Pensar as drogas pondo um fim no juízo
Resenha do livro Drogas: a história do proibicionismo, de Henrique Carneiro (Autonomia Literária, 2018). Veja também entrevista com o autor da obra no podcast do Le Monde Diplomatique Brasil
Um livro não começa quando os olhos correm as primeiras linhas, mas quando qualquer elemento mínimo alcança um campo da percepção. Em Drogas: a história do proibicionismo, escrito por Henrique Carneiro e publicado pela editora Autonomia Literária, é assim que o livro começa. São as cores vibrantes, seu laranja psicodélico e a textura invertida da capa (a frente e o fundo fora de seus lugares tradicionais) que chamam a atenção ao primeiro toque. A forma do livro, antes de seu texto, nos leva para o que talvez seja o tema central quando se fala sobre drogas: a percepção.
Desde o século XVIII, com a publicação de Confissões de um comedor de ópio, do britânico Thomas De Quincey, o Ocidente iniciou uma tradição de se valer da linguagem literária para descrever toda uma gama de experimentações com drogas diversas. A literatura como tecnologia de escrita mais aberta, capaz de se conectar com um campo da percepção deslocado do juízo como centralidade da razão. O livro de Henrique se insere nesta tradição de algum modo, mesmo valendo-se de uma abordagem historiográfica e de uma linguagem mais acadêmica.
O juízo é a unidade de um pensamento capaz de esquadrinhar as drogas como uma unidade a ser reprimida e exterminada das várias terras, exercício de um tribunal da razão fundando em uma moral religiosa puritana, figura de julgamento que recorta quem é ou não passível de punição. Se desafia estas grandes unidades dissolvendo-as e fazendo existir ali, onde tudo parecia homogêneo, a multiplicidade das práticas e das relações entre humanos e drogas. A entrada do livro nesses mares é de escolha inusitada, isto porque parte-se do comum, do corriqueiro. Há toda uma bibliografia já consolidada que irá pensar a proibição das drogas com o centro da análise nas que consideramos ilícitas. Aqui tudo se faz majoritariamente por um caminho trilhado pelo álcool, tabaco, café, chá… É pelas drogas mais comuns, legais, presentes no dia a dia, que mesmo a produção da ilegalidade consegue ser olhada e observada. Mudança de ponto de vista, alteração da percepção também de quem escreve e de quem lê.
Apresentando os capítulos divididos pelas regulações de algumas drogas em países diferentes, o livro passa pelos Estados Unidos, pela China, pelo Canadá, pela Rússia, em uma análise que concatena o que foi a regulação das drogas em termos planetários com uma análise política do capitalismo, essa urgente mas escassa conexão nas pesquisas e movimentos antiproibicionistas.
As drogas e a produção de seu “problema de saúde” aparecem como parte de um acontecimento mais amplo, de um capitalismo adictivo que imprime uma velocidade que adentra nas esferas da vida mais subjetivas. As nossas sociedades são dependentes de muitas coisas, desde o petróleo até uma espiral expansiva de mercados especulativos. Não é fortuito que as drogas que vingaram majoritariamente nesta forma de mundo – que é também um jeito de triturar mundos outros – sejam os estimulantes. O café é a droga mais consumida e chamamos o nosso próprio despertar de café da manhã.
Essa abordagem nos remete a outra importante publicação da Autonomia Literária, o livro Dichavando o poder: drogas e autonomia do coletivo Desentorpecendo a Razão (DAR), escrito que traça como luta política a junção entre antiproibicionismo e anticapitalismo. Um texto sempre remete a outro, um enunciado sempre é ligado a outro. Os bons livros são assim, afeitos a aberturas que o estendem para fora de si mesmo, possibilitando novos estados alterados da percepção.
*Walder Wilson é doutorando em Ciências Sociais na PUC-SP e acolhedor no programa de orientação e atendimento ao dependente na Proad-Unifesp.