A febre dos canais na América Central
Um século após sua inauguração, o Canal do Panamá alarga suas eclusas para absorver um tráfego marítimo cada vez mais denso. Com a multiplicação de projetos concorrentes, esse elo estratégico entre o Atlântico e o Pacífico continuará por muito tempo como a única passagem interoceânica do mundo?François Musseau
tenção, vai bater!” grita o capitão ao chefe das mulas, caminhões sobre trilhos que garantem a progressão sem que os navios se choquem contra as bordas da eclusa. O cargueiro, carregado de material eletrônico proveniente do Sudeste Asiático, passa sem problemas, a uma dezena de centímetros dos limites da câmara, sob o olhar espantado dos turistas norte-americanos. “Todos os dias vivemos situações desse tipo”, suspira Judith Rios, técnica encarregada das operações. “As larguras são insuficientes para os novos gabaritos.” O navio parte; será preciso ainda três horas para chegar ao Atlântico, num total médio de oito. Com os congestionamentos cada vez mais frequentes, a travessia do canal ultrapassa frequentemente dez horas.
Estamos em Pedro Miguel, no Panamá, a cerca de 60 quilômetros da capital do país, uma cidade de arranha-céus que evoca uma Miami tropical. Essas eclusas funcionam há exatamente um século: os Estados Unidos inauguraram o Canal do Panamá em agosto de 1914. Situadas bem no meio de um canal artificial de 80 quilômetros, elas hoje se tornaram um ponto de congestionamento. Não apenas a maioria dos barcos transita com extremo aperto, como também avança muito lentamente: intolerável para um mercado que idolatra a fluidez das trocas. O canal, que viu passar desde sua criação cerca de 1 milhão de navios, é vítima de seu próprio sucesso e da evolução do tráfego: desde 1934, o volume de mercadoria mais que triplicou.
O destino desse pequeno país com crescimento asiático (cerca de 8% ao ano na última década) está vinculado ao de seu canal, passagem estratégica devolvida pelos Estados Unidos em 1999 em virtude dos tratados Torrijos-Carter. O alargamento é uma questão de sobrevivência: o corredor que liga os oceanos Pacífico e Atlântico concentra 5% do comércio mundial (fora o petróleo), segundo o governo. Administrado por um organismo público (Autoridad del Canal de Panamá, ACP), ele representa uma das principais fontes nacionais de moeda (US$ 1,6 bilhão em 2013), atrás apenas da atividade bancária. Obras gigantescas foram iniciadas em 2006, depois de um plebiscito aprovado no ano anterior por 78% dos votantes. Elas devem terminar no final de 2015. Visam construir um novo conjunto de eclusas mais profundas e largas, a fim de triplicar a capacidade de recepção de navios.
Descongestionar uma artéria vital
Quando nos dirigimos para Gatún, um lago artificial situado 27 metros acima do nível do mar pelo qual atravessam todos os navios, nos damos conta da medida desse canteiro de obras vertiginoso. No horizonte, para o lado do Caribe, a cidade de Colón e seu porto de cruzeiros. Um exército avermelhado de gruas e caminhões está ocupado com a edificação de câmaras de eclusas com dimensões de catedrais. “No total, o concreto utilizado aqui permitiria construir uma centena de edifícios de quarenta andares”, anuncia Bernardo González, engenheiro-chefe espanhol do Grupo Unido para o Canal (GUPC).
O consórcio encarregado das obras reúne a empresa espanhola Sacyr, a italiana Impregilo, a belga Jan de Nul (para a drenagem) e a panamenha Cusa. Num primeiro momento, ele contestou o valor da fatura, que se elevava a US$ 5,25 bilhões: baseado em estudos geológicos, ele reclamava um aumento de US$ 1,6 bilhão. Finalmente, um acordo foi assinado no final de fevereiro de 2014. Cada parte aportou US$ 1 bilhão suplementares, e a seguradora Zurich American desbloqueou US$ 400 milhões.
Com 427 metros de comprimento e 55 metros de largura, as futuras eclusas foram desenhadas para permitir a passagem de uma geração de cargueiros denominados “pós-panamax”, cuja meia-nau (a largura máxima) atinge cerca de 43 metros. Surgidos no final dos anos 1980, esses enormes navios já representam quase metade do tráfego mundial. “Não há mais tempo a perder! Era indispensável que nossas infraestruturas pudessem acolhê-los”, comenta Jorge Quijano, o administrador do canal.
Mas aí é que está: desde o início das obras, construções ainda mais imponentes, capazes de levar 18 mil contêineres de vinte pés,1 foram colocadas no mercado. As novas eclusas se revelaram antigas e já muito estreitas para elas. A obra se limitará então aos cargueiros de 13 mil caixas – contra 4,6 mil atualmente. Contudo, as autoridades do Panamá esperam dobrar a carga: de 333 milhões de toneladas em 2012 para 600 milhões em 2025. Um filão suculento, já que as taxas de direitos de passagem aumentam em função do volume de carga. Numa média atual de US$ 350 mil por navio, elas aumentariam para até US$ 1 milhão, segundo as previsões da ACP.
O alargamento do canal dispensará os grandes cargueiros de ter de dar a volta pelo Cabo Horn, ou pegar o distante Canal de Suez, concorrente histórico do corredor do Panamá – e mais frequentado que ele –, cujos 193 quilômetros têm a vantagem de não possuir eclusas e de não ter nenhuma outra limitação além do calado.2 Quando cada dia de trajeto suplementar custa uma pequena fortuna em combustível, os operadores buscam o caminho mais curto. Passando pelo Cabo Horn, o trajeto Yokohama-Nova York tem 31.630 quilômetros, 25.120 quilômetros via Suez e 18.560 quilômetros pelo Panamá.
“Os investimentos em infraestrutura, como os da obra no Panamá, facilitarão nossas operações e aumentarão amplamente nossos lucros”, alegra-se Robbert van Trooijen, responsável regional da Maersk Line, líder do transporte marítimo global. Mas os pesados monstros de aço entupidos de mercadorias e combustível que serpentearão sobre o traçado sinuoso do Lago Gatún, entre o Panamá e Colón, farão pesar uma hipoteca considerável sobre os parques nacionais atravessados.
As perspectivas econômicas, por sua vez, revelam-se promissoras. Em plena revolução energética, os Estados Unidos exportarão talvez combustíveis do Golfo do México para a Ásia, a começar pela China. Inclusive, muitos portos da costa leste iniciaram vastos planos de renovação para acolher os “pós-panamax”. É, por exemplo, o caso de Charleston, na Carolina do Sul, onde um plano de investimentos em dez anos vai engolir US$ 1,3 bilhão. A modernização dos portos de Nova York e Nova Jersey custará um pouco mais (US$ 1,6 bilhão).
Mais para o sul, a América Latina também aumenta suas trocas: num sentido, soja, carvão, petróleo e ferro vindos da Argentina, do Brasil e da Venezuela; no outro, produtos manufaturados destinados a satisfazer o consumo crescente da região (ler o artigo na pág. 30). No tabuleiro de xadrez geoestratégico, o Panamá está prestes a ganhar. Além do seu canal, ele dispõe de seis portos, uma ferrovia, uma via rápida e, com Colón, da mais vasta zona de livre-comércio do mundo depois de Hong Kong. “Mais do que um corredor, esse canal está se tornando um grande cruzamento logístico”, confirma Alberto Alemán, ex-diretor do canal, hoje na chefia da Panamá Pacífico, um complexo de 1,4 mil hectares onde estão instaladas cerca de cem transnacionais, a leste da capital. “Há aqui o único porto com terminais nos dois oceanos. É uma vantagem crucial.”
A concorrência, no entanto, intensifica-se. Para captar uma parte do maná, outros projetos de “atalhos marítimos” estão surgindo, com graus de avanço diversos. O mais simples se situa no norte: a “passagem do noroeste”, que liga o Pacífico e o Atlântico via arquipélago ártico canadense. Com o aquecimento climático, essa rota gelada poderia oferecer, daqui a um tempo, um novo itinerário para os navios. Em 2013, grandes cargueiros realizaram a ligação com a Europa. E, em alguns casos, o derretimento da calota glacial reduz a quilometragem: um barco ligando Hamburgo a Vancouver percorreria 300 quilômetros a menos passando pelo norte do que se passasse pelo Canal do Panamá. Mas os riscos ambientais são gigantescos. “Além do mais, isso exige um equipamento específico e um custo de seguro maior, e supõe uma grande parte de incerteza quanto à navegabilidade”, detalha o geógrafo Frédéric Lasserre, instalado em Quebec.3
O sonho de uma via chinesa
Mais perto de Pedro Miguel, El Salvador, Honduras e Costa Rica evocaram em 2011 vias de passagem em seus territórios. No início de 2012, a Guatemala criou um órgão, o Corredor Interoceânico Guatemalteco (CIG), que prevê religar dois portos – a serem construídos – por um custo de US$ 7,5 bilhões. Não se trata de uma escavação, mas de “canais secos” encaminhando as mercadorias de um cargueiro a outro por ferrovia ou rodovia.
Desde o final dos anos 2000, um mesmo projeto com um custo similar existe na Colômbia, país banhado pelos dois oceanos. “Na verdade, mais do que canais secos, trata-se de redes de transporte intensificadas”, comenta o analista peruano Luis Esteban Manrique no site Infolatam. “Com a desvantagem, para as companhias marítimas, de que elas pagam caro pela carga e descarga das mercadorias.” Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), uma carga de 10 mil contêineres equivale a dezoito trens ou 5,8 mil caminhões. Em outros termos, seria preciso diversos quilômetros de trens para descarregar um único cargueiro.
De todos esses projetos de corredores interoceânicos, o da Nicarágua é de longe o mais ambicioso – e o mais controverso. As autoridades estão completamente decididas a cavar na crosta terrestre ao longo de cerca de 300 quilômetros. Em junho de 2013, o governo presidido pelo sandinista Daniel Ortega concedeu uma autorização de cinquenta anos – renovável por mais meio século suplementar – à Hong Kong Nicaragua Development Investment (HKND), uma empresa registrada nas Ilhas Cayman e cuja sede se encontra na antiga colônia britânica. Seu diretor-presidente, o chinês Wang Jing, comprometeu-se a investir US$ 40 bilhões, quatro vezes o PIB da Nicarágua. A maioria dos especialistas estima que o custo mínimo de tal escavação atingiria na realidade US$ 80 bilhões.
O projeto visa ultrapassar em capacidade o Canal do Panamá: enquanto este último, saturado, não pode acolher os cargueiros de mais de 110 mil toneladas, esse outro permitiria a passagem de colossos de metal de 250 mil toneladas e até 455 metros de comprimento. Seu traçado, aprovado em julho passado, tinha sido imaginado pelos conquistadores espanhóis. Se acreditarmos nas autoridades da Nicarágua, ele será destinado aos cargueiros “pós-pós-panamax”, que carregam mais de 14 mil contêineres. Os trabalhos começariam no início de 2015.
Além da opacidade do processo, diversos especialistas – a começar por Jaime Incer, o conselheiro especial de meio ambiente da Nicarágua – denunciam as consequências ecológicas previsíveis, como a destruição de 400 mil hectares de terras úmidas e a salinização do Lago Cocibolca, a principal reserva de água doce da América Central, cuja superfície se aproxima da de Porto Rico. O canal atravessará 105 quilômetros desse lago. Mas podemos ficar tranquilos: no dia 7 de julho, em um encontro oficial com o presidente Ortega, Wang deu sua “palavra de honra”: o canal será “ecológico, respeitoso com o meio ambiente”…
Alguns se questionam até mesmo sobre sua viabilidade. “Se todos os projetos de canais se realizarem”, ironizava em 15 de novembro de 2013 o então ministro das Relações Exteriores do Panamá, Nuñez Fabrega, “a América Central parecerá um queijo suíço!” Seja como for, a concessão acordada por Manágua à HKND ilustra as ambições estratégicas da China. Segundo o site nicaraguense El Confidencial, esse gigante da telefonia seria apenas uma fachada atrás da qual se esconde o próprio Estado chinês. Assim como o projeto de “canal seco” na Colômbia, os da Guatemala e de El Salvador são financiados pela China.
“Existe um ‘sonho chinês’: controlar um corredor estratégico pelo qual passaria a maior parte das exportações do país para as Américas”, confia um interlocutor que deseja permanecer no anonimato. Um exemplo: a importação de combustíveis da Venezuela, país desprovido de litoral do Pacífico, seria muito mais intensa se a China dispusesse de um canal, mesmo que “seco”. “O do Panamá apresenta para Pequim o inconveniente de estar saturado e ser muito estreito para seus imensos cargueiros, mas também o de estar ainda sob o controle dos Estados Unidos”, explicou para a BBC Heinz Dietrich, pesquisador da Universidade Autônoma Metropolitana (UAM) do México.
Mesmo tendo devolvido em 1999 o Canal do Panamá, os Estados Unidos dominam seu tráfego, e os navios que carregam a bandeira norte-americana se beneficiam ali de uma prioridade de passagem, o que pode retardar sensivelmente os outros cargueiros. “Estrategicamente, continua sendo o canal deles”, garante Miguel Antonio Bernal, professor de Direito Constitucional da Universidade Pública do Panamá. “É por ali que passam seus submarinos; é ali que irão intervir militarmente assim que seus interesses forem contrariados. Até mesmo nossas autoridades admitem isso.”
François Musseau é jornalista.