A falácia dos 99%
A atenção obsessiva conferida à ostentação dos super-ricos permite às elites que desfrutam uma riqueza um pouco menos colossal se esquivarem da questão de seus próprios privilégios.
Richard V. Reeves
No final de janeiro de 2015, Barack Obama acabou sofrendo um momento breve, mas amargo de constrangimento político. Uma proposta de medida orçamentária que ele acabara de enviar ao Congresso se revelou natimorta antes de ser submetida à votação – morta no ovo pelo próprio presidente.
A ideia básica brilhava ao mesmo tempo por sua moderação e por sua simplicidade: revogar os benefícios fiscais concedidos às famílias que adquiriam um plano de poupança destinado a financiar os estudos universitários de seus filhos. Ao suprimir esse presente, que beneficiava sobretudo as famílias bem de vida,1 tratava-se de liberar recursos para trabalhar no sentido da introdução de um novo sistema de isenções fiscais, mais coerente e sobretudo mais justo. Era, de vários pontos de vista, uma decisão sensata. Mas o presidente havia subestimado o peso da classe média alta na vida política norte-americana. Tão logo foi tornado público, o projeto reuniu contra ele a fina flor do Partido Democrata, entre a qual o representante do estado de Maryland, Christopher Van Hollen – hoje senador –, e sua colega da Califórnia, Nancy Pelosi, presidente do grupo democrata na Câmara dos Deputados. Esta última se encontrava justamente em companhia de Obama a bordo do Air Force One, em pleno voo entre a Índia e a Arábia Saudita, quando Van Hollen a alertou por telefone. Antes mesmo que o Boeing presidencial aterrissasse em Riad, ela já havia convencido o presidente a renunciar à sua reforma.
O episódio lembra, se necessário fosse, que em política uma escolha razoável nem sempre é uma opção conveniente, sobretudo quando quase todas as vozes autorizadas que julgam, comentam ou analisam essa escolha tiram uma vantagem pessoal do sistema que ela quer corrigir. Nancy Pelosi e Van Hollen representam um eleitorado liberal, abastado e instruído. Cerca da metade de seus eleitores dispõe de uma renda de mais de US$ 100 mil. Eu estou numa boa posição para saber disso: Van Hollen era na época o representante do distrito onde moro. Como destacou Paul Waldman em seu blog no Washington Post (28 jan. 2015), o projeto abortado de Obama “tinha por alvo um eleitorado que é altamente perigoso descontentar: a classe média alta, com dinheiro suficiente para exercer influência nos bastidores e numerosa o bastante para alterar o resultado de uma eleição”. Como uma radiografia, a indignação despertada pela proposta de Obama expôs a fratura mais escancarada da sociedade norte-americana, que se aprofunda entre os 25% mais mimados da população e o resto das pessoas.
As desigualdades sociais se tornaram um assunto político quente. Com muita frequência, no entanto, os debates que elas alimentam permanecem concentrados no “1%” mais abastado dos norte-americanos, como se os 99% de “baixo” formassem um grupo homogêneo. Não é raro que os detratores mais veementes do pequeno clube empoleirado no alto da pirâmide pertençam às classes sociais que estão mais próximas deles: mais de um terço dos manifestantes que desfilaram no 1º de Maio de 2011 atendendo ao chamado do Occupy Wall Street tinham renda anual superior a US$ 100 mil.2 Uma parte considerável da energia política mobilizada à esquerda por Bernie Sanders e à direita pelo Tea Party provém igualmente da classe média alta. A atenção obsessiva conferida à ostentação dos super-ricos permite às elites que desfrutam uma riqueza um pouco menos colossal se esquivarem da questão de seus próprios privilégios.
Contrariamente, muitos norte-americanos têm a impressão de que a classe média alta só se preocupa com seus próprios interesses. Eles não estão errados. Os lares cuja renda anual ultrapassa US$ 112 mil – um quinto da população – constituem um bloco cada vez mais distinto do resto da população e que vive entrincheirado. Não é somente pela conta bancária que eles se isolam da massa, mas também pela educação, a estrutura familiar, a saúde e a expectativa de vida, e até pela implicação na vida social e comunitária. O fosso econômico é apenas o sintoma mais visível do aprofundamento das desigualdades de classe.
À primeira vista, o sucesso eleitoral de Donald Trump no seio das classes populares brancas poderia surpreender, tendo em mente a fortuna do magnata do meio imobiliário. Mas não foi o dinheiro que fez a diferença, foi seu discurso de classe. Trump adulou a cultura operária, e foi por isso que gostaram dele. Seus apoiadores não são hostis aos bilionários – ao contrário, eles os admiram. Seus inimigos são as figuras de destaque de uma elite menos opulenta: jornalistas, acadêmicos, tecnocratas, administradores, burocratas, todos aqueles cuja função, com ou sem razão, evoca uma vida de honras e favores na proximidade de um poder exercido por outros.
As queixas feitas contra a minha categoria social podem ser expressas de forma excessiva, não são sem fundamento. Gostamos de celebrar o livre-comércio, o progresso tecnológico e a imigração, sabendo muito bem que somos os maiores beneficiários disso. Equipados com um “capital humano” de primeira classe, podemos com toda a segurança florescer na economia globalizada. Os bairros residenciais onde nos espreguiçamos foram concebidos para proteger nossos bens e dissuadir os menos afortunados de quererem sua parte naquilo. O sistema das ordens profissionais e uma política de migração apoiada na exploração de uma mão de obra pouco qualificada nos colocam ao abrigo da competição feroz que devasta o mercado de trabalho. Estaríamos errados em ficarmos surpresos pelo fato de que as pessoas nos apreciam moderadamente.
Políticos e acadêmicos não escondem sua preocupação diante da falta de mobilidade social nos Estados Unidos. De fato, as chances de uma criança de origem modesta chegar um dia a uma condição mais favorável que a de seus pais é estatisticamente pouco encorajadora. O mais impressionante, no entanto, é que a mobilidade social em nenhum lugar é tão fraca que entre os mais ricos. “Mais que armadilha da pobreza, seria mais certo falar em imobilismo na outra ponta do espectro; uma ‘armadilha da riqueza’, se assim preferir”,3 escreve o economista Gary Solon. O problema não é somente a separação das classes, mas sua perpetuação.
Nós nos preocupamos, assim, em monopolizar os empregos que nossas posições nos permitem identificar e antecipar, sem excesso de escrúpulos quanto aos meios de manter os “bons planos” em família. A cada vez que proporcionamos a um dos nossos um lugar na universidade, um estágio numa empresa ou um cargo qualquer, seja por indicação ou por transmissão hereditária, puxamos um pouco mais o tapete sob os pés daqueles que não têm nosso trânsito social.
Como classe, detemos um poder inigualável. De início, porque somos eleitores assíduos, com uma taxa de participação de quase 80%. Em seguida, porque nossa área de influência excede largamente as cabines de votação. Somos poderosos porque temos, segundo a fórmula de Bertrand Russell, o “poder da opinião”. Todas ou quase todas as posições-chave nos meios que orientam a vida pública são ocupadas por um membro da classe média alta – nos meios de comunicação, na universidade, na ciência, na publicidade, nos institutos de pesquisa ou nas artes. Muitas fortalezas onde ela consagra uma boa parte de seu poder a reforçar suas posições e seus atributos.
Em sua obra sobre a história recente da América branca, o cientista político Charles Murray clama por um “grande salto cívico” que incitaria a classe média alta a “olhar mais de perto a maneira como ela vive” e a “refletir sobre os meios de modificá-la”.4 O autor não especifica exatamente o que espera dela, senão que ela deve pregar a virtude e se mostrar mais adulta em seus modos de consumo. “Não estou sugerindo que ela deve sacrificar seus interesses pessoais”, ele se preocupa em explicar. E por que não? Sacrificar nossos interesses – só um pouco, só para ver – não seria necessariamente algo ruim.
Não precisa muito esforço para adivinhar por que Murray nos testemunha tanta benevolência. Afinal, somos nós que lemos seus livros e temos vocação para seguir seus conselhos. Se você deseja construir uma força política destinada a mudar o país, não é sábio atacar um eleitorado tão tentacular quanto o da classe média alta. Mas vale escolher como alvo um grupo mais esparso ou que não tenha uma opinião para oferecer. Essa é a razão pela qual os conservadores acusam os pobres e os imigrantes de todos os males, enquanto a esquerda segue repetindo que é o “1%” dos super-ricos que arruína a América. Em todos os casos, a classe média alta mantém a garantia de estar na chuva sem se molhar. No entanto, o medo paralisante de assustar essa força social lhe permite continuar a prosperar, enquanto a maioria enfrenta dificuldades crescentes. Admitir essa realidade é uma primeira condição para criar um clima propício para uma mudança real.
*Richard V. Reeves é pesquisador em Economia da Brookings Institution e autor de Dream Hoarders [Acumuladores de sonhos], Brookings Institution Press, Washington, 2017, do qual este texto foi extraído.