A grande barganha
Ampliar a importação de produtos agrícolas. Mas exigir a abertura dos promissores mercados de serviços. Esta é estratégia das transnacionais do Norte, aplaudida por parte das elites e governos do SulFrédéric Viale
O Acordo Geral Sobre o Comércio de Serviços (AGCS, ou GATS, em inglês) é um dos numerosos acordos dos quais são parte os 148 Estados membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) 1 . Tem por ambição promover o nível mais alto possível de liberalização do comércio internacional de serviços.
O GATS cobre 123 setores, subdivididos em 163 subsetores, reagrupados na nomenclatura da OMC: negócios, comunicações, construção/engenharia, distribuição, educação, meio-ambiente, finanças, saúde/serviços sociais, turismo, lazer/cultura/esporte, transportes. O décimo segundo, para o caso de alguma coisa ter sido esquecida, intitula-se “outros”. Com exceção das questões militares, da polícia, da justiça e da emissão de moeda – prerrogativas dos Estados – todas as atividades de prestação de serviços são visadas. A partir disso, uma regra do direito internacional obriga os Estados a “liberalizar” — ou seja, a pôr em concorrência — os prestadores desses serviços, incluídos os de competência do poder público.
As cláusulas-chaves do “livre” comércio
A inclusão dos serviços públicos, entretanto, não salta aos olhos dos que não têem larga experiência com as argúcias jurídicas. O texto do GATS utiliza todos os macetes: extremo cuidado nos detalhes de certos pontos; incertezas que deixam margens para a interpretações diversas; utilização de termos aparentemente neutros para mascarar realidades precisas. Tudo segue a técnica habitual da dissimulação em dois tempos. Em um primeiro momento, afirmam-se grandes princípios suscetíveis de tornar o texto politicamente aceitável. Em seguida, uma precisão “técnica” os esvazia totalmente de seu conteúdo. Por exemplo, o artigo I-3b exclui do âmbito do acordo os “serviços fornecidos no exercício do poder governamental” (o que nós chamaríamos de “serviços públicos”). Mas ele é virado do avesso pelo artigo I-3c, que dá uma definição desses serviços, não excluindo praticamente nada…
O acordo não exige, em teoria, privatizações. Mas conduz a elas por meio do artigo XV, que procura “disciplinar” as subvenções públicas, pelo menos nos setores que podem ser lucrativos
As cláusulas-chaves do GATS (como, em geral, nos demais acordos da OMC) são a de nação mais favorecida (artigo II-1), que proíbe a qualquer preferência internacional, exceto em poucos casos, e a de tratamento nacional (artigo XVII-1), que proíbe qualquer preferência nacional. Além disso, o artigo VI-4 estabelece regras internacionais que têm objetivo de eliminar “obstáculos desnecessários ao comércio de serviços”. Essa noção de “desnecessário” é fluida. Além do mais, quem seria o juiz? Não os próprios Estados, mas o Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC, por meio de “painéis” (panels) de “experts” internacionais investidos do poder de autorizar represálias2 contra o Estado julgado culpado de ter imposto tais “obstáculos”. Como se já não fosse suficiente, o artigo VI-2-a prevê que os Estados signatários instalem, em seu direito interno, jurisdições encarregadas de aplicar as regras do acordo, e a possibilidade de perseguições contra aqueles que não o fizerem.
Liberalizar significa estabelecer concorrência. Assim como as diretivas da União Européia – elas também promovem liberalizações em todas as direções -, o GATS não exige, em teoria, privatizações. Mas ele conduz a esse resultado por meio do artigo XV, que procura “disciplinar” as subvenções públicas, pelo menos nos setores que podem ser lucrativos, por se dirigirem a públicos com poder de compra. A lógica tradicional, segundo a qual as coletividades podem decidir quais setores devem escapar, pelo menos em parte, às regras do mercado, (a fim de garantir igual acesso dos cidadãos aos serviços), está sob pressão de uma outra, em que o mercado é quem decide, por si mesmo, o alcance de suas intervenções, deixando ao setor público apenas aquilo que não é rentável.
Triste papel da Europa
Dos 139 subsetores “oferecidos” pela União Européia, cerca de 120 são já mais ou menos liberalizados — o que não é o caso dos 93 pedidos feitos aos países em desenvolvimento
No momento atual, o GATS não tem ainda grande incidência sobre os Estados membros da União Européia. Simplesmente porque, por iniciativa da Comissão Européia, os governos não esperaram esse acordo para adotar diretivas que liberalizaram setores inteiros de seus serviços, outrora total ou parcialmente públicos: bancos, seguros, telecomunicações, correios, transporte ferroviário, aéreo e marítimo3 , energia. São precisamente alguns desses setores estruturais (bancos, seguros, telecomunicações) e outros (tecnologias da informação e da comunicação, grande comércio de varejo), ainda regulamentados em certos países do Sul, que a União Européia e os Estados Unidos pretendem abrir às suas empresas, no quadro da grande barganha em curso na OMC: os países ricos facilitam a importação de produtos agrícolas e exigem, do Sul, acesso aos aos mercados não agrícolas e de serviços.
Mesmo que o GATS vise essencialmente os mercados do sul, seu aprofundamento não deixará de ter incidência na Europa, onde ele agravará os efeitos de dumping já facilitados pelas grandes disparidades no seio do mercado interno europeu4 . Serviços ainda formalmente excluídos do mandato de negociação da Comissão Européia na OMC – educação, saúde, cultura, audiovisual, serviços sociais5 – poderiam entrar pela porta dos fundos. Por exemplo, o ensino superior a distância (e-learning), no qual os EUA têm enorme interesse. O comissário europeu Peter Mandelson parece estar muito tentado em incorporá-los, ainda que de forma indireta. Ele propôs que as ofertas de liberalização dos países desenvolvidos (portanto os da União Européia) incluam “novas e sérias aberturas”, em ao menos 139 subsetores (o que representa 85% dos 163 subsetores de serviços), em troca de ofertas substanciais de liberalização dos países em desenvolvimento, em pelo menos 93 subsetores (que representam dois terços dos 139) 6 .
É preciso, no entanto, destacar que essa proposição é apenas aparentemente generosa, pois, dos 139 subsetores “oferecidos” pela União Européia, cerca de 120 são já mais ou menos liberalizados — o que não é o caso dos 93 pedidos feitos aos países em desenvolvimento.
O fantasma do velho AMI
Na proposta à OMC, a União Européia adota para si, para exigi-los do Sul, boa parte das disposições do tristemente célebre Acordo Multilateral sobre Investimento (AMI)
Em dois dos quatro modos de prestação de serviços7 , a Comissão Européia tem demandas e ofertas de liberalização inquietantes. Sobre o modo 3, que define as condições da presença comercial de uma empresa de um Estado-membro em um outro Estado-membro, ela adota para si, para exigi-los do Sul, boaparte das disposições do tristemente célebre Acordo Multilateral sobre Investimento (AMI) 8 que, preparado no seio da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi formalmente descartado em outubro de 1998 a pedido da França9 .
Sobre o modo 4, o deslocamento temporário de trabalhadores migrantes10 , a Comissão Européia anuncia que está pronta a concessões importantes, que envolvem pelo menos os prestadores de serviços às empresas e os trabalhadores independentes. Responde assim às demandas de governos do Sul como os da Índia, Paquistão, Bangladesh e Tailândia, desejosos de “exportar” trabalhadores qualificados (pelo menos em um primeiro tempo) no âmbito das prestações transfronteiriças de serviços. Espera amolecê-los a respeito dos três outros modos. Se for bem-sucedida alargará à escala planetária as possibilidades de dumping social que o projeto de diretiva Bolkestein estabelece somente em nível europeu.
As políticas de liberalização funcionam sempre em sentido único: tanto as regras da União Européia como as do Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta) proíbem qualquer volta atrás. O GATS, como todos os outros acordos da OMC, não é exceção à regra: seu artigo XXI-2 (alíneas a e b) assinala uma irreversibilidade de fato o Estado que, após uma mudança de orientação governamental, quisesse rever as liberalizações consentidas, deveria oferecer compensações a seus parceiros?
(Trad.: Carolina de Paula)
1 – O Acordo e a nomenclatura dos serviços elencados podem ser consultados no site oficial da OMC: www.wto.org
2 – O OSC pode autorizar um Estado que obteve ganho de causa a sobretaxar os produtos provenientes do Estado que sofreu a sanção, durante o tempo que durar a “infração”. É o que se passou no caso do gado com hormônios, em que a União Européia foi condenada por sua recusa em importar esse tipo de produto dos Estados Unidos e do Canadá.
3 – Ler François Ruffin, “Naufrage industriel pour la marine marchande”, Le Monde Diplomatique, novembro de 2003.
4 – Alguns exemplos foram reunidos na brochura Ma commune en 2015… après le passage de l’AGCS, realizada em seguida à assembléia dos estados gerais das coletividades contra o AGCS em Bobigny (Seine-Saint-Denis), em novembro de 2004, e retomada pela Convenção Européia de Liège em 22 e 23 de novembro de 2005: eg-contre-agcs.org/article.php3?id_article=58.
5 – Pelos termos do tratado de Nice atualmente em vigor, as decisões de liberalização desses setores devem prender-se à unanimidade dos vinte e cinco membros atuais da UE.
6 – Comissão Européia, documento na OMC: “Elementos para uma abordagem complementar”, TN/S/W/55, 27 de outubro de 2005.
7 – Para a definição dos quatro modos de prestação de serviços, ler Bernard Cassen, “Contra-ataque neoliberal”, Le Monde Diplomatique-Brasil, novembro de 2005.
8 – Ler Nur