A geopolítica papal e a última batalha de Francisco
Francisco era diferente, quanto às suas origens e visões de mundo – sul-americano, jesuíta, e metropolitano – e isso resultou numa geopolítica papal singular. Mas será que vai sobreviver à sua partida?
Quando, no dia 27 de março de 2020, em um momento crítico da pandemia global de COVID-19, Jorge Bergoglio caminhou em direção a um púlpito na fantasmagoricamente vazia Praça de São Pedro, ele estava sozinho. As palavras do Papa Francisco durante a benção urbi et orbi, no entanto, ecoaram, de fato, na cidade de Roma e no mundo.
Entronado – ainda que num trono modesto, de madeira – no cargo de sumo pontífice da Igreja Católica em 2013, o argentino inaugurou uma era de redirecionamentos na instituição. Desde o início de seu pontificado, Jorge Mario Bergoglio sinalizou uma inflexão significativa na simbologia político-ritual da Igreja Católica. A escolha de vestes mais simples, a renúncia aos ornamentos tradicionais e ao uso do trono, bem como a adoção do nome Francisco, indicam um afastamento deliberado dos símbolos mais característicos do poder eclesiástico tradicional. Essa mudança representou, para muitos católicos, uma ruptura com a lógica de cunho imperial que marcou a Igreja durante a Idade Média. Diversos são os movimentos que o fizeram uma das figuras mais carismáticas e queridas a ocupar o cargo nos tempos modernos, assim como muitos são seus detratores e críticos. Seria improdutivo listar todos os campos em que Francisco pareceu sozinho, mas fez sua voz e sua vontade ecoar, na direção de uma Igreja mais atuante em temas até então inexplorados, muitos deles controversos.
Mais impactantes em termos políticos, ainda que menos visíveis que sua decisão de não ocupar os aposentos papais nem utilizar objetos de luxo, foram as posturas contrárias ao sistema adotadas por Francisco. Essas atitudes revelam uma intenção clara de reduzir a distância entre a instituição eclesiástica, os fiéis e os não pertencentes à Igreja, ao mesmo tempo em que buscam dar respostas às pressões internas vindas de setores expressivos da comunidade católica.
Durante as congregações gerais que precederam o conclave, realizadas entre os dias 4 e 11 de março de 2013, três diretrizes principais foram amplamente acolhidas pelos cardeais como prioridades do novo pontífice, conforme resumidas pelo jornalista italiano Marco Politi: promover uma reforma da cúria para torná-la mais funcional e transparente, reestruturar o Instituto para as Obras de Religião (conhecido como Banco do Vaticano) e fomentar uma dinâmica de colegialidade, por meio de consultas regulares entre o papa, o colégio cardinalício e as conferências episcopais nacionais.
As primeiras viagens internacionais de um novo Chefe de Estado costumam ser interpretadas por analistas como indicadores de sua estratégia geopolítica, suas prioridades e seus métodos de inserção no cenário global. No caso do Papa Francisco, cuja posição acumula também o status de Chefe de Estado do Vaticano, tais deslocamentos geraram expectativas quanto ao perfil geopolítico que marcaria sua liderança na Santa Sé. Sim, a própria geopolítica papal foi transformada de forma significativa, durante o papado de Francisco. Falar em geopolítica costuma remeter aos aspectos mais militarizados da interação entre os Estados. Da mesma forma, por muitas vezes, essa discussão parece limitada ao jogo das grandes potências, no entanto, o Microestado do Vaticano, sob a batuta de Bergoglio, acabou se tornando um ator dos mais ativos nesse tabuleiro.
Apesar de inicialmente demonstrar certa hesitação quanto às viagens e entrevistas, o papa argentino passou a utilizar intensamente ambos os recursos. As conversas realizadas durante os voos de retorno de suas visitas apostólicas tornaram-se momentos-chave para a imprensa mundial, dada a franqueza e a amplitude dos temas abordados. Nessas ocasiões, Francisco responde a questões relacionadas tanto aos países visitados quanto a temas mais amplos da Igreja e da conjuntura internacional.
Tais entrevistas renderam ao avião papal o apelido de “Air Force One do Vaticano”, em alusão à aeronave presidencial dos Estados Unidos, pois ali o pontífice expõe com liberdade sua visão de mundo e o papel que, em sua concepção, a Igreja deve desempenhar. Diversas declarações feitas nesses voos repercutiram intensamente na mídia internacional — como a afirmação, durante o retorno da Coreia do Sul, de que o mundo estaria vivenciando uma “Terceira Guerra Mundial em capítulos”. Assim, suas palavras ganham eco não apenas entre os fiéis católicos, mas também junto a outras lideranças políticas globais e segmentos diversos da população mundial.
Conforme levantamento recente feito pela Agência Reuters, entre 2013 e abril de 2025, o Papa Francisco realizou 47 viagens internacionais, visitando mais de 65 países em todos os continentes habitados. Suas últimas visitas incluíram países como Indonésia, Singapura, Timor-Leste, Papua-Nova Guiné, Bélgica, Luxemburgo e a ilha francesa da Córsega – mas lugares como o Mianmar e a Indonésia, além da visita inaugural a Lampedusa, porta de entrada dos refugiados na Itália, são demonstrativos da mudança de eixo geopolítico. Essas viagens reforçaram sua disposição de se engajar com diferentes culturas e regiões, mesmo diante de condições adversas.
Como aponta a professora italiana Anna Carletti (Unipampa), hoje radicada no Brasil, cada papa é filho de seu tempo e ao mesmo tempo pai de sua época. O exercício do pontificado é moldado pelas vivências acumuladas antes da eleição papal. Ao assumirem o cargo, os pontífices já carregam consigo uma estrutura de pensamento político consolidada, fruto de uma trajetória construída ao longo dos anos como seminaristas, sacerdotes, bispos e cardeais. Essa formação é profundamente influenciada pelo contexto específico em que atuaram, incluindo os aspectos demográficos, geográficos, políticos e econômicos do território onde exerceram seu ministério e que impactam diretamente a vida das comunidades locais. Com Francisco, isso não foi diferente, mas ele era diferente, quanto às suas origens e visões de mundo – sul-americano, jesuíta, e metropolitano – e isso resultou numa geopolítica papal singular.
Na primeira metade de seu pontificado, o Papa Francisco realizou viagens a diversas regiões do mundo, com destaque para a Ásia, África, Europa e Américas. Na Ásia Oriental e Sudeste Asiático, visitou seis países: Coreia do Sul, Sri Lanka, Filipinas, Mianmar, Bangladesh, Tailândia e Japão — estes dois últimos incluídos em sua viagem de 2019, totalizando quatro deslocamentos à região. No Oriente Médio e Norte da África, visitou Egito, Jordânia, Palestina, Israel e Emirados Árabes Unidos. Na África Subsaariana, esteve no Quênia, Uganda e República Centro-Africana, além de visitar Marrocos, Moçambique, Madagascar e Maurício. Na Europa, incluiu em seu itinerário países como Itália, Albânia, Bósnia-Herzegovina, Grécia (ilha de Lesbos), Polônia, Suécia, Suíça, Portugal (Santuário de Fátima) e a sede da União Europeia em Estrasburgo. Em 2018, viajou à Irlanda, França e Romênia, e estava programada para 2020 uma visita à Hungria. No eixo euro-asiático, visitou Turquia, Armênia, Geórgia, Azerbaijão e, entre 2018 e 2019, os países bálticos (Lituânia, Letônia, Estônia), Bulgária e Macedônia. Na América Latina, foi a sete países da América do Sul — Brasil, Equador, Bolívia, Paraguai, Colômbia, Chile e Peru — em quatro viagens. Uma visita à Argentina e ao Uruguai estava prevista para 2020, mas foi cancelada em virtude da pandemia da COVID-19. Na América Central, passou por Cuba e El Salvador, além de ter participado da Jornada Mundial da Juventude no Panamá, em 2019. Na América do Norte, visitou o México e os Estados Unidos.

O continente americano foi a região mais visitada por Francisco, com onze países contemplados, sendo sete apenas na América do Sul, que abriga doze nações independentes. Essa atenção se justifica pelo perfil demográfico da fé católica: segundo o Anuário Pontifício de 2025, a população católica cresceu nos cinco continentes, com a África registrando o maior aumento percentual, e reúne 20% dos católicos de todo o planeta. No continente americano ocorreu um crescimento de 0,9% no biênio, o que consolidou sua posição como o continente ao qual pertencem 47,8% dos católicos do mundo. Na Ásia houve um crescimento de católicos de 0,6% no biênio, seu peso em 2023 é de cerca de 11% no mundo católico. A Europa, abriga em média 20,4% da comunidade católica mundial, continua sendo a área menos dinâmica, com um crescimento no número de católicos no biênio de apenas 0,2%.
A análise do itinerário internacional do Papa Francisco revela uma reorientação geopolítica significativa da Igreja Católica sob sua liderança, deslocando o eixo de atenção do tradicional centro eurocêntrico para as periferias do sistema internacional. Suas escolhas de destino — frequentemente voltadas ao Sul Global e a contextos de vulnerabilidade histórica, como regiões marcadas por conflitos, pobreza estrutural ou exclusão étnico-religiosa — evidenciam uma opção preferencial pelos “condenados da terra”, evocando a expressão de Frantz Fanon. Com essa inflexão pastoral e diplomática, Francisco reafirmava a vocação universal da Igreja, mas enraizada nos clamores dos que sofrem, reposicionando a Santa Sé como uma voz crítica diante das injustiças globais e como agente de reconciliação nos espaços onde a dignidade humana continua negada.
Num momento em que os olhos do mundo se voltam à Roma, em especial para uma discreta chaminé que será instalada temporariamente no teto da Capela Sistina, esperando que a cor da fumaça que ela emitirá indique o destino da Igreja, parece importante entender também quais lugares do mundo a nova fumaça alcançará. Enquanto muitos esperam um retorno ao conservadorismo de antecessores, é sabido que Francisco municiou o Colégio Cardinalício de forma a tentar evitar o descarte completo do seu trabalho.
Pode, portanto, a Geopolítica Papal estabelecida por Francisco sobreviver à sua partida? O resultado do Conclave nos trará indicativos, mas apenas o tempo vai confirmar se as portas abertas pelo argentino, para o Sul Global, a paz e o olhar para os mais desolados seguirão abertas, ou se sua voz se tornará apenas um sussurro passado numa praça vazia.
Fábio Nobre é professor do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais e da graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Pesquisa o campo da Religião e Relações Internacionais, com foco especial para a relação entre violência e religião. Doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui graduação em Relações Internacionais, pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). É um dos fundadores e atual diretor do Centro de Estudos em Política, Relações Internacionais e Religião (CEPRIR) e líder do Grupo de Pesquisa de mesmo nome, (gCEPRIR – CNPq/UEPB).
Referências
Politi, Marco. 2014. Francisco entre lobos: o segredo de uma revolução. São Paulo: Planeta.
Reuters. 2025. “Pope Francis: His Pontificate in Numbers.” Acesso em 22 de abril de 2025. https://www.reuters.com/world/pope-francis-his-pontificate-numbers-2025-04-21/