A filha da solidariedade
A mutualidade nasceu de um compromisso cívico,recorrendo por vezes a notáveis caridosos e filantropos. Seus pioneiros –sob o impulso do federalismo de Pierre-Joseph Proudhon, defensor da ideia das associações de entidades autônomas – souberam promover os primeiros agrupamentos que deram força ao movimento mutualista.Jean Sammut
A mutualidade nasceu da necessidade de solidariedade, fraternidade e igualdade em uma França regida pela Lei Le Chapelier.1 Na época em que o liberalismo de Napoleão Bonaparte triunfava, homens e mulheres tentaram coletivamente enfrentar as necessidades cotidianas, juntando o pouco que lhes sobrava. Le sou du linceul(O tostão do sudário), uma das primeiras associações conhecidas de auxílio mútuo, tinha como objetivo evitar que os mortos fossem jogados na vala comum sem estarem envoltos em um lençol2. “E nós, pobres, tecelões, sem sudário somos enterrados!”, cantava-se no século XIX 3.
A mutualidade nasceu desse compromisso cívico, ludibriando a proibição de formar coalizões, recorrendo por vezes a notáveis caridosos e filantropos. Seus pioneiros – sob o impulso dos conceitos federalistas de Pierre-Joseph Proudhon, que defendia a ideia das associações de entidades autônomas – souberam promover os primeiros agrupamentos que deram força ao movimento mutualista, que contava com mais de 3 milhões de associados no final do século XIX.
As primeiras companhias capitalistas de seguros foram formadas dentro da consciência do mercado aberto pela mutualidade. Napoleão III tentou recuperar o movimento com as mutuais autorizadas, às quais o Estado republicano conferiria, em 1888, um estatuto. Contudo, por mais institucionalizados que fossem, os agrupamentos de base continuaram sendo estruturas de proximidade.
Por meio do enquadramento social, o governo sabia que estava abrindo uma brecha na unidade do movimento social: em 1902, a primeira assembleia da Federação Nacional da Mutualidade Francesa (FNMF) e o congresso da Confederação Geral do Trabalho (CGT) marcaram a ruptura entre a mutualidade e o sindicalismo. Ao se concentrarem na reivindicação, as organizações profissionais denunciaram então o “compromisso social” que, segundo eles, o mutualismo representava.
Essa situação perdurou até os últimos anos do século XX, apesar da brusca mudança em 1945: o programa do Conselho Nacional de Resistência (CNR) provocou a criação de um regime de seguridade social, pensado para ser universal e confiado às forças sindicais. Garantindo uma proteção complementar, a mutualidade manteve sua força. Mas, por sofrer com a distância entre ela e as forças vivas do mundo do trabalho, a dimensão de movimento social, da mutualidade parecia fadada a desaparecer.
Foi a partir dos anos 1960 que a renovação se produziu. Louis Calisti (1923-2005), presidente da Federação Nacional das Mutuais de Trabalhadores, lançou a ideia de uma “mutualidade de ação e de gestão”. O movimento colocou novamente a democracia e o engajamento social no cerne da ação. A constituição da Federação das Mutuais da França (FMF) marcou a passagem do conceito de neutralidade política rigorosa, que a corrente majoritária invocava, para um conceito de “independência em mutualidade”.
A proximidade com os associados, a democracia e a independência constituem a verdadeira força mutualista. São esses princípios fundadores – com demasiada frequência esquecidos – que podem permitir que a mutualidade resista às crescentes pressões dos grandes agentes do ramo de seguros. As seguradoras têm em sua base uma visão individualista, mas antes de tudo financeira, ao contrário das companhias de pessoas, que se baseiam na solidariedade. Com o avanço da ideologia liberal, a mutualidade se vê, infelizmente, confrontada com desafios que não soube prever.
A ausência de debate sobre a diretiva “Solvabilidade 2” ilustra perfeitamente o questionamento dos valores históricos da democracia mutualista. Até janeiro de 2013, o conjunto dos organismos de seguros deverá ter integrado novas normas. Adotada em nome da proteção dos consumidores, essa diretiva tem a pretensão de constituir um setor europeu de seguros, competitivo em escala mundial e fortemente capitalizado. Essa reestruturação poderia ser considerada uma necessidade técnica, mas na realidade está sendo imposto um modelo padrão a todo setor de seguros que ignora completamente as especificidades e os modos de regulação mutualistas.
Com essa evolução regulamentar, que passou despercebida até mesmo pelos militantes, é todo o modelo solidário, social e democrático que está sendo desorganizado. Para começar, as tarifas mutualistas não escaparão de um aumento significativo – de 10% a 20%, segundo as previsões – para, por um lado, poder responder à exigência de fundos próprios, mas, por outro, financiar a conformidade à regulamentação. E, se o conhecimento dos riscos faz parte do cotidiano das relações mutualistas, as novas exigências em matéria de atuário4, autocontrole e controles externos exigirão meios técnicos, humanos e financeiros consideráveis. O movimento de concentração do mutualismo na França, ao qual assistimos há cerca de uma década e fez o número de mutuais passar de 6 mil a 750 mil, só vai aumentar. São as organizações locais das mutuais que mais sofrerão com essa mudança, pois sua atividade, que demanda voluntários, vai parecer secundária comparada às exigências técnicas da “Solvabilidade 2”.
limites
Se essa evolução faz a fortuna dos escritórios de consultoria, ela precisa de meios e de uma energia que desviam as mutuais de suas missões e do que as tornava eficazes: as relações humanas, individuais e coletivas com os mutualistas e profissionais da saúde. As primeiras simulações disponíveis mostram os limites que serão impostos a elas. Todos os investimentos realizados em proveito das empresas de economia social têm seu valor degradado, ou os fundos próprios das mutuais simplesmente desaparecem. Que espaço sobrará para a preocupação com solidariedades concretas, ação social, controle das despesas de saúde e prevenção quando o essencial da atividade dos conselhos for dedicado às informações financeiras?
Essa evolução regulamentar também abala a capacidade de financiamento da economia. Segundo Olivier Pastré, professor de Economia da Faculdade Paris VIII, “a Solvabilidade 2 é uma das reformas cujo poder de destruição de postos de trabalho é a mais elevada desde o fim da Segunda Guerra Mundial5”. Atualmente, a mutualidade reúne 38 milhões de pessoas com cobertura e emprega 55 mil assalariados, para 16 bilhões de cotizações recebidas.
As implicações são coletivas, pois qualquer que seja a diversidade de fatores que explicam o aumento dos custos da saúde, seu controle é inimaginável sem a implicação ativa da população. O controle centralizado dirigido pelo plano de saúde fracassou e permitiu o desenvolvimento de uma medicina em várias velocidades. Ora, como lembra Alain Supiot, “as mutuais, que se baseiam na solidariedade, são as únicas instituições capazes de tecer ligações realmente organizadas com os profissionais da saúde6”.
É verdade que não é nada fácil permitir que a democracia sobreviva em entidades cada vez mais importantes. No entanto, trata-se de uma exigência. O manifesto do Instituto Karl Polanyi France, redigido pelo sociólogo Alain Caillé, visa que “partindo do mundo associativo e mutualista e mobilizando sua experiência e seus recursos de análise, seja relançada uma dinâmica democrática de conjunto, ao mesmo tempo reflexiva e prática, dentro do respeito cruzado da especificidade das exigências teóricas e das impostas pela gestão associativa e mutualista7”.
Novos grupos mutualistas já se formaram e parece estar nascendo uma tomada de consciência. Foi deixado de lado o conceito de cliente, imposto nos anos 1990, e a noção de associado voltou a ser privilegiada. Mas será que aí também não existe uma nova questão política que diz respeito à sociedade como um todo?
Jean Sammut é Presidente do Instituto Karl Polanyi France e fundador do Procial.