A honra dos covardes, o pacto masculino, a irmandade da farda e o silêncio institucional na violência doméstica
A cada colega que se cala, a cada superior que recomenda “resolver em casa”, reforça-se a ideia de que a farda é sinônimo de impunidade
A violência doméstica praticada por agentes públicos não é apenas um drama íntimo, é uma ruptura institucional. Quando o autor do crime veste farda, o ato não se limita à agressão física ou psíquica, ele carrega consigo a corrosão da legitimidade do Estado, a traição do dever funcional e a afronta ao pacto democrático que confere poder ao agente para proteger, não para agredir.
Mais grave ainda é o silêncio cúmplice que se forma ao redor. Nas corporações uniformizadas, majoritariamente masculinas, a denúncia de um colega agressor ativa um sistema informal de lealdade que suspende o dever funcional. O “irmão de farda” deixa de ser apenas uma metáfora e passa a ser um escudo. A mulher que denuncia não enfrenta apenas o agressor; enfrenta a máquina simbólica da irmandade institucional, onde a reputação da farda vale mais do que a integridade da vítima.
O caso da delegada Juliana Domingues, agredida sistematicamente pelo próprio marido, um tenente-coronel da Polícia Militar, expôs ao país esse enredo cruel. Chefiando a Delegacia da Mulher, no interior do Rio de Janeiro, em Volta Redonda, ela enfrentou medo, vergonha e solidão institucional. Sua história comprova que nem mesmo a autoridade formal livra uma mulher do cerco simbólico que protege homens violentos no interior das estruturas de poder.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam que mais de 21 milhões de mulheres sofreram violência no último ano. O número é assustador por si só, mas torna-se obsceno quando lembramos que parte desses agressores são agentes pagos para proteger a sociedade. Nesse contexto, o silêncio dos pares não é omissão neutra, é política de conivência.
A vítima, ao perceber que o agressor está amparado por uma rede informal de proteção, sente que não há para onde correr. A intimidação não vem apenas da violência direta, mas da ideia de que a denúncia significará retaliação, desprezo ou inutilidade. “Vai mesmo acabar com a carreira dele por causa de uma briga de casal?”, essa frase, tantas vezes ouvida, funciona como chantagem emocional e mecanismo de silenciamento institucional.

A filósofa alemã Hannah Arendt dizia que “o mais escandaloso do escândalo é que nos acostumamos a ele”. A banalização da violência doméstica nas fileiras institucionais é um desses escândalos normalizados. A cada colega que se cala, a cada superior que recomenda “resolver em casa”, reforça-se a ideia de que a farda é sinônimo de impunidade.
É preciso afirmar sem rodeios, proteger o agressor é compactuar com a violência. E a Administração Pública não pode permitir que o espírito de corpo suplante o dever de responsabilização. A farda não é manto sagrado, é função pública, e como tal, exige conduta ética compatível.
Iniciativas como o Grupamento Especializado de Proteção e Atendimento à Mulher da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte são respostas institucionais necessárias. Ao enfrentar a violência mesmo quando praticada por agentes da própria instituição, esse grupamento representa a ruptura com a cultura do silêncio e o resgate da função protetiva do Estado.
A honra dos covardes é feita de silêncio. O pacto masculino que se forma em torno da farda não pode ser maior que o compromisso constitucional com a dignidade humana. A verdadeira lealdade institucional não é proteger quem agride, mas garantir que toda mulher agredida encontre no Estado um aliado, e não um cúmplice de seu agressor.
Fernanda Augusta de Vasconcelos Roa é guarda civil municipal em Belo Horizonte, bacharela em Direito e pós-graduada em Direito Público.