A história recente das organizações sociais no município de São Paulo
A falsa economia do modelo de OSS decorre do fato de os prejuízos serem suportados pulverizadamente não pelas entidades, que hoje formam verdadeiros oligopólios da saúde, mas pelos trabalhadores, que têm seus salários sistematicamente atados e jornadas de trabalho e diminuição de quadros com piora no atendimento
Em novembro de 2014, a prefeitura de São Paulo iniciou a reformulação de todas as suas contratações com entidades privadas que gerenciassem equipamentos e prestassem serviços públicos de saúde no SUS municipal. Dois anos depois, o processo está longe de se encerrar e acarretou dispensas maciças, recontratações com salários até 70% mais baixos e seleção de entidades de reputação duvidosa, com base em critérios exclusivamente econômicos – em desobediência à legislação municipal sobre o tema.
Segundo dados da prefeitura de São Paulo,1 quase 30% dos serviços de saúde em 2014 eram gerenciados e prestados por meio de contratos de gestão com organizações sociais de saúde (OSSs). As OSSs, como são conhecidas, são entidades supostamente sem finalidade lucrativa, que firmam contratos com a administração pública para gerenciamento e prestação de atividades de interesse social (saúde, educação, cultura, ciência e tecnologia, entre outros). Criadas na gestão FHC com forte inspiração neoliberal, elas constituem um modelo já hegemônico de gestão de ações e serviços de saúde no âmbito do SUS e são justificadas com o argumento de uma suposta maior eficiência, ou pelo menos menores entraves à execução dos serviços, uma vez que não estão obrigadas a realizar processo licitatório para suas compras nem concurso público para suas contratações de pessoal.
A transferência da gestão e prestação dos serviços de saúde para tais entidades privadas começou em 2006, na gestão Serra/Kassab, mas iniciativas nesse sentido não eram novidade no município de São Paulo. Antes de 2006, a gestão municipal levada pelo prefeito Paulo Maluf criou o Plano de Atendimento à Saúde (PAS), em 1995. Por meio do PAS, o poder público municipal celebrava convênios com cooperativas de trabalho constituídas exclusivamente por servidores municipais (ativos ou inativos), podendo inclusive afastar servidores municipais para desempenho de atividades nas cooperativas de trabalho e ceder bens e equipamentos a essas cooperativas, mediante permissão de uso com o fim de prestar serviços de saúde e expandir o acesso na cidade. Como o PAS era um sistema municipal próprio, desligado do SUS por decisão do então prefeito, a articulação das políticas estaduais de saúde no Estado ficou prejudicada no período.
Duramente criticado por conselhos de profissionais da saúde e órgãos de controle, e após a verificação de inúmeras irregularidades atinentes ao mau uso do erário, o PAS foi desativado no ano 2000. Entre as críticas, destacavam-se a precarização das condições de trabalho promovida pelas contratações cooperadas, a pouca eficácia dos instrumentos de controle e o desligamento do município de São Paulo do restante da política estadual de saúde (na época, o Plano Metropolitano de Saúde). Após o desligamento e condenação de gestores, empresários e médicos cooperados por improbidade administrativa, os serviços de saúde voltaram à administração direta da prefeitura na gestão de Marta Suplicy, com integração ao SUS.
O modelo de OSS, colocado em prática no município seis anos após o encerramento do PAS, carrega as mesmas linhas gerais de contratação de terceiros, com cessão de bens e repasse de recursos, apresentando, contudo, algumas diferenças. Em vez de cooperativas, o modelo de OSS criou uma titulação concedida a pessoas jurídicas de direito privado sem finalidade lucrativa (ou sem distribuição interna de excedentes) e, no lugar do convênio, criou um instrumento de parceria entre poder público e particulares, o contrato de gestão. A grande vantagem da contratação de OSSs para gerenciar e prestar serviços públicos de saúde reside na dispensa de licitação para compras e de concurso público para contratação de pessoal, entendimento já pacificado pelo STF em abril de 2015.
Ainda que a iniciativa de aplicação do modelo de OSS no nível municipal tenha sido de prefeitos ligados ao PSDB e ao DEM, e a despeito de o PT ter ajuizado uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) questionando a constitucionalidade do modelo das OSSs, este continuou em franca expansão na gestão do prefeito Fernando Haddad.
A primeira geração de contratos de gestão foi celebrada entre 2007 e 2012, com onze organizações, entre as quais a Fundação de Responsabilidade Social do Sírio Libanês, a Fundação Faculdade de Medicina da USP e o Serviço Social da Construção Civil (Seconci). Os contratos estabeleciam metas a serem atingidas pela organização. Contudo, o órgão interno de controle dessas contratações, o Núcleo Técnico de Contratação de Serviços de Saúde (NTCSS), da Secretaria Municipal da Saúde, nunca chegou, desde a primeira celebração, a rescindir nenhum ajuste, mesmo em casos reiterados de descumprimento das metas,2 revelando a fragilidade do controle exercido sobre essas contratações.
O anúncio de novembro de 2014, sobre a reconfiguração do modelo municipal de OSS, apresentou uma nova distribuição territorial das regiões de saúde (passaram a ser dezoito no total) e a não renovação dos contratos de gestão então vigentes,3 com realização de novas contratações. Entre os objetivos da mudança foram destacadas a necessidade de padronizar os contratos e garantir maior transparência e eficiência em seu acompanhamento, com a presença de uma única OSS por território, a exigência de uma equipe mínima de profissionais em cada unidade e a seleção pública dos funcionários.
Para além dessas questões, o que mais chama atenção nos editais para convocação das organizações sociais são os critérios de seleção da organização social. Os editais têm estipulado como único critério de seleção o do menor valor global no período de doze meses, sem mencionar balizas qualitativas de seleção, de modo que o barateamento dos gastos é completamente preponderante, em detrimento da qualidade do atendimento. Note-se que, nos termos da Lei Municipal n. 14.132/06, regulamentada pelo Decreto 52.858/11, a celebração do contrato de gestão deve ser precedida de processo seletivo objetivo, focado na economicidade, mas também na observação dos indicadores de qualidade e eficiência do serviço. O estabelecimento do critério exclusivo de menor preço viola, portanto, tais determinações legais.
A imposição de critérios exclusivamente quantitativos para a seleção das OSSs impacta diretamente na deterioração das relações de trabalho e atendimento, pois tais padrões de avaliação, transpostos mecanicamente de setores produtivos como a indústria para o SUS, identificam-no como permanentemente deficitário. As ações e serviços públicos de saúde, perante esse modelo neoliberal, são mercadorias de baixíssimo valor, de modo que reduzir os custos com insumos e mão de obra se torna tarefa permanente.
No caso das contratações de pessoal, o modelo revela sua mais flagrante deficiência, pois, embora diante da miopia de uma administração pública tecnocrática a contratação de trabalhadores via CLT pareça mais eficaz por permitir a dispensa imotivada (o que não é possível para os servidores, que gozam de estabilidade), os custos com as demissões são, ao fim e ao cabo, suportados pelos próprios trabalhadores ou pelo erário público.
Isso porque os novos editais de processo seletivo ensejaram deslocamentos territoriais entre as organizações sociais, nem sempre acompanhados por seu pessoal, que foi dispensado ou obrigado a se deslocar para o novo território, rompendo os laços construídos com a comunidade da região de saúde. Da perspectiva das relações de trabalho, duas são as situações ocorridas: ou os trabalhadores foram sumariamente dispensados, ou foram sub-rogados, sendo transferidos dos quadros funcionais de uma entidade para a outra. Da perspectiva das ações e serviços de saúde houve também prejuízo. Embora a substituição de profissionais de saúde pareça uma alteração singela, a depender do serviço ela pode ser desastrosa. Tomem-se como exemplo os equipamentos de saúde mental, como os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), cujos pacientes, acompanhados anos a fio pela mesma equipe multiprofissional, recomeçaram seus acompanhamentos do zero, com novos profissionais, sem uma política de transição.
Isso revela o aspecto mais perverso do modelo de OSS: a socialização do prejuízo. Não bastasse o caráter problemático da sucessão entre entidades distintas para a continuidade da prestação desses serviços essenciais, o custo trabalhista com o pagamento de verbas rescisórias, ao fim e ao cabo, será custeado ou pelo erário público (quando pago) ou pelos empregados (quando não pago).
Não por outro motivo, neste contexto, a equipe mínima, contratualmente prevista, acaba por se tornar o padrão máximo para as contratações.
A exclusividade de critérios de avaliação quantitativos na seleção ocasiona ainda o fenômeno que tem sido verificado na sucessão de organizações sociais: o arrocho salarial. Não sendo realizada a sub-rogação do contrato de trabalho, dispensando os empregados da antiga OSS, geralmente a recontratação tem sido promovida a salários muito inferiores aos praticados.
Como se verifica, a falsa economia do modelo de OSS decorre do fato de os prejuízos do modelo serem suportados pulverizadamente não pelas entidades, que hoje formam verdadeiros oligopólios da saúde, mas pelos trabalhadores, que têm seus salários sistematicamente atados e jornadas de trabalho intensificadas para suprir a diminuição de quadros, e pela população, com a piora no atendimento.
Quase dois anos depois do anúncio da reformulação do modelo municipal de OSS, o que vemos é a repetição de um ciclo de precarização do trabalho na área da saúde, em especial nas categorias não médicas. Mudar o modelo para arrochar salários e dispensar trabalhadores, sem reconhecimento da qualidade no atendimento, é mais do mesmo na história das políticas públicas de saúde do município, entre elas o fatídico antecessor das OSSs, o PAS.
A perversidade do modelo de OSS reside justamente na incapacidade de pensar a organização de um modelo público de saúde a longo prazo, incorrendo em um imediatismo destrutivo, e na invariável socialização do prejuízo que ele acarreta. Mudar para que tudo continue como está ainda é, afinal de contas, a nota central no arranjo político de São Paulo.
Ana Carolina Navarrete é mestra em Direitos Humanos pela Universidade de São Paulo, advogada orientadora do Departamento Jurídico XI de Agosto, pesquisadora do Projeto Muriel, militante e pesquisadora de temas relacionados a saúde e direitos humanos; e Gabriel Franco da Rosa é advogado de entidades sindicais, doutorando em Direito do Trabalho na Universidade de São Paulo, membro do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital da FD-USP e diretor do Sindicato dos Advogados.