A gota d’água
As políticas de austeridade chegaram ao limite, no entender dos povos de vários países da América Latina. Os governos autoritários que implantam essas políticas, cada vez mais distantes do povo, ignoram o desespero, os sofrimentos, a pobreza, a exclusão que suas políticas produzem e continuam a aprofundar a espoliação das maiorias.
As políticas de austeridade chegaram ao limite, no entender dos povos de vários países da América Latina. Os governos autoritários que implantam essas políticas, cada vez mais distantes do povo, ignoram o desespero, os sofrimentos, a pobreza, a exclusão que suas políticas produzem e continuam a aprofundar a espoliação das maiorias. Na verdade, não é que não sabem dos danos sociais que suas políticas causam; sabem, mas não se importam. O que importa para eles é atender aos interesses das grandes corporações.
Os limites dessa espoliação das maiorias não se definem pelo respeito aos direitos humanos ou às Constituições, e sim pela capacidade de resistência e mobilização popular, seja pela via eleitoral, seja pela ocupação das ruas e pelos protestos sociais.
No México, numa situação em que a violência e os assassinatos estão presentes e aterrorizam toda a população (27 mil assassinatos em 2017), em que o narcotráfico controla territórios, em que a desindustrialização provoca a precarização do trabalho e o desemprego, em que as políticas sociais são cada vez mais precárias, o povo decidiu dar um basta na continuidade dos governos conservadores. Num misto de revolta e esperança, os mexicanos elegeram, em 2018, López Obrador, com 53% dos votos.
Na Argentina, no último comício da chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner, a palavra de ordem era “nunca mais políticas de austeridade”. Elegeram-se no primeiro turno. Com a pobreza atingindo 35% da população, desemprego de 10% e inflação anual de 54% em 2019, as políticas pró-ricos ficaram insustentáveis.
No Chile, conflagrado com as maiores mobilizações de sua história, o presidente Sebastián Piñera, um dos homens mais ricos do país, vai cedendo. Primeiro cancelou o aumento do bilhete do metrô, depois determinou um aumento de 20% nas aposentadorias e de 16% para o salário mínimo. Mas isso já não foi suficiente. Se podia dar os aumentos, por que não fez antes? Sua política de ceder os anéis para não perder os dedos veio tarde demais. A violenta repressão às manifestações, que ele ordenou, reforça o entendimento popular de que o governo é contra eles. São mais de 22 mortos pela repressão, mais de 2.200 pessoas feridas, mais de 6 mil pessoas presas. E as palavras de ordem popular passam a ser “Fora, Piñera” e a proposta de uma Constituinte independente para a realização de um novo pacto social que atenda às necessidades e demandas das maiorias.
No Equador, por pressão do FMI, o governo do presidente Lenín Moreno determinou o fim do subsídio estatal para os combustíveis, o que mais que dobrou o preço dos combustíveis. A mobilização popular foi impressionante, principalmente da parte das nações indígenas, que tomaram a capital, Quito, e só se desmobilizaram com o cancelamento do aumento. Os violentos protestos, reprimidos duramente pelas forças policiais, deixaram sete mortos.
No Paraguai, um aumento nas tarifas de eletricidade anunciado em decorrência de um novo acordo com o governo brasileiro sobre a energia gerada por Itaipu quase derrubou o atual presidente. As mobilizações populares provocaram o cancelamento do aumento previsto.
Na Bolívia, um golpe de Estado depôs o presidente Evo Morales, e o novo governo, de direita, reprime fortemente as manifestações indígenas que recusam o golpe. As estradas de acesso à capital, La Paz, estiveram bloqueadas por manifestantes pró-Evo Morales e os conflitos recrudescem na capital e em outras importantes cidades do país. Grupos de direita sequestram e espancam familiares de ministros e outras autoridades; perseguem, espancam e assassinam lideranças indígenas. As forças da repressão atiram para matar. Já somam 32 os mortos nos últimos dias. O anúncio pelo governo interino de eleições gerais no ano que vem abre caminho para uma saída política da crise.
No Peru, desde o início do ano crescem as mobilizações populares e há 135 conflitos ativos, segundo o relatório da Defensoria do Povo. Eles apresentam demandas de agricultores, mineiros e trabalhadores da construção civil, além de outros setores da sociedade. As demandas não atendidas se transformam em protestos e sofrem uma sistemática repressão policial. Nesse contexto, a dissolução do Congresso pelo presidente Martín Vizcarra, seguida pela destituição do presidente pelo Congresso, uma briga das elites pelo controle do poder, levaram a um impasse, que persiste.
Na Colômbia, em novembro centenas de milhares de pessoas saíram às ruas em todo o país. Contaram com a participação das mulheres, dos estudantes, dos indígenas, dos movimentos negros, dos sindicatos. Criticam as injustiças da reforma trabalhista e da reforma da previdência.
Na Venezuela, o bloqueio econômico norte-americano, somado às seguidas tentativas de golpe com suporte dos Estados Unidos e, agora, do Brasil, jogou o país em uma profunda crise política e social. Aí também se vive um impasse.
A América Latina está em convulsão social. Seus povos deixaram de ter confiança no sistema político, nos governantes, e não aceitam mais tamanha espoliação. A solução democrática impõe a construção de novos pactos sociais e a redução das desigualdades, assim como uma melhor distribuição da riqueza. Ou vamos para ditaduras e mais opressão. A posição do Brasil será determinante para identificarmos para onde vai o pêndulo da história do continente.
Silvio Caccia Bava é editor-chefe do Le Monde Diplomatique Brasil.