A Europa já aceita a morte digna
Holanda, Bélgica, Suíça, Espanha… Os bons resultados nos países que reconhecem (e regulamentam) a eutanásia contrariam previsões catastrofistas, rompem preconceitos, arrefecem a própria oposição das igrejas. No lugar de um tabu, surge um direitoMaurice T. Maschino
Cada vez mais países europeus reconhecem a seus cidadãos o direito de morrer dignamente. Um reconhecimento que, na maior parte das vezes, se faz sem drama, sem invectivas raivosas, sem previsões catastróficas, como as do professor Bernard Debré [1] na França. Uma parcela cada vez mais ampla dos cidadãos associa-se ao debate — público e divulgado pela mídia.
Os holandeses foram os primeiros na Europa a reconhecer o direito à eutanásia e a modificar, ao mesmo tempo — por enquanto, um caso únicos — seu código penal. A lei de 12 de abril de 2001 não abre caminho à arbitrariedade. Estipula, em seu artigo 293, que “a ação de pôr fim à vida de outrem não é passível de pena na medida em que for realizada por um médico que satisfaça os critérios de minúcia mencionados no artigo 2 (…) e que comunique ao médico legista do município”.
Esses “critérios de minúcia” são seis. Considera-se que foram respeitados quando o médico “adquiriu a convicção de que o paciente formulou seu pedido livremente, (…) que seus sofrimentos eram sem perspectivas de melhora e insuportáveis, (…), que ele informou ao paciente sobre sua situação e suas perspectivas, (…) que ele chegou, em acordo com o paciente, à convicção de que nenhuma outra solução era possível (…) que ele consultou pelo menos um outro médico independente”. Somente aí ele pratica a interrupção da vida “com todo o rigor médico exigido” e depois preenche um formulário completo.
Esta última formalidade é bem complicada: o médico tem de responder a mais de cinqüenta perguntas. Alguns não o fazem ou fazem depressa demais (esses recebem um chamado à ordem), mas a maioria cumpre suas obrigações e manda o formulário ao delegado de polícia do município, que o comunica a uma comissão regional. Esta comissão examina se os critérios de minúcia foram bem observados. Pode acontecer que encaminhe o dossiê à justiça [2]. No conjunto, o sistema funciona bem. O número de eutanásias, que chega a 90% dos doentes de câncer em fase terminal, aumentou ligeiramente (estima-se em 4 mil por ano), sem ultrapassar as previsões e sem preocupar as autoridades.
Holanda: eutanásia também em casos de doenças psíquicas
Melhor ainda: os holandeses admitem agora que os problemas psíquicos, ou simplesmente um cansaço existencial muito grande podem justificar um ato de eutanásia: “Diversos casos julgados em ultima instância abriram caminho para a eutanásia de pacientes acometidos de uma doença psíquica e não física”, escreve o correspondente do Le Monde em Haia [3]. Um psiquiatra que ajudou uma de suas pacientes a findar-se quando estava acometida de grave depressão foi solto. “Um médico foi absolvido por ter feito a mesma coisa com uma pessoa de 86 anos que se dizia cansada de sua vida de velho.”
Os belgas não vão (ainda ?) tão longe, mas desde 16 de maio de 2002, são o segundo país europeu a haver autorizado a eutanásia, sob certas condições. Em projeto há vários anos, a legalização só foi possível depois das eleições de 1999, da derrota dos partidos católicos e da formação de um governo resolutamente laico. “Foi uma grande abertura”, diz Jacqueline Herremans, presidente da ADMD belga, “uma verdadeira lufada de ar”. “Até então interrompidas, as pesquisas sobre o embrião e a clonagem terapêutica foram retomadas, o casamento dos homossexuais tornou-se possível — eles não demorarão a ter reconhecido seu direito de adotar filhos — e a lei da eutanásia, promulgada”, diz.
“A lei foi aprovada depois de um ano de amplo debate público”, esclarece o doutor Marc Englert. “Toda semana, uma comissão da qual participavam representantes dos ministérios da Saúde e da Justiça ouvia pessoas diretamente envolvidas (médicos, enfermeiros, juristas). Estas audiências eram transmitidas integralmente pela televisão e publicadas nos jornais. Houve também várias pesquisas de opinião.”
Amplamente aprovado pela maioria dos belgas, o projeto de lei não encontrou oposição forte: “A Igreja era contra, claro”, diz o doutor Marc Englert, “mas não tomou posição muito militante. Contentou-se em lembrar seus princípios. E ela não tem mais o poder que desfruta na França. Quanto ao Conselho da Ordem, foi bem discreto. Ainda por cima, os “medalhões” apoiavam o projeto de lei e isso uniu muitos médicos. Quase 1500 assinaram um abaixo-assinado em favor de sua adoção.”
Uma lei avançada, sem oposição religiosa
Submetida às mesmas condições de minúcia que na Holanda – “uma doença incurável, um sofrimento insuportável, um pedido claro, a consulta de um segundo médico”, lembra o doutor Marc Englert, a eutanásia aplica-se essencialmente aos doentes de câncer (80% dos pedidos) e aos pacientes acometidos de doenças degenerativas (10 a 15%). Em 90% dos
casos, é feita por injeção de pentotal, mas pode também tomar a forna de um suicídio assistido (o próprio paciente toma o remédio), já que a lei não especifica de que modo a eutanásia deve ser praticada.
Os adversários de sua legalização acenavam com todo tipo de riscos, mas não houve nada: a eutanásia continua uma exceção. Contam-se 500 por ano para 100 mil mortes (60% no hospital, 40% em casa). “Muitos médicos não se sentem à vontade, muito menos por razões ideológicas do que por ignorância. Eles não sabem como fazer, nunca aprenderam”, continua o doutor Englert. “Ontem mesmo, um deles me perguntou como proceder com um doente inválido de 101 anos, que suplicava a ele que abreviasse seus sofrimentos…”.
Os suíços defrontaram-se com a mesma dificuldade: se a eutanásia é proibida, a assistência ao suicídio é legal, mas muito poucos médicos ajudam um doente a se matar, principalmente porque essa assistência não é considerada um ato médico. Provavelmente, logo o será, já que em novembro de 2005 a Faculdade de Medicina de Lausanne criou um curso
para os médicos sobre o acompanhamento do término da vida. E o Centro Hospitalar Universitário do Vaud começou a aceitar que delegados do Exit (a ADMD suíça) tragam seu apoio, no interior do estabelecimento, a pacientes que não estejam mais em condições de voltar para suas casas.
“É um grande progresso”, assegura o doutor Jérôme Sobel, presidente do Exit, “mas de imediato, a maior parte de nossos acompanhantes, como chamamos aqueles que ’assistem’ um doente em seus últimos momentos, são voluntários (enfermeiros, professores, filósofos) cujo percurso de vida sensibilizou-os para esse problema. Essas pessoas adquiriram uma habilidade. Mas têm, sobretudo, uma sabedoria que lhes permite compreender e tranqüilizar os pacientes que vão acompanhar até o último momento”.
Suíça: jurisprudência aceita assistência ao suicídio
Atingidos mais freqüentemente por um câncer, problemas neurológicos ou invalidez para a locomoção devido a problemas ósteo-articulares ou degenerativos, os pacientes que decidem suicidar-se formulam seu pedido por escrito (se são incapazes de escrever, um ato notarial diante de testemunhas confirma o pedido deles). Um acompanhante então os visita,
examina a ficha médica, verifica que sofrem de uma doença incurável, que seus sofrimentos são intoleráveis, que seu pedido é sério e repetido, que eles estão completamente lúcidos.
Se todas essas condições são satisfeitas, o Exit concede sua assistência, uma data é marcada, mas até o último momento o paciente pode voltar atrás em sua decisão. Se a mantém, toma ele mesmo a solução mortal. Depois, o acompanhante avisa a justiça, dois policiais e um médico legista constatam o óbito e transmitem o dossiê a um juiz. Depois do exame dos documentos, ele atesta que não houve crime.
Em 2005, o Exit recebeu 202 pedidos de suicídio assistido e 54 foram executados. “Para muitos doentes, saber que serão ajudados se quiserem mesmo partir os acalma, e eles adiam a decisão”, diz o doutor Sobel. “A possibilidade legal de um suicídio assistido não aumentou a demanda, muito ao contrário — e esse é um dos principais benefícios de uma legislação liberal”.
Essa legislação se inspira, de início, em um caso real: no fim do século 19, um policial empresta seu revólver a um outro que, sentindo-se ferido em sua honra, decide suicidar-se. Os juízes militares o absolvem: ele agiu por compaixão. Apoiados nessa absolvição, os militantes suíços do Exit conseguiram que o suicídio assistido não seja penalizado: “O suicídio não é passível de punição”, lembra o doutor Sobel: “ajudar alguém, sem motivo egoísta, a cometer um ato que em si não é passível de punição também não pode ser punido. Do ponto de vista jurídico, esta argumentação é irrepreensível. Todos os juristas concordam e o próprio Parlamento, durante um debate em dezembro de 2001, aceitou-a, dando-lhe assim uma caução política.” Segundo as pesquisas, 87% dos suíços aprovam a decisão.
Mudanças libertárias espalham-se pelo mundo
Tanto que as igrejas puseram em surdina sua oposição e a Academia Suíça de Ciências Médicas reconhece que um médico deve levar em conta a vontade de seu paciente — respeitando, por exemplo, sua decisão de morrer e trazendo-lhe ajuda [4].
Holanda, Bélgica, Suíça, estado norte-americano de Oregon (que autoriza o suicídio medicamente assistido desde 1994). O exemplo destes Estados, que permitem a seus cidadãos morrer em dignidade estimula outros, cada vez mais numerosos, a liberalizar suas legislações. Pelo menos, reconhecendo aos enfermos o direito de recusar cuidados médicos.
Outros vão mais longe: nos EUA, os Estados da Califórnia e Vermont preparam-se para legalizar o suicídio assistido. No Reino Unido, a Câmara dos Lordes começou a debater, em 2005, a possibilidade de introduzir dispositivo semelhante na legislação. A Espanha não pune mais a eutanásia ativa quando os “critérios de minúcia” são respeitados.
Outros — é o caso da França e Alemanha — persistem em sua resistência e recusa. “Mais cedo ou mais tarde”, avalia o Dr. Sobel, o sopro da História e a vontade dos povos os levarão a raeconhecer o direito de todos a decidir sobre sua morte. Exatamente como acabaram legalizando a contracepção e a interrupção voluntária de gravidez. O direito de morrer em dignidade é fundamental, humanamente compreensível, socialmente aceitável, politicamente defensável. Portanto, onde está o problema?”
Tradução: Elisabete de Almeida
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