimento da indústria de defesa entra em choque com a emergência de uma “sociedade civil” madura. O país pode se orgulhar de suas universidades de primeira linha, do desempenho de seu sistema de saúde, de uma imprensa de opinião e, há alguns anos, da participação política dos cidadãos na vida pública. Vários eventos recentes, no entanto, levam-nos a temer um retorno aos antigos métodos autoritários e à uma regressão das liberdades individuais. Um exemplo disso seriam as represálias contra aqueles que criticaram a versão oficial do naufrágio da corveta Cheonan2, em março último, onde o governo é acusado de usar o pretexto do incidente para incriminar a República Popular Democrática da Coreia e preparar a guerra.
Outro ator das célebres batalhas navais nos mares azuis do Pacífico, o Japão também hesita entre o desenvolvimento econômico sustentável e as despesas militares. A redução dos custos colossais relacionados à manutenção das bases militares nos arredores dos principais centros urbanos, a busca de relações bilaterais com a China fora da órbita dos Estados Unidos e a construção de uma comunidade econômica asiática baseada no livre comércio figuravam entre as promessas de campanha que levaram ao poder o Partido Democrático do Japão (PDJ) nas eleições legislativas de setembro de 2009. Embora o PDJ não tenha vencido sua aposta de desalojar a base aérea estadunidense da zona de Okinawa, a reviravolta política do Japão, não deixa de aumentar os trunfos da Coreia do Sul aos olhos do complexo militar industrial dos EUA.
Mudança de atitude
Desde sua posse em 2008, o presidente Lee Myung-bak multiplicou os sinais de abertura em relação aos estadunidenses – uma verdadeira reviravolta no que diz respeito à política conduzida por seus dois antecessores liberais. Pouco após sua ascensão, denunciou os compromissos bilaterais com a Coreia do Norte – no quadro dos esforços de reconciliação implantados pelo presidente Kim Dae Jung, a popular Sunshine policy – e suprimiu a reforma de liberalização das mídias empreendida por seu predecessor imediato, o presidente Roh Moo-hyun.
Apenas algumas semanas após assumir suas funções, ele se encontrou com o presidente George W. Bush, em Camp David, para uma entrevista sobre a suspensão do embargo à carne americana3, ressaltando o novo papel da Coreia na região. A Hyundai dispôs-se a lançar um protótipo de destroier equipado com mísseis antibalísticos e sistemas de sonares, concebidos pela firma americana Lockheed-Martin. Um segundo navio deverá ser entregue, ainda em 2010, para uma frota que chegará a seis embarcações. Desse modo, e enquanto as provocações em relação à China se multiplicam (a ponto de serem percebidas por alguns observadores como a marca principal da política externa de Lee Myung-bak), os navios coreanos logo virão reforçar a resposta dos Estados Unidos à dominação dos chineses sobre o controle dos corredores marítimos do Pacífico ocidental.
A missão da marinha coreana limita-se, por hora, a proteger suas águas territoriais de seu vizinho do Norte, mas, quando os seis destroieres Hyundai-Lockheed forem armados, a Coreia, a exemplo do Japão, será um trunfo essencial da política estadunidense em relação a Pequim. A nova frota sul-coreana deverá ser exibida na ilha de Jeju, ao lado de navios com a bandeira dos Estados Unidos, em 2014.
O tenente-coronel Dai Xu, da aeronáutica chinesa, qualifica a exibição dos antimísseis balísticos (ABM) dos Estados Unidos e seus aliados na região, de “cerco em meia-lua” da China pelo Japão, Coreia e Índia. Se a marinha convencional chinesa conserva seu domínio, ela não tem respostas ao reforço da frota estadunidense em sua periferia imediata. Os conglomerados industriais Hyundai e Lockheed-Martin, de fato, anunciaram, em 2009, que sua parceria seria estendida após a entrega da encomenda da marinha coreana, a fim de equipar a Índia com navios similares. Apesar de suas ambições declaradas, os parceiros comerciais encontram dificuldades em achar um porto para a base naval coreana.
Em 2002 e 2007 (sob os presidentes Kim e Roh), confrontado à hostilidade das populações locais, Seul por duas vezes voltou atrás sobre seu projeto na ilha de Jeju. O presidente Lee parece determinado a instalar, custe o que custar, a base no último local possível, a pequena vila de pescadores de Gangjeong. Embora o prefeito afirme que 94% de seus cidadãos se pronunciaram contra o projeto, o ministro da Defesa ordenou o desmatamento do sítio e a securitização do perímetro. A mensagem é clara: a nova administração não submeterá sua política externa às vontades das populações locais.
Os habitantes de Gangjeong, que tiram o essencial de sua renda da agricultura, da pesca e do turismo, recusam-se a sofrer danos similares aos constatados no Havaí, em Guam, nas Filipinas e no Japão: a destruição das zonas de pesca, a diminuição do turismo, os problemas sociais relacionados à presença de militares e o abandono de resíduos tóxicos. O maior temor expresso pela população é o de ver Jeju se tornar uma Okinawa coreana. O tribunal regional, que havia recebido a queixa apresentada pelos habitantes de Gangjeong contra a base naval para viabilizar economicamente a ilha, adiou o julgamento sine die, algum tempo depois do naufrágio da corveta Cheonan.
Imediatamente após o incidente, o ministro da Defesa e o chefe dos serviços de informação haviam declarado não dispor de nenhuma prova da implicação da Coreia do Norte. Em um segundo momento, os investigadores coreanos e estrangeiros afirmavam que Pyongyang era diretamente responsável pelo ataque ao navio.
A partir desse momento, Lee Myung-bak acusou a República Popular e Democrática da Coreia de ato terrorista. Uma acusação recheada de ameaças de represália. E a secretária de Estado americana, Hilary Clinton, também afirmava ter “provas incontestáveis” da culpabilidade de Pyongyang. Alguns dias mais tarde, o Pentágono anunciava o envio de um porta-aviões para águas coreanas, e a marinha sul-coreana organizava um exercício militar antissubmarinos no local do naufrágio.
Foi apenas uma semana antes das eleições regionais do mês de junho que a retórica governamental se tornou belicosa. Os coreanos não gostaram muito disso, expressando imediatamente seu repúdio ao votar maciçamente contra o partido de Lee na região principal.
Longe de renunciar, o presidente ordenou incursões da polícia em várias organizações do movimento social e também a prisão de pessoas que colocaram em dúvida a última versão oficial do naufrágio do Cheonan. Em uma atmosfera geral de alerta pela Segurança Nacional, os habitantes de Jeju começaram a perder as esperanças. Em Pequim, em contrapartida, não esperaram o julgamento do tribunal regional para agir.
A multiplicação das intrusões da marinha chinesa em águas territoriais de seus vizinhos e a perseguição que ela iniciou contra as operações estadunidenses de informação em águas internacionais do Sul e do Leste, não deixam nenhuma dúvida sobre sua supremacia no Pacífico ocidental. O secretário de Estado adjunto da administração Barack Obama, Adam Steinberg, assegurou recentemente à China que os Estados Unidos não interfeririam em seus interesses regionais, em troca da promessa de que o predomínio chinês permanecesse sereno. Entretanto, o posicionamento de novos mísseis estadunidenses na região e as tentativas de implantação de uma base naval em Jeju mandaram outra mensagem.
Ao lado do pentágono
Embora os mísseis antibalísticos não tenham capacidade nuclear, a força de dissuasão nuclear chinesa, relativamente fraca, encontra-se mais frágil a cada destroier Hyundai-Lockheed lançado na água. Além disso, a integração das indústrias japonesa e coreana ao “programa de defesa” do Pentágono leva a ligações políticas pouco compatíveis com uma aproximação sino-japonesa ou sino-coreana.
Dissociar venda de armas e projeto político não está na tradição estadunidense. Em razão de suas declarações belicistas, depois do naufrágio da corveta Cheonan, e do endurecimento do regime de Seul, Hillary Clinton foi qualificada de “senadora do Lockheed” pela New York Magazine, numa clara referência às ligações estreitas da secretária de Estado com a firma. Durante a campanha presidencial de 2008, Hillary foi a primeira a receber fundos de auxílio concedidos aos candidatos, tanto republicanos como democratas, pelos construtores de mísseis.
Os repetidos esforços do presidente coreano Lee Myung-bak para implantar uma base naval visando abrigar os destroieres construídos pelo grupo Hyundai – do qual ele foi diretor-geral até 1992 – também levantam dúvidas. O presidente da comissão coreana de luta contra a corrupção declarou que nem esta instância, nem a Assembleia Nacional haviam investigado as ligações entre o patrimônio e os interesses financeiros de Lee e dos membros de seu governo e os contratos da Lockheed-Hyundai.
Enquanto a China reforça sua marinha e Washington arma as potências regionais vizinhas, multiplicando, ao mesmo tempo, as manobras nas águas do Pacífico ocidental, na península coreana, a opinião pública hesita em expressar sua desaprovação.
Em 2008, o presidente Lee havia recorrido às forças da ordem para dispersar a manifestação política contra as importações de carne estadunidense. Ordenou, então, que fosse fechada a praça da prefeitura de Seul, local tradicional de protestos. Questionar ali o governo, agora, pode significar ser alvo de perseguições.
Após a decisão de Obama de confiar à Coreia a organização do próximo G20, o relator especial das Nações Unidas para a liberdade de opinião e expressão, Frank La Rue, investigou o estado da democracia na Coreia e questionou a “pertinência de dar tal honra a Seul”. Em maio, indicava que os direitos à liberdade de opinião e reunião haviam começado a se deteriorar alguns meses após as eleições de Lee.
Os primeiros sinais de endurecimento do regime apareceram após a difusão, pelo programa televisivo de informação PD Notes, de uma pesquisa sobre a supressão do embargo da carne estadunidense. Os produtores da reportagem tinham, então, sido interpelados em suas casas em plena noite, acabando depois detidos e investigados. Embora as penas requeridas, de dois a três anos de prisão, não tenham sido mantidas, o incidente marca claramente um recuo da independência das mídias. Ho Cheol Shin, repórter da revista de informação semanal Sisan, diz-se “preocupado em ser preso em casa durante a noite”.
Durante os dois anos que durou o processo do PD Notes, o presidente Lee destituiu os diretores da televisão pública coreana e o presidente da comissão nacional das comunicações, para substituí-los por membros de sua família. O novo presidente da comissão fez restrições aos monopólios de imprensa, permitindo aos conservadores a obtenção de licenças de difusões televisivas a cabo.
Desde então, as mídias nacionais mostram certo receio em criticar as decisões governamentais, e as grandes manifestações pacíficas que se seguiram à difusão da investigação do PD Notes não se repetiram, nem após a prisão dos produtores de TV, nem depois das medidas de retaliação tomadas este ano após o acidente da corveta Cheonan.
Menos politizada que a de seus pais, a nova geração reconhece estar preocupada em aproveitar os frutos da prosperidade em um bom emprego e parece pouco inclinada a abraçar a causa da liberdade de opinião.
Os habitantes de Jeju sentem-se sozinhos para continuar a luta. Entretanto, juraram “lutar até a morte” para proteger seu modo de vida. Em 3 de junho, a tentativa do ministro da Defesa de construir andaimes no terreno reservado para a base naval foi perturbada por atos de desobediência civil.
Matthew Reiss é jornalista.