A globalização explicada pelos salmões
Metade dos peixes consumidos no mundo vem, agora, de uma criação. Produto de consumo habitual, o salmão gera a riqueza da Noruega e do Chile, onde é o segundo produto mais exportado. A aquicultura industrial, resposta imperfeita para o esgotamento dos recursos técnicos da pesca, provoca significativas ameaças ambientais e sanitárias
Em 29 de janeiro de 2018, pouco antes de deixar a presidência do Chile, a socialista Michelle Bachelet oficializou, em Punta Arenas, a criação do Parque Nacional Kawéskar, o maior do país, com uma extensão de 2,8 milhões de hectares dispersos nas ilhas e penínsulas do sudoeste da Patagônia. No entanto, somente as terras emersas são protegidas; as águas adjacentes e seu frágil ecossistema não foram contemplados. A explicação dessa incongruência foi a vontade de não frear a expansão das aquiculturas de salmão…
Antigamente ingrediente de luxo nas festas de fim de ano, o salmão tornou-se um produto de consumo corriqueiro. No comércio mundial de produtos do mar e de água doce, estimado em 136 bilhões de euros, o salmão e a truta representam as principais espécies em matéria de valor e as segundas em toneladas – após os tunídeos (atuns e afins). A aquicultura mundial produziu 2,25 milhões de toneladas de salmão atlântico em 2016, enquanto em 1993 essa produção se limitava a 300 mil.1 No Chile, em 2017, depois do cobre, esse peixe era o segundo produto mais exportado (com uma receita de 3,4 bilhões de euros).2 Nos anos 1980, a ditadura militar introduziu a criação do salmão do Atlântico – a espécie Salmo salar –, apostando com êxito nas semelhanças climáticas e geográficas entre o Chile e a Noruega, pioneira da aquicultura (ler virando a página). Tanques cilíndricos multiplicaram-se nos fiordes do Pacífico Sul. Atualmente, a criação no Chile corresponde a 23,6% do salmão consumido no mundo: dois terços da produção são exportados, principalmente para os Estados Unidos, o Japão e o Brasil. Em janeiro de 2018, o Serviço Nacional da Pesca e da Aquicultura (Sernapesca) computou 539 concessões na Região X de Los Lagos, 635 na Região XI de Aysén e 126 na Região XII de Magallanes.
As mais interessadas no novo parque nacional são as populações kawéskar, descendentes dos pescadores indígenas nômades que, até se fixarem, em meados do século XX, percorriam a Patagônia em canoas. Consultadas previamente pelas autoridades, quatro das doze comunidades kawéskar reconhecidas pelo Estado desde 1993 recusaram-se a aprovar a criação desse parque, considerando insatisfatória a proposta que consta no estatuto: “zona marinha costeira para usos diversos”. “O mar é parte integrante de nossa cosmogonia”, explica-nos Leticia Caro, porta-voz das comunidades kawéskar pela defesa do mar. “É nosso dever cuidar do meio marinho. Esse parque usurpa o nome ‘kawéskar’ e libera o mar para os donos de indústrias do salmão”. Seu pai, Reinaldo Caro, pescador marinho septuagenário, constata que as presas são cada vez mais raras: “Agora, precisamos de um dia inteiro para pescar o que antigamente pegávamos em uma hora e meia”. Culpa da aquicultura, segundo ele: “Onde existem salmoneras, as águas estão mortas. Seus resíduos se depositam no fundo do mar. Neste fim do mundo, que era tão puro! O pior é que, se pegarmos salmões que escapam das aquiculturas e os vendermos, temos de pagar uma multa: continuam propriedade das empresas”. Em julho, 690 salmões cheios de antibióticos fugiram de uma criação.
Indígenas defendem o oceano
Várias ONGs de Santiago confirmam essa avaliação. “O crescimento econômico é a única motivação da aquicultura. Jamais se perguntou se o ecossistema é capaz de suportar”, declara Liesbeth van der Meer, vice-presidente da Ocean Chile, associação de defesa do meio ambiente marinho. “A Magallanes [região do sul do Chile] abriga cetáceos, pinguins”, lembra Estefania Gonzalez, coordenadora do Greenpeace Chile. “Nos fiordes, calculamos que as águas levam trinta anos para se renovar completamente. Por que instalar uma indústria poluidora em um ecossistema tão frágil?”
Em abril de 2018, os kawéskar rebeldes conseguiram uma primeira vitória: baseando-se na lei votada em 2008 que criou espaços costeiros dos povos autóctones, chamada Lei Lafkenche, obtiveram, em detrimento dos industriais, a classificação das águas do parque. Enquanto as diversas administrações não tomarem uma decisão sobre essa classificação, um processo que levará vários anos, 80% das demandas de concessões de aquicultura da Região XII ficarão congeladas.
Óscar Garay nos recebe em seu escritório de Puerto Natales, a três horas da estrada de Punta Arenas através dos pampas. O gerente da empresa Salmones Magallanes é também vice-presidente da Salmonicultores Magallanes, que agrupa os aquicultores da Região XII. “Não sou cego. A aquicultura tem um impacto ambiental”, admite, antes de relativizar: “Toda atividade humana tem um impacto, até mesmo tomar um avião. A questão é: qual é o impacto real e como reduzi-lo?” A diminuição das presas constatada pelos pescadores? “Acontece em todo o mundo, mesmo onde não existe nenhuma criação de salmão. Ao contrário, a aquicultura permite evitar a pesca intensiva que esvazia os oceanos.” O novo parque nacional privado do litoral e os recursos dos kawéskar de acordo com a Lei Lafkenche? “Um punhado de kawéskar gostaria de reivindicar o litoral. Outros não têm problema com o parque. Os indígenas evidentemente têm direitos. Mas a Lei Lafkenche é demasiadamente imprecisa; qualquer um pode reivindicar o uso exclusivo do oceano porque seus ancestrais indígenas teriam vivido ali. Espero que o presidente Piñera a melhore.” Sebastián Piñera, biliardário conservador reeleito este ano para o La Moneda após um primeiro mandato entre 2010 e 2014, assumiu o compromisso, em 7 de setembro de 2017, em Puerto Montt, de “aperfeiçoar essa lei para garantir a proteção de lugares ancestrais sem frear a atividade econômica”.
“No Chile, a aquicultura é concebida como um modelo de produção que o Estado controla muito pouco, contando com a autorregulação das empresas”, resume Juan Carlos Cárdenas, veterinário e diretor da ONG de defesa do mar Centro Ecocéanos. Apenas um a cada dez pedidos de concessão é objeto de um estudo de impacto ambiental (EIA). Nos outros nove casos, as autoridades se contentam com uma “declaração de impacto ambiental” (DIA)… redigida pelo aquicultor! “As altas esferas do Estado estão ligadas aos industriais”, diz Cárdenas. Ele lembra que Jorge Rodríguez Grossi, ministro da Fazenda de outubro de 2017 a março de 2018, foi diretor da Australis Seafoods entre 2012 e 2015, uma das maiores empresas de criação de salmão do país. Felipe Sandoval Precht, presidente do SalmonChile de 2014 a 2017, órgão que agrupa quase todos os produtores de salmão, foi secretário do Estado para a pesca. Essa proximidade entre o mundo da política e o da aquicultura não é exclusiva do Chile: na Noruega, Marit Solberg, vice-presidente do gigante do setor, Marine Harvest, é simplesmente irmã da primeira-ministra conservadora Erna Solberg. Isso dá argumentos para os que criticam os governos por não terem tirado uma lição das crises sanitárias ou ambientais que atingem constantemente as aquiculturas.
Em 2007, a anemia infecciosa do salmão (AIS) devastou as costas chilenas, levando a produção a cair quase pela metade. O vírus se propagou rapidamente porque havia grande concentração das fazendas de criação e as normas de proteção eram insuficientes. Posteriormente, no início de 2016, uma proliferação de algas tóxicas do gênero Chattonella envenenou os salmões em seus tanques em torno da Ilha de Chiloé. Transtornados, os aquicultores pediram socorro: “Os volumes de mortalidade são superiores às capacidades logísticas”, escreveu Sandoval Prechtle em 3 de março de 2016.3 Sem o menor estudo de impacto, a Sernapesca autorizou a partir do dia seguinte “a adoção de medidas de exceção por motivo de força maior”. Entre 15 e 25 de março, a Marinha nacional despejou nos arredores da ilha 9 mil toneladas de salmão em putrefação. Ocorreu, então, uma segunda proliferação de algas tóxicas do gênero Alexandrium catenella, uma “maré vermelha” de amplitude inédita, que dizimou a fauna. Todos os produtos do mar tornaram-se impróprios para consumo. A crise reavivou os antagonismos entre industriais e pescadores chilotes [de Chiloé], já reforçados em fevereiro de 2013 por uma lei que favoreceu sete famílias ligadas aos industriais do salmão e que controlam 80% da pesca.
“Como indenização, o governo propôs 100 mil pesos [R$ 620] para cada pescador. Então, levantamos barricadas”, conta Marcela Ramos. Essa professora sexagenária tornou-se uma das ativistas do movimento de defesa de Chiloé: “Bloqueamos as rodovias e as ferrovias durante dezoito dias. Queríamos que fosse admitida a responsabilidade da indústria do salmão e que ela pagasse os estragos”. A ilha foi cortada do mundo entre 2 e 19 de maio. “Santiago queria acabar com isso antes do 21 de Maio, dia em que o Chile celebra sua Marinha”, explica Adriana Ampuero, membro do Movimento Separatista do Chiloé e coordenadora do partido de esquerda Frente Amplio. Ela continua: “Eles tiveram de fazer acordos de indenizações, mas nada foi feito para evitar que a situação se reproduzisse”.
Os manifestantes chilotes estão convencidos de que a maré vermelha foi provocada pelo lançamento do peixe apodrecido no mar. Os partidários da aquicultura se referem a episódios passados para negar qualquer ligação causal: o escritor chilote Francisco Coloane já tinha tratado do fenômeno em Golfo de penas, publicado em 1945; Garay lembra a morte de toda uma colônia do Estreito de Magalhães no século XVI: “Essa tragédia de Puerto del Hambre já teria ocorrido devido a uma maré vermelha. Havia criações de salmão naquela época?”. Subdiretora da divisão de aquicultura da Sernapesca em Valparaíso, Alicia Gallardo vai mais longe: “O Tribunal Ambiental julgou que não existia prova alguma de uma ligação entre a aquicultura e a maré vermelha.4 A explicação deve ser buscada no aquecimento climático”.
“A mudança climática não tem nada a ver com essa maré vermelha”, contesta o doutor Tarsicio Antezana, biólogo marinho aposentado, que lecionava no Instituto Oceanográfico de San Diego, na Califórnia, e vive em Chiloé. Segundo ele, “o amônio favorece esse tipo de fenômeno. E a decomposição da matéria orgânica – os cadáveres de salmão – produz o amônio. A Sernapesca depende do Ministério da Fazenda: qual é a prioridade desse ministério? O meio ambiente ou o crescimento econômico?”
80% das importações de antibióticos
Com 5 mil a 6 mil pessoas trabalhando diretamente para a indústria do salmão e o dobro indiretamente, as autoridades alegam permanentemente a importância do emprego. Mas são postos precários e mal remunerados, argumenta Gustavo Cortez, empregado em uma fábrica chilote da empresa norueguesa Marine Farms e presidente da federação dos trabalhadores do salmão da ilha: “Dez horas por dia para receber 400 mil pesos [R$ 2,5 mil] por mês. Muita gente acumula horas extras para poder terminar o mês. A maré vermelha, assim como o vírus da AIS em 2007, provocou uma enorme crise: 80% a 90% dos assalariados encontram-se desempregados. É preciso se mobilizar para conseguir indenizações do Estado. O Chile é um país muito neoliberal… O pior é que, apesar dessa crise, os industriais tiveram um ano muito bom!”, diz o sindicalista com veemência.
O preço do salmão passou de US$ 5,90 o quilo, em março de 2016, para US$ 7,33, em abril, e depois para US$ 9, em setembro.5 Garay confirma: “É a lei da oferta e da procura. A oferta diminui e a demanda continua a mesma, então os preços sobem. O mesmo fenômeno ocorreu em 2007 com o vírus da AIS”.
Para combater as doenças, um grande número de industriais chilenos recorre aos antibióticos: cinco a sete vezes mais que seus homólogos noruegueses. “Oitenta por cento dos antibióticos que o Chile importa vão para a aquicultura”, especifica Van der Meer. Diante do risco de emergência de bactérias resistentes, repreendida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a Sernapesca exige, desde então, que se reduza sua utilização.
O governo chileno admite nas entrelinhas que a aquicultura atingiu seus limites na Região X (Los Lagos) e na XI (Aysén): “Não haverá novas concessões na Região X e na XI”, especifica Gallardo. “Considerando as condições ambientais e o desenvolvimento sustentável da produção, estamos em um processo de relocalização das criações.” Desde então, os industriais estão de olho na Região XII, Magallanes: “Nela, temos 52 mil quilômetros de costas”, detalha Garay. “É mais que a Região X e a XI juntas.”
Ativista na revolta estudantil de 2011, Gabriel Boric, deputado do partido Frente Amplio, apresentou ao Parlamento, em maio de 2017, um projeto de suspensão das novas concessões “até que um estudo científico estabeleça o que o ecossistema é capaz de suportar”, explica ele, antes de acrescentar: “Mas meu projeto foi rejeitado como inconstitucional: eles não querem que a gente interfira na economia!”. Quando se fala para Garay de seu jovem e implacável opositor, ele suspira: “O problema do deputado Boric é que ele não gosta do capitalismo…”.
*Cédric Gouverneur é jornalista.