A falta de visão
Três em cada 10 casas na região metropolitana de São Paulo estão situadas em áreas de risco ou de alto risco
Mais uma vez o noticiário traz informações e imagens impressionantes do efeito das fortes chuvas ontem em Petrópolis/RJ. As primeiras notícias são de 35 mortos, mas ainda é cedo para avaliar o total dos danos que a cidade sofreu e ainda sofre. Recentemente o Presidente Jair Bolsonaro sobrevoou as áreas atingidas por inundações e escorregamentos em Franco da Rocha/SP. Após o sobrevoo, o Presidente, já famoso por suas declarações, soltou a seguinte pérola: “muitas áreas onde foram construídas residências faltou, obviamente, alguma visão de futuro por parte de quem construiu”.
É verdade. Realmente faltou visão, mas não para os moradores que, ao contrário do que faz pensar o presidente, não optaram por morar em áreas de risco. Na maioria esmagadora das vezes, a falta de condições ou opções acessíveis faz com que as pessoas tenham que ocupar áreas de risco para a moradia, em detrimento da sua segurança e de sua família. Segundo estudo de 2020 da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, três em cada 10 casas na região metropolitana de São Paulo estão situadas em áreas de risco ou de alto risco. As causas para essas tragédias que ocorrem anualmente no período das chuvas são conhecidas: especulação imobiliária, ocupação desordenada sem fiscalização do poder público, falta de obras de contenção, falta de uma política de prevenção a desastres, falta ou ineficiência de políticas públicas voltadas para a habitação destinadas às populações de baixa renda, entre outros fatores. Se voltarmos a 2009, a mesma região serrana do Rio de Janeiro sofreu uma grande tragédia causada por fortes chuvas. E o que foi feito realmente de concreto para mitigar essa situação, além de promessas de políticos e orçamentos públicos que não privilegiam o problema?
A questão da moradia é complexa por natureza. Quando falamos de moradias em áreas de risco, essa complexidade aumenta substancialmente. Um país com as dimensões e população do Brasil necessita de ações coordenadas nos diferentes níveis de governo, para que o impacto comece a ser sentido. Além disso, essas ações devem ser perenes ao longo dos anos e dos diferentes governos. Quando falamos de habitação, falamos de política de estado e não de ações do governo de turno. Construir casas novas é importante; o déficit nessa área passa das seis milhões de unidades. A situação fica ainda mais crítica quando analisamos os números de residências que apresentam algum tipo de inadequação. Os problemas são os mais variados, indo da inexistência do fornecimento de água, passando pelos problemas estruturais da construção, por banheiros inadequados, até telhados que não protegem as famílias que se abrigam embaixo deles. Quase 25 milhões de lares se enquadram nessa categoria, segundo o estudo do déficit habitacional brasileiro feito pela Fundação João Pinheiro. Exceto por algumas iniciativas pontuais, de alguns poucos municípios ou da sociedade civil, não existe uma política pública estruturada para atender a população nessas condições.
Sim, falta visão ao Estado, nas suas esferas municipal, estadual e federal, que deem realmente conta da demanda. Não se trata aqui de minimizar a questão e encontrar soluções simples para problemas complexos. No entanto, ações precisam ser implementadas e continuadas, para que outras gerações não sofram com os mesmos problemas no futuro. O trabalho é grande, os desafios são enormes, mas é necessário dar passos concretos. Uma política pública efetiva de habitação deveria, em algum nível, tratar das questões das moradias em áreas de risco também.
Nessas horas, autoridades rapidamente culparão as chuvas em excesso como a principal causa da catástrofe. E é verdade: ontem, em Petrópolis, choveu em 2 horas mais de 200 mm, o que é realmente uma grande quantidade. No entanto, é fácil notar que a frequência dessas fortes chuvas tem aumentado ao longo do tempo e isso, somado a ocupação desordenada em áreas de risco e a impermeabilização cada vez maior das áreas urbanas, criam as condições para a “tempestade perfeita”. Justiça seja feita: as sirenes instaladas em 17 regiões da cidade, alertaram os moradores e certamente fizeram com que a tragédia não fosse ainda pior.
Alguns dirão que somos um país pobre e que não dispomos dos recursos financeiros necessários para essas ações. Muitos se esquecem que a construção, seja de casas novas, de obras de melhoria ou de mitigação de desastres em áreas de risco, além de propiciarem lares mais dignos e adequados, movimentam a economia e a geração de empregos direta ou indiretamente. A questão não é ter ou não ter o recurso, mas sim a prioridade que é dada ao tema. Neste ano de eleições, seria interessante que cada candidato, dentro de sua área de atuação, apresentasse, de maneira clara e objetiva, como o tema da habitação será priorizado durante sua gestão. Nestes tempos de orçamentos apertados ou “secretos”, seria importante saber quanto exatamente será destinado à habitação, em que condições e com que objetivos.
Falta visão à sociedade como um todo, quando olha pessoas morando na rua, embaixo de viadutos e praças, em condições sub-humanas, sem se espantar, nem se rebelar contra essa situação. Somente na cidade de São Paulo, quase 32 mil pessoas vivem dessa maneira, segundo o censo de população de rua, realizado em 2021 pela prefeitura da cidade. No país todo, sabe-se lá qual é esse número! Faltam pesquisas e levantamentos que possam subsidiar medidas concretas para mitigar esse problema.
A condição de falta total de moradia, sempre crítica, foi ainda mais atingida pelos efeitos da pandemia do Covid-19. Famílias inteiras tiveram que sair de suas casas – em áreas de risco ou não – por falta de condições de pagamento de aluguel, e foram ocupar espaços públicos que não garantem dignidade a um ser humano. Quando falamos em habitação estamos falando sobre direito humano, garantido na Declaração Universal dos Direitos Humanos e na nossa constituição. A questão das chuvas é só mais um complicador nesse cenário caótico da habitação de interesse popular no nosso país. Hoje estamos falando de Petrópolis, há duas semanas estávamos falando de Franco da Rocha e a pouco mais de um mês falávamos das áreas devastadas nos estados de Minas Gerias e sul da Bahia. Sem política pública, infelizmente, seguiremos tendo essa mesma visão nessas e em outras áreas do Brasil.
Sim, o Presidente estava certo quando disse que faltou visão. Errou no sujeito da frase. E fica a lição não tão nova assim: o pior cego é aquele que não quer ver.
Mário Vieira é diretor executivo da organização Habitat para a Humanidade Brasil