A ficção científica explorada pelas potências mundiais
Em meio à guerra econômica entre os EUA e a China, podemos acompanhar uma guerra cultural, no qual o país asiático vem adquirindo espaço. O futuro volta, portanto, a ser um terreno de disputa
A ficção científica mostrou-se um instrumento de poder e propaganda política ao longo de muitos anos. Na atualidade, vemos a China investir num soft power poderoso com filmes e séries que mostram um futuro altamente tecnológico a ponto de senadores estadunidense entrarem em contato com a Netflix para que esta não produza a série baseado no romance de Liu Cixin, “O problema dos três corpos”.
Durante a Guerra Fria, as potências em conflito produziam uma ficção científica marcada pelas ideologias dominantes. Um futuro comunista altamente tecnológico pode ser encontrado na obra de Ivan Efremov, “Nebulosa de Andrômeda”. Um futuro militarizado com armaduras sofisticadas para soldados que enfrentam aranhas gigantes que se organizam estruturalmente como os comunistas é o centro da narrativa de “Tropas Estelares”, obra premiada do escritor estadunidense Robert Heinlein.
Ambos os títulos foram escritos na segunda metade da década de 1950, o período mais tenso da Guerra Fria, quando o medo de um apocalipse nuclear sondava a humanidade.
Os dois autores serviram aos seus exércitos. Efremov serviu no Exército Vermelho durante a Guerra Civil, formou-se em paleontologia, e quando sofreu um acidente que o combaliu, dedicou sua vida às pesquisas científicas e mais tarde à ficção científica.
Heinlein também foi militar, mas assim como Efremov, após ficar inválido para o campo de batalha, dedicou-se à ficção científica.

O comunismo cósmico
Com a ascensão de Kruchev, houve um processo de liberalização dos controles e da repressão, além de um “anúncio de políticas descentralizantes e democratizantes”.[1] Houve grandes investimentos em transportes coletivos, habitações populares, educação e saúde. Enquanto os EUA aumentavam a repressão contra os seus cidadãos via macartismo, a URSS vislumbrava “maiores margens de liberdade, de debate e de crítica”.[2] Na década de 1950, o entusiasmo era tão grande que alguns líderes europeus acreditavam que “o socialismo iria produzir mais que o capitalismo dentro de um futuro previsível”, como o premiê britânico Harold Macmillan.[3]
A novela “A Nebulosa de Andrômeda”, publicada em 1957, é escrita neste contexto de euforia. Passa-se em um futuro distante em que a humanidade chega, finalmente, ao comunismo. Desenvolvidos em termos sociais e científicos, os seres humanos conseguiram se expandir para o espaço sideral descobrindo planetas inóspitos até que, a tripulação do cosmonauta Erg Noor, é tragada por uma estrela de ferro. Em um dos planetas que orbita tal estrela, eles encontram uma forma de vida extremamente diferente e hostil. Contudo, o texto busca tratar muito mais do avanço científico conquistado pelo comunismo que de uma aventura com heróis salvadores da humanidade. O que torna difícil identificar um personagem principal na narrativa.
No segundo capítulo, a historiadora Veda Kong transmite uma conferência histórica para o Grande Circuito. Todos os planetas incluídos neste circuito interplanetário poderiam ouvir suas palavras. Neste momento, o narrador demonstra como era o mundo antigo (o presente do escritor): “Veda Kong falava […] da desunião que reinava entre os grandes e os pequenos povos, afastados pelos antagonismos econômicos e ideológicos que dividiam os seus países”.[4]
Esse período é chamado de “Era do Mundo Desunido (EMD)” e prevalecia o modo de produção capitalista. O século XX é descrito como o “Século do Descompromisso”, o ápice de toda a contradição que culminou na formação da consciência, quando as pessoas tinham finalmente compreendido “que todas as suas desgraças provinham de um regime social que se fora formando espontaneamente a partir dos tempos da barbárie, e que toda a força e o futuro da humanidade estavam no trabalho, nos esforços conjuntos de milhões de seres humanos libertos da opressão, na ciência e na reestruturação da vida em bases científicas”.[5]
A passagem que melhor descreve, na perspectiva soviética, o contexto da Guerra Fria, vem após as linhas supracitadas. A polaridade mundial e o sentimento de catástrofe nuclear são expostos de forma bem clara pelo narrador: “A luta entre ideias velhas e as novas agudizou-se no Século do Descompromisso e deu lugar a que todo mundo se dividisse em dois campos – o dos Estados velhos, capitalistas, e o dos Estados novos, socialistas – com diferente estruturação econômica. A descoberta naquele tempo das primeiras formas de energia atômica e a obstinação dos defensores do velho mundo estiveram a ponto de levar a humanidade a mais espantosa catástrofe”.[6]
É interessante observar a concepção de tempo quando o autor se refere ao capitalismo como “velho” e o (ao) socialismo como “novo”. O futuro da humanidade pertence ao comunismo. É algo inevitável, um axioma marxista, de modo que “o novo regime tinha fatalmente de triunfar, embora esta vitória tivesse demorado pelo atraso de uma consciência social”.[7]
Portanto, como o socialismo era um destino indeclinável, e não uma simples utopia, em um momento todos os povos unir-se-iam em um único regime, fundindo-se “numa só família sensata e amiga”.[8] Era a “Era da Unificação Mundial (EUM)”.
A História, na narrativa, serve, não apenas para criticar o presente, mas também para mostrar a superação deste pela sociedade comunista: “As guerras e a economia desorganizada da Era do Mundo Desunido deram lugar ao saque do planeta. Abatiam-se as florestas, queimavam-se as reservas de hulha e petróleo acumuladas durante centenas de milhões de anos, contaminava-se o ar com ácido carbônico e os fétidos dejetos lançados pelas fábricas… até o mundo conseguir chegar à organização comunista da sociedade”.[9]
Esta é uma visão de futuro que não existe mais. O otimismo em relação ao tempo vindouro foi suplantado e o que vemos predominar na atual ficção científica é a distopia. O nosso presente matou o futuro.
Aracnídeos comunistas
O bolchevismo, no ocidente, salienta Susan Buck-Morss, “assumiu a imagem fantástica de um ‘fogo’, um ‘vírus’, uma ‘inundação’ de barbárie, ‘espalhando-se’, ‘em fúria’, ‘fora de controle’, um ‘monstro que busca devorar a sociedade civilizada’ e destruir o ‘mundo livre’”. A partir desta questão, e da magnificência do modo de produção capitalista nos anos 1950, graças ao Estado de bem-estar social, o imaginário político estadunidense passou a “ver a oposição ao capitalismo como agressão por uma nação estrangeira”[10]. Desta forma, o patriotismo foi ativado para defender o capital.
A narrativa mítica descreve o inimigo de maneira mais asquerosa possível, lançando mão dos elementos culturais do contexto. Como explica Raoul Girardet: “o tema da conspiração maléfica sempre se encontrará colocado em referência a uma certa simbólica da mácula: o homem do complô desabrocha na fetidez obscura; confundido com os animais imundos, rasteja e se insinua; viscoso ou tentacular, espalha o veneno e a infecção”.[11]
A ficção científica tem o seu próprio repertório de seres repugnantes. Em Tropas Estelares, Robert Heinlein descreve os inimigos como alienígenas aracnídeos comunistas que não podem ser controlados. A única forma de detê-los seria o extermínio. Deste modo, os soldados são descritos como os salvadores do mundo civilizado.
O comunismo é depreciado ao longo da narrativa de diversas maneiras. O professor de História e Filosofia da Moral, Dubois, em uma de suas aulas para o protagonista e narrador, Rico, afirma que “a definição marxista de valor é ridícula”. E explica porque havia chegado a tal conclusão: “Todo o trabalho que alguém se importe em agregar a uma torta de lama não vai transformá-la numa torta de maçã; ela continua sendo uma torta de lama, de valor zero. Por outro lado, trabalho malfeito pode facilmente subtrair valor; um cozinheiro sem talento pode transformar massa saudável e maçãs verdes frescas, que já tem algum valor, numa mistureba indigesta, de valor zero”.[12]
O autor quer desqualificar a teoria do valor de Karl Marx expressa no “O Capital”, quando o filósofo alemão conclui que o valor da mercadoria é decorrente do tempo de trabalho gasto para a produção da mesma. Quanto mais tempo é depositado em uma mercadoria, maior será o seu valor. “O que determina a grandeza do valor, portanto, é a quantidade de trabalho socialmente necessária ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor-de-uso”.[13]
A crítica do professor Dubois à teoria marxista está errada. Uma torta de lama ou uma mistureba indigesta não são mercadorias. Ninguém consome estes objetos. Ou seja, eles podem até possuir valor-de-uso (uma torta de lama pode ser usada para uma criança brincar e uma mistureba indigesta pode ser apreciada por alguém, visto que o gosto pode variar de pessoa para pessoa), mas jamais terão valor-de-troca, isto é, jamais serão mercadorias. “Quem, com seu produto, satisfaz a própria necessidade gera valor-de-uso, mas não mercadoria. Para criar mercadoria, é mister não só produzir valor-de-uso, mas produzi-lo para outros, dar origem a valor-de-uso social”.[14]
Mas Heinlein não estava interessado em analisar a teoria marxista, apenas menosprezá-la, atendendo às exigências do imaginário político que predominava durante a Guerra Fria. Sendo assim, complementa o raciocínio do professor de Rico: “Esses exemplos culinários deitam por terra a teoria marxista do valor, a falácia da qual provém toda a fraude magnífica do comunismo”.[15]
Tanto a teoria de Marx quanto a pessoa do filósofo alemão são descritas de forma mítica e desprezível: “Apesar disso, o velho místico desgrenhado do Das Kapital, inchado, atormentado, confuso e neurótico, não científico, ilógico, essa fraude pomposa chamada Karl Marx, apesar disso teve um lampejo de uma verdade muito importante. Se ele possuísse uma mente analítica, poderia ter formulado a primeira definição adequada de valor… e este planeta poderia ter sido poupado de um sofrimento sem fim”.[16]
Durante a juventude de Rico, a terra vivia em relativa paz até aparecer a ameaça alienígena. Eram “aranhas gigantes e inteligentes” que tinham “a sua organização, psicológica e econômica […] como a das formigas ou cupins; são entidades comunais, a suprema ditadura da colmeia”.[17] Além de se referir a Platão, o autor também critica o modelo comunista considerado por ele uma ditadura.
Heinlein descreve estes alienígenas como seres que não se importam com a vida de seus soldados, sacrificando muitos combatentes só para continuar a batalha. Afirma que isto é o comunismo de verdade: “Estávamos aprendendo”, conta Rico ao lembrar-se do combate contra estas criaturas, “a duras custas, quanto um comunismo total pode ser eficiente quando usado por uma espécie efetivamente adaptada para isso pela evolução”.[18] Ou seja, aqueles monstros espaciais eram criaturas perfeitas para exercerem o comunismo.
O pai de Rico era um empresário que rejeitava o serviço militar, mas quando viu que os aracnídeos estavam invadindo a Terra decidiu entrar para o Exército. Uma alusão ao ideal comunista de pôr em risco a propriedade privada. Para preservar a civilização ocidental (o capitalismo) era preciso lutar, pois não haveria outro jeito, já que o inimigo expansionista não entendia nenhuma forma de solução pacífica.
Conclusão
Richard Barbrook destaca que “durante a Guerra Fria, os impérios estadunidense e russo competiram não só para controlar o espaço, mas também o tempo”. Era um projeto imperialista de ambos os lados que incorporava os dominados nos sonhos “utópicos” dominantes. “A nação que abre o caminho do futuro no presente pode reivindicar a liderança sobre a humanidade”.[19] O presente, portanto, “é compreendido com o futuro embrionário e o futuro ilumina o potencial do presente”. Em seguida conclui Barbrook: “A realidade contemporânea é a versão beta de um sonho da ficção científica: o futuro imaginário”.[20]
Em meio à guerra econômica entre os EUA e a China, podemos acompanhar uma guerra cultural, no qual o país asiático vem adquirindo espaço. O futuro volta, portanto, a ser um terreno de disputa. Em “Terra à Deriva”, por exemplo, vemos os chineses, por meio de equipamentos, funcionários e projetos de cientistas ligados ao Estado, através do trabalho em equipe, salvarem o mundo da expansão avassaladora do Sol. Nos filmes de FC estadunidenses, vemos a humanidade sendo salva pela atuação de um herói que contesta o Estado distópico opressor, um modelo clássico de crítica liberal à intervenção estatal.
Cada potência mostra um tipo de solução para os problemas futuros (presente). Estão, na verdade, vendendo uma versão do por vir que penetra a cultura de massa que consumimos nas redes sociais e nas plataformas de streaming como mero entretenimento.
[1] FILHO, Daniel Aarão Reis. O mundo socialista: expansão e apogeu. In: FILHO, Daniel Aarão Reis; FERREIRA, Jorge e ZENHA, Celeste (orgs.). O século XX: o tempo das dúvidas. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 11-33. V. 3, p. 21.
[2] Id., p. 22.
[3] HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). Trad: Marcos Santarrita. Cia das Letras: São Paulo, 1997, p. 368.
[4] EFRÉMOV, Iván. A nebulosa de Andrómeda. Trad: Franco de Sousa. 2. ed. Lisboa: Caminho, 1979, p. 56.
[5] Id., p. 57.
[6] Ibidem.
[7] Ibidem.
[8] Id., p. 58.
[9] Id., p. 292.
[10] BUCK-MORSS, Susan. Mundo de sonho e catástrofe: o desaparecimento da utopia de massas na União Soviética e nos Estados Unidos. Trad: Ana Luiza Andrade, Rodrigo Lopes de Barros e Ana Carolina Cernicchiaro. Florianópolis: EdUfsc, 2018, p. 23.
[11] GIRARDET, Raoul. Mitos e mitologias políticas. Trad: Maria Lucia Machado. São Paulo: Cia das Letras, 1987, p. 17.
[12] HEINLEIN, Robert A. Tropas Estelares. Trad: Carlos Angelo: São Paulo: Aleph, 2015, p. 126 – 127.
[13] MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Trad: Reginaldo Sant’Anna. 22 ed. Rio de Janeiro: Record, 2008. Livro I, volume 2, p. 61.
[14] Id., p. 63.
[15] HEINLEIN, Robert A. Tropas Estelares. Trad: Carlos Angelo: São Paulo: Aleph, 2015, p. 127.
[16] Ibidem.
[17] Id., p. 183.
[18] Id., p. 205.
[19] BARBROOK, Richard. Futuros imaginados: das máquinas à aldeia global. São Paulo: Peirópolis, 2009, p. 18.
[20] Id, p. 37.