A guerra para viver de cultura no Brasil
A ascensão de Bolsonaro à Presidência da República consolida de forma incomparável o enfraquecimento e a sabotagem à memória e à preservação da cultura brasileira. Chegou 2020 e com ele a pandemia de Covid-19, completando o cenário de escassez e caos. O setor cultural, que já vinha se mantendo com muita dificuldade, viu-se em extrema vulnerabilidade
Desde que a vitória de Jair Bolsonaro começou a parecer certa, o setor cultural ficou em alerta. Por uma simples razão: ele já havia escolhido a cultura como inimiga. E, sim, a cultura é realmente sua inimiga. Não pode ser diferente quando consideramos seu perfil.
O desmonte na área promovido por ele desde que assumiu o poder era esperado. Da extinção do Ministério da Cultura à tentativa de retirar do MEI profissões ligadas às produções artísticas, passando pelas péssimas escolhas dos presidentes da Fundação Nacional das Artes, da Fundação Palmares e dos cinco secretários que, em apenas um ano e meio, estiveram a passeio pela Secretaria de Cultura. Tudo isso só mostra o vazio que esse tema ocupa em sua mesa e o ódio que o presidente cultiva pela cultura brasileira.
Mas, fazendo um exercício de olhar o passado recente, não foi só quando Bolsonaro assumiu que começamos a perder campo, infelizmente. Evidente que tudo ficou muito pior, não há parâmetro histórico. Nunca vivemos um momento tão terrível para quem vive de cultura no Brasil, desde sua redemocratização. No entanto, atacar esse projeto é um pouco mais fácil. Difícil e doloroso é aceitar que, mesmo nos governos do campo da esquerda, muitas vezes a cultura não tem o protagonismo e a estabilidade que merece.
O Ministério da Cultura teve sua fase gloriosa na era do ex-presidente Lula quando foram criados e executados projetos que poderiam ter mudado definitivamente a forma como o Brasil cria, produz e consome sua arte e cultura. Finalmente, memória, preservação, fruição, descentralização eram os objetivos dos programas dessa época, que concederam, pela primeira vez na história, status de prioridade para a produção artística brasileira.
Foi feita uma escuta grandiosa por meio de conferências, seminários e encontros diversos pelos rincões do Brasil. Políticas públicas eficazes saíram dali, como o Plano Nacional de Cultura e os planos setoriais, que deveriam ter se tornado políticas de Estado, garantindo a permanência entre diferentes governos. Acreditava-se à época que esses ganhos seriam definitivos. Não foram. Basta acompanhar a linha do tempo a partir do primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff.
Possivelmente de forma não intencional, as escolhas de Ana de Hollanda e Marta Suplicy enfraqueceram o ministério. Ambas trouxeram de volta os ares da elite intelectual paulista para a cadeira, afastando o diálogo com os fazedores de cultura em sua imensa diversidade e procedências. Houve um esfriamento dos programas já existentes criados pela dupla baiana Gilberto Gil e Juca Ferreira.
No segundo mandato, a presidenta Dilma trouxe de volta Juca para assumir o MinC. Mas, sem tempo de retomar o fôlego, ele caiu junto com ela, no golpe de 2016. Caíram também as expectativas de voltarmos a ter protagonismo na cultura.
Daí para a frente, a sequência de tragédias para o segmento cultural, como para o próprio país, é estarrecedora.
Quem primeiro tentou extinguir o MinC foi o ex-presidente Michel Temer, mas recuou. Em dois anos de mandato, revezaram-se quatro ministros no cargo. Todos receberam severas críticas da classe artística, também indignada com o golpe.
A ascensão de Bolsonaro à Presidência da República consolida de forma incomparável o enfraquecimento e a sabotagem à memória e à preservação da cultura brasileira.
Chegou 2020 e com ele a pandemia de Covid-19, completando o cenário de escassez e caos. O setor cultural, que já vinha se mantendo com muita dificuldade, viu-se em extrema vulnerabilidade.
A cultura brasileira é tão heterogênea que, num momento dramático como este, as desigualdades ficam ainda mais expostas. A forma como a cultura no Brasil é produzida, financiada e consumida é completamente diferente entre suas regiões e, obviamente, as consequências desse trauma que estamos vivendo também são radicalmente diferentes entre os que vivem da cultura.
Mesmo durante o governo Lula ficou nítida a concentração de financiamentos de projetos culturais nas cidades sudestinas. Essa foi uma grande luta na época: entender como seria possível descentralizar os recursos da Lei Rouanet e sensibilizar os patrocinadores a investir em outros territórios e em projetos fora do ambiente mainstream.
Nunca houve êxito, nem mesmo com ministros nordestinos e, por isso, mais sensíveis à importância da descentralização e democratização do acesso aos mecanismos de financiamento a projetos culturais.
Rio de Janeiro, São Paulo e, esticando um pouquinho mais, Minas Gerais e Distrito Federal sempre conseguiram patrocinadores e visibilidade midiática para seus projetos. Enquanto no Nordeste, por exemplo, onde nasci e vivo, os trabalhadores da cultura precisam lutar muito mais para conquistar espaço entre as carteiras de clientes das marcas privadas ou para participar de editais públicos e privados.
Resistir por aqui faz parte do fazer cultural em todos os tempos. Nestes estados, especialmente do Norte e do Nordeste, produzir cultura com recursos mínimos e suportes insuficientes não é novidade.
A cultura no Brasil é o espelho de sua própria sociedade. É desigual, racista, injusta, em que poucos têm muito, e muitos, quase nada.
O mainstream musical é um grande exemplo disso. O que se verifica é um volume enlouquecedor de dinheiro na mão de poucos, e novos artistas e outros gênios da música contemporânea não possuem uma casa própria para viver.
A desigualdade no mercado da música sempre se acentuou com a participação da mídia comercial, que escolhe uns poucos para dar visibilidade. Apesar das mudanças que a internet trouxe para a produção, a difusão e o consumo de música no Brasil, as televisões e rádios comerciais ainda são responsáveis, como já eram há vinte anos, por formar um público de massa que investe e consome um mesmo tipo de música, mesmo num país tão rico e diverso.
Em um momento como o que estamos vivendo, de pandemia e completo desalento, todas essas diferenças ficam mais expostas. E o único jeito de continuar sobrevivendo de cultura é com a participação efetiva do Estado.
Mesmo alguns governos ditos de esquerda não conseguiram criar projetos emergenciais durante a pandemia, como é o caso no meu estado, Pernambuco.
Ironicamente, uma tentativa de alívio vem do maior inimigo da cultura, o governo federal, não por vontade ou iniciativa próprias, claro, mas por insistência de alguns parlamentares de esquerda que se sensibilizaram com a penúria vivida por esses trabalhadores.
A Lei Aldir Blanc homenageia um dos grandes nomes da música popular brasileira, que morreu de Covid-19 e com imensas dificuldades financeiras. Um caso típico da desigualdade que relatei, e olha que Aldir era branco, de classe média, com mais acesso do que muitos outros artistas pelo Brasil.
A Lei Aldir Blanc prevê que recursos da ordem de R$ 3 bilhões, que estavam parados no Fundo Nacional de Cultura, sejam enviados para todos os estados e municípios única e exclusivamente para socorrer o setor cultural.
A dúvida é se esse dinheiro chegará a todas as famílias que precisam desesperadamente dele. A gincana da burocracia, imposta na regulamentação da lei, e a falta de conhecimento dos governos estaduais e municipais podem colocar a perder o recurso, que, uma vez não executado, deverá ser devolvido aos cofres da nação.
Para que essa lei fosse aprovada, o setor cultural precisou se mobilizar. A partir disso, um novo movimento de articulação entre os entes da cadeia produtiva e criativa começou a tomar corpo em todo o país.
Por aqui, um grupo do segmento da música criou o Acorde – Levante pela Música de Pernambuco, numa mobilização inédita do setor em termos de diversidade, com a participação da cena musical contemporânea, cultura popular, mestres de maracatus, afoxés, cirandeiros, movimento negro, movimento periférico, povos tradicionais e de terreiro, agentes do interior, técnicos e produtores.
O grupo entregou uma série de ideias e soluções para o governador, que nem sequer recebeu seus integrantes para uma reunião solicitada. Parece ser um fato isolado, mas mostra o que já citei: o diálogo para a concretização de políticas públicas comprometidas com o setor cultural é complicado até entre governos aparentemente mais sensíveis.
Porém, é fato que não será mais possível trabalhar com cultura no Brasil daqui para a frente sem entendê-la enquanto luta coletiva e politicamente ativa. Conferências populares, associações que estavam desativadas, coletivos, cooperativas culturais, todos voltaram a se mexer, a conversar e se organizar em nome da superação.
A cultura popular e quem vive dela, as periferias das cidades e os estados periféricos do Brasil são a inspiração. São deles a verdadeira resistência de quem conserva a história e a tradição, algo fundamental em tempos em que se tenta apagar a memória de um país.
Não se sabe ainda o tamanho das sequelas que a última eleição para presidente causará, ou quais sequelas essa pandemia deixará. Mas o esforço conjunto, movido seja pelo medo, pela dor ou pela esperança, será fundamental neste momento para garantir a soberania, a liberdade e a permanência do fazer cultural do povo brasileiro.
Melina Hickson é produtora cultural e empresária artística.