A greve dos professores e a política de mérito
Tachados de promover uma greve político-partidária, os professores de São Paulo enfrentaram um mês de paralisações e de ataques do governo por reivindicarem o direito de trabalhar com dignidade. Enquanto isso, no Palácio dos Bandeirantes, ninguém assume a responsabilidade pela baixa qualidade do ensino no estado
Entre os meses de março e abril, cobrindo quase 30 dias, os professores da rede pública estadual paulista paralisaram suas atividades. Foi uma greve cuja pauta de reivindicações foi pouco divulgada e debatida nos meios de comunicação, já que a cobertura jornalística preferiu focalizar as repercussões das assembleias e passeatas no trânsito já caótico da cidade de São Paulo, condenando-as quase sempre. O movimento grevista foi classificado como de natureza político-partidária. Isso porque o Sindicato dos Professores é vinculado à Central Única dos Trabalhadores (CUT), que se alinha ao Partido dos Trabalhadores (PT). Além disso, a greve ocorreu no período em que o governador do estado se desincompatibilizava do seu cargo para concorrer à Presidência da República como o principal candidato de oposição ao governo federal.
Passaram-se os dias e, praticamente, ninguém conseguiu acompanhar o que era reivindicado, se era justo ou não, quem tinha razão sobre o quê. Mais que isso, em nenhum momento a grande imprensa destacou o simples fato de a greve ser um direito do trabalhador, conforme reza o artigo 9º da nossa Constituição.
A Secretaria Estadual de Educação não aceitou negociar com os professores, argumentando que não o faria enquanto a paralisação continuasse. Durante todo o tempo, procurou desqualificar a greve, falando que era de uma minoria, quando os dados do sindicato apontavam mais de 60% de professores parados. Ao final dos 30 dias, o movimento encerrou a greve, desgastado e dividido, sem nenhuma demanda atendida.
Não é de hoje que os professores são derrotados, nas suas lutas, pelo poder público, além de criminalizados por suas ações, em particular em São Paulo.
A escola pública no Brasil, até meados do século passado, atendia apenas a uma parcela da população do país, e mantinha padrões elevados de qualidade. Nas décadas seguintes, graças à mobilização da sociedade, ela foi se abrindo, permitindo o acesso das camadas mais pobres. No entanto, a democratização no atendimento foi feita de forma perversa. A ampliação de vagas não foi acompanhada de recursos financeiros, materiais e humanos que garantissem a qualidade, provocando um novo tipo de exclusão social, não mais pela ausência de vagas, mas pela baixa qualidade do serviço educacional ofertado.
Salas de aula com número elevado de alunos, escolas enormes, diversos turnos com menos horas de ensino no mesmo dia, instalações precárias, ausência de material de apoio e pedagógico… Este foi o resultado da equação: mais vagas e menos recursos.
E o professorado?
O que se passou com a categoria? Um processo de múltiplos fatores acabou por levar à precarização da profissão. O processo começou com a perda do poder aquisitivo, que obrigou o professorado a assumir mais aulas, ter mais alunos, diminuir seu tempo de preparação e de conhecimento do aluno para lhe dar um acompanhamento mais adequado. Os que não aguentaram esse processo seguiram para outras profissões. Outra parte mudou para as escolas particulares, que pagam mais e oferecem melhores condições de trabalho.
Os estudantes que querem seguir o magistério e têm melhor desempenho no ensino fundamental e médio – normalmente aqueles com maior poder aquisitivo – entram em pedagogia e licenciaturas nas escolas superiores de formação das universidades públicas e institutos federais. Mais bem formados, não se animam com a remuneração e as condições de trabalho da rede pública e vão para as escolas privadas ou outras profissões, que pagam muito mais. É por isso que não se encontram professores suficientes em disciplinas como química, física e biologia, nas quais a demanda do setor produtivo é muito aquecida.
Já o professorado recente das redes públicas foi formado na mesma escola pública onde hoje leciona e que tanto se critica. Grande parte fez sua formação superior em instituições privadas, quase sempre de baixa qualidade, ao mesmo tempo que trabalhava para ganhar a vida – com todo o sacrifício que representa estudar à noite, dormir pouco, ter pouco tempo para estudar, com fins de semana cheios de responsabilidades, afazeres domésticos etc. Apesar disso, esse professor consegue o seu diploma, quer exercer seu ofício e é culpabilizado por reivindicar o direito de trabalhar com dignidade na profissão que conquistou a duras penas, pagando caro e de forma honesta.
O vilão da qualidade no ensino
Inicialmente, a perda da qualidade no ensino foi buscar suas explicações nos filhos dos pobres e suas famílias. Acostumamos a ler e ouvir que a escola pública piorou porque “piorou” a qualidade dos alunos com a democratização das vagas. Hoje, o grande vilão é o professorado. Há um claro movimento por culpabilizá-lo, acusando-o por fazer greve, não querer trabalhar, faltar em demasia, ser despreparado para dar aulas, não se atualizar, não controlar a disciplina, e assim vai. Com isso, o poder público se isenta da sua parcela de responsabilidade.
O que ocorre no estado de São Paulo, por exemplo? Hoje, existem cerca de 220 mil professores na rede pública. Destes, quase a metade (100 mil) integra a categoria dos “não efetivos” ou “não concursados”, e estão fora da carreira pública. Ao longo dos últimos anos, foram crescendo as diferenças entre os direitos trabalhistas de efetivos e não efetivos. E não se abre concurso para a efetivação desses professores, havendo uma política deliberada de contratos temporários, precarizando o ofício docente. A greve, além de pressionar por concursos, reivindicava mais direitos aos não efetivos, que não têm resguardo legal (para fins previdenciários, por exemplo) como os que passaram por um concurso público.
Por outro lado, o estado mais rico do país está em 11º lugar em relação ao valor pago para os professores da sua rede. O salário de um professor com licenciatura plena e regime de 40 horas semanais é de R$ 1.900,00, e o desempenho dos seus estudantes está em sétimo lugar. Desde 1998, quando foi instituído o Plano de Carreira, o professorado não recebe aumento real. Por isso, hoje reivindica 34% de reposição. Não se trata, portanto, de reajuste, e sim de reposição das perdas salariais.
A política do governo estadual não prevê reajustes. Concede um bônus anual apenas para os 20% mais bem classificados, de acordo com o desempenho de cada escola e com uma prova de mérito. Com isso, 80% dos docentes são “punidos” por não serem considerados “qualificados” para essas “premiações”.
Ou seja, enquanto os professores pedem aumento salarial, o governo lhes oferece as chamadas gratificações ou bônus por mérito, baseados na competição entre os docentes, e os alardeia como política de incentivo exemplar para a melhoria da qualidade do ensino. Ao mesmo tempo, o objetivo é não elevar o salário básico e isentar-se do pagamento do valor extra aos aposentados, uma vez que estes não recebem a gratificação, já que o salário-base segue sendo o mesmo e é referência para o cálculo da aposentadoria.
Estas são apenas algumas das demandas do professorado que entrou em greve. Tirem suas conclusões: há ou não mérito nas demandas dos docentes para melhoria na qualidade da sua profissão? Ou a política de mérito é exclusividade do poder público?
Sérgio Haddad é economista, doutor em educação, coordenador geral da Ação Educativa. Foi professor da PUC-SP e presidente da ABONG – Associação Brasileira de ONGs.